A realização de uma espécie de “Dia da China” em Brasília nesta quarta-feira, 20, marcado pelo encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com Xi Jinping, seu colega chinês, e complementado por convescotes de autoridades e diplomatas dos dois países, representa um novo passo na direção trilhada pelo petista desde o início de seu primeiro mandato, em 2003, de aprofundar a “parceria estratégica” do Brasil com o gigante asiático.
Aproveitando a presença de Xi Jinping no País para a Cúpula do G-20, o grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo, além da União Europeia e da União Africana, realizada no Rio de Janeiro, Lula recebeu o líder chinês com “tapete vermelho” no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República, para reforçar a “sinergia política” entre os dois países e selar novos acordos bilaterais, que contemplam a ampliação da pauta de exportações de produtos agrícolas brasileiros para a China e o aumento dos investimentos chineses no Brasil, principalmente nas áreas de infraestrutura, industrial e de transição energética.
Só que, por trás dessa convergência de interesses políticos e econômicos expressa nos acordos, comunicados e discursos oficiais, o que se observa, como diz um ex-diplomata que falou com a coluna sob garantia de anonimato, é que, nas últimas duas décadas, essa “parceria estratégica” tem tido significados bem diferentes para o Brasil e para a China, chamada por Lula de “um shopping center de oportunidades”, em sua primeira viagem ao país, vinte anos atrás.
Sul global
Para a China de Xi, ela significa a busca, com um “pragmatismo metálico”, nas palavras desse ex-diplomata, de seus objetivos econômicos. Fazem parte da lista, no caso do Brasil, o suprimento em larga escala e previsível de alimentos e minério de ferro, além do aumento de suas exportações de manufaturados. Mais recentemente, entrou na lista também a realização de investimentos diretos, como os previstos nos acordos firmados em Brasília.
Agora, para o Brasil de Lula, “a parceria estratégica” com a China significa em especial o fortalecimento de uma aliança política e ideológica, centrada na consolidação do bloco formado pelo sul global, para que ele seja uma alternativa aos polos tradicionais de poder, como os Estados Unidos e a União Europeia, e na “democratização” da governança de instituições multilaterais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e o Conselho de Segurança da ONU, de preferência com a inclusão do País no grupo.
A China, é certo, até encampa a postura e o discurso do Brasil de Lula, operacionalizado por Celso Amorim, assessor especial do presidente e ministro das Relações Exteriores em seus dois primeiros mandatos, e pelo chanceler Mauro Vieira, como ficou claro mais uma vez agora. É certo também que os chineses procuram consolidar sua liderança no bloco dos países em desenvolvimento, por meio do Brics, o grupo que congregava Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, além da própria China, e foi ampliado recentemente com o ingresso do Egito, da Etiópia, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos e do Irã. Sem falar, é claro, no apoio direto dado por Pequim a países que vêm sofrendo sanções econômicas do Ocidente.
É ingenuidade, porém, de acordo com quem acompanha a China a fundo, acreditar que ela se move por ideologia, como o Brasil de Lula, Amorim e Vieira, para viabilizar “um mundo mais democrático”. Embora continue a ser governada com mão de ferro pelo Partido Comunista, ainda que tenha aberto sua economia após a morte de Mao Tsé-Tung, em 1976, a China, na verdade, usa essa retórica “terceiro-mundista” para viabilizar o acesso a bens de que os chineses precisam e se comporta como qualquer outra grande potência para garantir seus interesses econômicos.
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É simples assim – e não há nada de errado nisso, apesar de Lula, seus assessores e seus aliados acreditarem que, ao se aproximarem da China, em detrimento de países e blocos ocidentais, como os Estados Unidos e a União Europeia, estão combatendo o “imperialismo”, como se o país de Xi Jinping fosse uma espécie de “imperialista do bem”, movido ideologicamente.
Nos fóruns internacionais, como o G-20, a China, que ocupa o segundo lugar no ranking dos países com o maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, até defende propostas como a taxação dos super-ricos – apoiada por Lula e pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que passou semanas dizendo que a medida tinha chance de ser aprovada no encontro. Os chineses sabem, no entanto, que isso jamais vai acontecer.
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Na prática, até hoje, a China também fez muito pouco para atender às demandas de Lula e “democratizar” as instituições multilaterais, sobretudo o Conselho de Segurança da ONU, até porque, para isso ocorrer, ela teria de obter o aval dos EUA, da Inglaterra e da França, o que, como no caso da taxação dos super-ricos, é algo improvável de acontecer. Segundo o ex-diplomata que falou à coluna, isso “é negócio para enganar trouxa”.
Se o Brasil aproveitasse a aproximação com a China para negociar a diversificação de suas exportações, hoje concentradas em produtos agrícolas, em vez de concentrar as energias em denúncias dos males causados pela presença “yankee” no mundo, pelo “neoliberalismo” e pelos bilionários, provavelmente os resultados da “parceria estratégica” com os chineses seriam ainda mais robustos.
