O futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil pode ser decidido no próximo dia 25, quando o plenário do Supremo Tribunal Federal julga um recurso contra uma ação de reintegração de posse movida pelo Estado de Santa Catarina contra indígenas da etnia Xokleng.
Procurador-geral do Estado de Santa Catarina, Alisson de Bom de Souza, que defende o Instituto do Meio Ambiente, afirma que o caso pode ter consequências imprevisíveis. “Com a repercussão geral, ele tem o potencial de firmar uma tese que pode passar a valer para todas as discussões existentes no Brasil a respeito dos direitos territoriais indígenas.” O resultado pode afetar o direito de propriedade em todo o território nacional.
Segundo o procurador, Santa Catarina tem defendido uma “interpretação harmonizadora” do Artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece direitos originários sobre terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e obriga a União a demarcá-las.
A decisão do colegiado do Supremo é aguardada não apenas porque vai por fim ao processo catarinense, mas principalmente porque o STF definiu o caso como de repercussão geral. Significa que o resultado terá efeito vinculante e criará uma jurisprudência que poderá ser aplicada a casos semelhantes em todo o território nacional.
O artigo está no centro de uma das discussões mais relevantes relacionadas aos direitos indígenas, diz o procurador. “Qual é a interpretação do Artigo 231? Existe a teoria do marco temporal, reconhecida pelo STF na ocasião do julgamento sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.”
A AGU definiu que só podem ser consideradas terras indígenas aquelas ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, além de proibir a expansão de áreas demarcadas. Essa interpretação passou a ser chamada de “marco temporal”.
Em 2020, o ministro Edson Fachin suspendeu a eficácia do parecer até que o recurso extraordinário de Santa Catarina seja julgado. “Sabemos que essas questões são processos complexos, de múltiplos interesses e interessados”, diz o procurador. “O Estado de Santa Catarina busca proteger os indígenas na medida da interpretação constitucional.”
Alisson lembra que o caso concreto sob julgamento está relacionado a uma reserva biológica pequena, mas as consequências podem ser muito maiores. “O que nós pretendemos é a manutenção da jurisprudência histórica do STF e a proteção do indígena. Essa é a posição do Estado de Santa Catarina.”
Para ele, o marco temporal é um pressuposto. “Defendemos que todas as terras existentes em outubro de 1988 devem ser demarcadas. Se houver necessidades de ampliação, isso deve ser resolvido por outros instrumentos que já existem.”
Entenda o caso
A Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ foi uma das primeiras do Brasil, criada em 1926. A demarcação ocorreu em 1965, com 14 mil hectares, mas em 1999 a Funai delimitou uma nova área, totalizando 37 mil. O aumento territorial foi possibilitado por uma remarcação feita pela Funai. O procurador Alisson de Bom de Souza diz que demarcações que não levam em conta o marco temporal podem causar instabilidade e ameaçar pessoas físicas e jurídicas que vivem em territórios.
Hoje, os 37 mil hectares da TI Ibirama La-Klãnõ envolvem terras de cinco municípios catarinenses (ver mapa).
Na região remarcada pela Funai, vivem cerca de mil famílias de agricultores familiares. São aproximadamente 5 mil pessoas. Todos são produtores de pequeno a médio porte, que cultivam itens como milho, soja, batata e feijão, além da criação de vacas, frangos e suínos. A maioria deles é descendente de quinta geração de proprietários que adquiriram suas terras no início do século 20 e sempre tiveram um convívio pacífico com os indígenas.
Segundo o produtor Francisco Jeremias, do município de Victor Meirelles, os moradores têm vivido um clima de insegurança, pois sabem que a decisão da ação poderá expulsá-los de suas terras. Eles temem que, com isso, se reproduza o que aconteceu em Roraima, quando os agricultores expulsos da Raposa Serra do Sol tiveram de sair sem indenização por suas terras. “O agricultor vive da terra. Tirar nossa terra é o mesmo que tirar nossa vida.”
Seu Francisco diz que a saída dos produtores provocaria um abalo considerável na economia da região. “O agricultor tem escritura de 1902 e produz alimentos para toda a sociedade, inclusive para os indígenas. O impacto de uma decisão negativa do STF será muito grande, pois a arrecadação da agricultura familiar fica em torno de 76% da arrecadação do nosso município.” A realidade é comum às demais cidades afetadas.
O Estado de Santa Catarina busca proteger os indígenas na medida da interpretação constitucional
Alisson de Bom de Souza, Procurador-geral do Estado de Santa Catarina
Novas demarcações teriam impacto negativo de R$ 1,95 bi em Mato Grosso
Resultados foram calculados com base em dados disponíveis sobre a produção em 2019 e 2020
O julgamento que tem potencial de acabar com a tese do “marco temporal” nas demarcações de terras indígenas pode acelerar os processos de ampliação das áreas já demarcadas e a criação de novas reservas, que hoje estão suspensas.
Se no dia 25 de agosto prevalecer no tribunal a tese do ministro Edson Fachin, que argumentou em seu voto não haver fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal, além da insegurança jurídica, que pode fortalecer conflitos no campo, haverá também prejuízos econômicos para o agronegócio.
De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP), em 2020 o setor respondeu por 26,5% do Produto Interno Bruto (PIB) do País.
Um estudo realizado pelo Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) mostra que, com as demarcações, somente no Estado da Região Centro-Oeste, o maior produtor rural do Brasil, o Valor Bruto da Produção teria uma queda de R$ 1,95 bilhão. Para chegar ao número, o Imea calculou os impactos da ampliação e da criação de terras indígenas em 50 municípios do Estado onde há processos indefinidos. Como em todo Mato Grosso, as 50 cidades são caracterizadas pela produção de grãos (soja e milho), fibra (algodão) e carne bovina.
Os resultados foram calculados com base em dados disponíveis sobre a produção em 2019 e 2020. O cálculo foi realizado sobre o potencial econômico e social do uso do solo de áreas em análise para possíveis demarcações ou ampliações.
De acordo com o levantamento, na região vive 1,04 milhão de pessoas, que correspondem a 29,62% da população total do Estado. Cerca de 4,42 milhões de hectares devem se tornar terras indígenas.
O levantamento do Imea revela que as terras indígenas representariam um declínio de 4,37% na soja produzida no Estado, 4,16% no milho, 2,31% no algodão em caroço e 4,72% na produção de carne bovina (ver gráfico).
Dividido por essas culturas, o impacto de R$ 1,95 bilhão no Valor Bruto da Produção do Estado ficaria em R$ 1,01 bilhão na soja, R$ 390 milhões na bovinocultura, R$ 328 milhões no milho e R$ 216 milhões no algodão em caroço.
Cidades atingidas e desemprego
O principal município afetado é Santa Cruz do Xingu, no nordeste do Estado, onde 62,82% da produção de soja e o mesmo porcentual de milho deixariam de existir. A cidade de Juscimeira teria uma perda estimada de 36,15% na produção de algodão, enquanto Nova Nazaré registraria uma queda de 53,37% na produção de carne bovina.
Além do prejuízo econômico, o estudo demonstra o impacto social da ampliação das demarcações e das possíveis novas terras indígenas. De acordo com o Imea, Mato Grosso deixaria de empregar 9,16 mil trabalhadores, grande parte deles nas cadeias produtivas da soja.
A Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato) expressou sua preocupação com o julgamento a ser realizado no Supremo. O presidente da associação, Normando Corral, disse que, se o plenário acompanhar o voto do relator do processo, o ministro Edson Fachin, o tribunal acabará com o marco temporal estabelecido no julgamento da Raposa Serra do Sol em 2009, em Roraima, possibilitando a expansão das áreas indígenas.
“A criação e a expansão de novas áreas indígenas, principalmente nas áreas hoje destinadas à produção agropecuária, ocasionarão grande perda na produção”, diz, confirmando os resultados do estudo.
ENTREVISTA: Aldo Rebelo
Ex-ministro da Defesa; da Ciência, Tecnologia e Inovação; dos Esportes, e da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais do Brasil
Demarcações de novas áreas atendem a interesses de ONGs e associados
Aldo Rebelo, deputado federal por seis mandatos e ex-ministro de várias pastas nos governos de Dilma Rousseff e Lula, acaba de lançar o livro O Quinto Movimento.
Como vê a questão das demarcações de terras indígenas hoje?
Dos três grandes troncos civilizatórios que formaram a nação brasileira – o indígena, o europeu e o africano – os índios permaneceram como os brasileiros mais sacrificados e deixados à margem dos direitos fundamentais, situação que permitiu a manipulação de sua nobre causa por interesses inconfessáveis, que tentam dividir o Brasil jogando as populações indígenas contra o restante do País. A manipulação mais evidente se dá em torno da questão das demarcações, quando se mistura reivindicação justa com outros objetivos que não são nem dos indígenas nem do Brasil.
O que a suspensão do marco temporal pode significar para a sociedade brasileira?
Sem o marco temporal, tudo é possível. A cidade de São Paulo, por exemplo, foi formada a partir de aldeamentos indígenas, como provam os nomes de inúmeros de seus bairros e rios. Assim, qualquer descendente do Cacique Tibiriçá e da Índia Bartira, e há muitos em São Paulo, poderia reivindicar a demarcação dessas áreas sob muitos pretextos.
Por que é importante que a tese do marco temporal prevaleça?
O marco temporal é um instrumento que oferece segurança jurídica aos não índios, mas também aos índios e seus descendentes, que se constituíram em pequenos agricultores, proprietários nas antigas terras que habitaram. Eu vi um caso, no Maranhão, em que um grupo de índios pediu a demarcação de terras de seus parentes já proprietários e que seriam desapropriados a partir dessa reivindicação.
Acredita ser possível incluir os indígenas e suas formas de vida num modelo de convívio pacífico no campo? De que maneira?
As reivindicações das populações indígenas estão muito mais relacionadas a serviços públicos como educação, saúde, estradas e infovias nas suas aldeias, extensão rural, máquinas e equipamentos agrícolas do que em novas áreas demarcadas que atendem principalmente a interesses de ONGs e associados.
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