Se o Brasil, em vez de querer “bater bumbo” ideológico na arena global, seguisse a cartilha chinesa e fosse mais pragmático nos negócios, poderia não só ampliar o rol de produtos agrícolas exportados para a China, como foi anunciado pelos presidentes dos dois países agora em Brasília, como aumentar suas vendas de produtos agroindustriais de maior valor agregado e aviões da Embraer, entre outros, para engrossar o intercâmbio comercial brasileiro e turbinar o desenvolvimento nacional. Talvez, se isso ocorresse, a gente pudesse voltar a importar sem impostos as blusinhas e as bugigangas da Shopee e da Shein, em vez de punir os consumidores com a taxação pesada dos produtos, como fez Fernando Haddad, para ajudar a cobrir a gastança do governo.
Interlocutor em Washington
O Brasil também precisa se calçar contra possíveis solavancos no comércio global, com a volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e o aumento de tarifas sobre produtos chineses que ele deverá promover. Para Robin Brooks, ex-economista-chefe do IFF (sigla do Instituto de Finanças Internacional, em inglês) e ex-estrategista-chefe para a área de câmbio do Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento americanos, é possível que a China acabe por oferecer aos Estados Unidos um aumento em suas importações de produtos agrícolas americanos, em prejuízo do Brasil, para tentar conter os estragos que devem ser produzidos se as medidas protecionistas prometidas por Trump se confirmarem, como esperam os analistas.
Os Estados Unidos são um mercado indispensável para a China e ela está empenhada em buscar canais de interlocução com Washington e disposta a fazer o que for preciso para pelo menos manter seus negócios com o país no patamar atual. Essa interlocução, que no passado foi feita pelo ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger (1923-2023), agora está a cargo do empresário Elon Musk, um dos principais assessores de Trump, que tem bilhões de dólares investidos na China e sócios chineses, e foi xingado por Janja da Silva, mulher de Lula, num painel de que ela participava no G-20 Social, um evento realizado antes da reunião de cúpula do bloco, no início da semana.
Hoje, a diversificação das exportações do Brasil para a China acaba ficando em segundo plano. Não por acaso, o Brasil continua a ser apenas um grande exportador de commodities agrícolas e minerais para o país, como acontecia há vinte anos. Não que exportar commodities não seja importante e seja coisa de país subdesenvolvido, como muita gente diz por aí. Até porque o volume de exportações para a China aumentou de forma geométrica nas últimas duas décadas, graças ao aumento da produtividade e à modernização do agronegócio brasileiro, e tem contribuído de forma decisiva para o crescimento do comércio exterior e do PIB (Produto Interno Bruto) do País.
Mas, enquanto a China hoje vende carros elétricos, baterias de última geração e painéis fotovoltaicos de alta qualidade ao Brasil, além de realizar investimentos bilionários na área de infraestrutura, a gente continua a vender para os chineses basicamente as mesmas coisas que vendia no início dos anos 2000, ainda que em maior volume. Apesar de o Itamaraty destacar que o Brasil está buscando diversificar sua pauta de exportações para a China, faltam resultados concretos e significativos neste quesito.
‘Eixo do Mal’
Por ser uma ditadura comandada pelo Partido Comunista Chinês, com quem o PT celebrou um acordo de intercâmbio e cooperação em 2023, muita gente vê com maus olhos a ampliação dos negócios com a China e de sua presença no Brasil. O fato de a China apoiar regimes sanguinários do “Eixo do Mal”, como Coreia do Norte, Irã, Venezuela e Nicarágua, além da Rússia, em meio às restrições impostas ao país pelo Ocidente, também não ajuda. Tampouco ajudam os ímpetos imperialistas chineses em relação a Taiwan, cuja anexação o Brasil de Lula apoia, e a outras regiões próximas a seu território.
No entanto, considerando que os investimentos no setor produtivo hoje no Brasil estão na faixa de 17% do PIB, bem abaixo dos 25% que seriam necessários para o País prosperar em ritmo acelerado, tanto faz se os investimentos estão vindo dos Estados Unidos e da Alemanha ou da ditadura chinesa e dos regimes autoritários da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos ou do Catar, desde que ajudem a acelerar o desenvolvimento, aumentar a competitividade da economia, baratear o custo da energia e diversificar a nossa matriz produtiva. A China é a segunda maior economia mundial, atrás apenas dos Estados Unidos, e não dá para o País, que é carente de capitais, esnobá-la por questões ideológicas.
Avenida aberta
Além disso, nos últimos quinze anos, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil, com US$ 157,5 bilhões de intercâmbio comercial (exportações e importações) entre os dois países em 2023. Só no ano passado o Brasil exportou para a China US$ 104 bilhões, mais do que as vendas para os EUA e a União Europeia somadas. Ainda que, em grande parte, elas sejam concentradas em commodities agrícolas e minerais, é importante manter essa avenida aberta, até para o Brasil poder usar isso em negociações com os americanos, com os europeus e com países do Oriente Médio.
Considerando tudo isso, talvez Lula tivesse razão ao dizer, em 2004, que a China era “um shopping center de oportunidades” para o País. Mas, para aproveitar tudo o que ela tem a nos oferecer, o Brasil deveria se focar em interesses econômicos, sem perder tempo com bravatas ideológicas, que podem até levantar a claque petista e de seus aliados, aqui e lá fora, mas não traz qualquer benefício ao País.