Com juros e inflação altos e sem impulso do governo, famílias entram ano com pé no freio no consumo

Recuo no consumo da população pode chegar a 0,8%, segundo projeções do Ibre, no que seria a primeira queda desde 2016

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Depois de registrar expansão nos últimos dois anos, o consumo das famílias deve desacelerar em 2023. Entre os economistas, há quem não descarte uma queda. Se confirmada, seria o primeiro recuo desde 2016, quando o País enfrentou uma dura recessão econômica - excetuando 2020, quando o desempenho econômico global foi alterado pela pandemia.

O Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (FGV-Ibre), calcula que o consumo vai diminuir 0,8% neste ano, após avançar 4,1% em 2022. O Santander, um pouco mais otimista, projeta alta de 1%. O economista do banco Lucas Maynard, porém, afirma que esse desempenho não significa “um grande dinamismo”. “Boa parte desse número decorre do carrego estatístico (efeito matemático, uma espécie de impulso deixado de um trimestre para o seguinte). É como se o crescimento fosse zero do quarto trimestre de 2022 até o quarto trimestre de 2023. Isso já resultaria em um crescimento de 1% para 2023. É gordura deixada de um ano para outro.”

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A piora do orçamento das famílias tem como pano de fundo o elevado patamar da taxa de juros - atualmente em 13,75% ao ano -, a inflação ainda alta (o IPCA fechou 2022 em 5,79%), sobretudo para os mais pobres, a inadimplência também elevada e o fim dos estímulos fiscais. No início de 2022, o governo Jair Bolsonaro adotou uma série de medidas para estimular a economia, como a antecipação de 13.º salário de aposentados, a liberação de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e a ampliação do Auxílio Brasil - hoje Bolsa Família - de R$ 400 para R$ 600.

“Será um contexto em que as transferências de renda devem crescer menos, acabou o 13.º salário para aposentados e pensionistas e a liberação de FGTS, ou seja, todo esse estímulo fiscal que ajudou o consumo até aqui. E o mercado de trabalho dá sinais de desaquecimento”, diz Thiago Xavier, economista da consultoria Tendências.

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A economista Marina Garrido, do Ibre, destaca que a inadimplência deve continuar subindo até meados deste ano. De acordo com pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 30,3% das famílias brasileiras tinham alguma dívida atrasada em novembro. Dos consumidores com renda mensal de até 10 salários mínimos, 34,1% atrasaram dívidas, a maior proporção da série, iniciada em 2010.

“Isso é muito preocupante. Antes, por exemplo, todo mundo conseguia cartão de crédito. Agora, os bancos avaliam mais se vão ou não dar cartão para alguém. Aí, sem cartão, a pessoa consome menos”, diz Marina.

Professora da rede pública de Guarulhos, Yve de Oliveira é um retrato desse cenário. Endividada, vai cortar compras neste ano. Até o ano passado, ela morava com os pais, mas precisou se mudar e comprar móveis para o apartamento que alugou. Yve já tinha algumas dívidas com bancos, mas, com a mudança e passando a pagar aluguel, a situação se deteriorou.

Yve de Oliveira conta que 70% do salário vai para pagar dívidas Foto: Taba Benedicto/Estadão

“Na ignorância financeira, sempre que não tinha dinheiro, pegava um empréstimo. Aí, quando não conseguia pagar uma parcela, o banco oferecia um novo empréstimo. Virou uma bola de neve e, no ano passado, virou um tsunami”, diz a professora.

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Yve conta que, hoje, 70% do seu salário vai para pagar as dívidas. “No mês passado, sobraram R$ 67 para me divertir. Agora, não tenho ambição de comprar nada.”

Primeiros sinais

Os sinais de arrefecimento do consumo já devem começar a aparecer nos indicadores. De um ritmo de 1,3%, em média, nos últimos trimestres, o crescimento do consumo das famílias no Produto Interno Bruto (PIB) trimestral deve recuar para algo entre 0,2% e 0,3% entre janeiro e março de 2023, de acordo com a Tendências.

A fraqueza do consumo também deve atingir as famílias de maneiras diferentes. As mais ricas conseguiram poupar na pandemia e ainda têm algum fôlego para gastar, enquanto as mais pobres devem ser afetadas de forma mais direta, dado o menor crescimento da transferência de renda e a expectativa de que o mercado de trabalho desacelere neste ano.

“As famílias de alta renda ainda têm um mercado de trabalho bem aquecido e elas criaram poupança na pandemia. O que a gente vai precisar ver é até que ponto essas famílias estão dispostas a utilizar essa poupança”, diz o economista da Tendências.

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No dia a dia, as famílias brasileiras, sobretudo aquelas das classe D e E, já ajustam o seu orçamento doméstico em busca de economia. No setor de alimentos e bebidas, a participação das chamadas marcas classificadas como “econômicas” - aquelas cerca de 20% mais baratas - na cesta de consumo cresceu nos últimos anos, de acordo com um monitoramento realizado pela Kantar. Passou de 18,3% para 20,8% entre setembro de 2020 e setembro de 2022.

Na cesta de compra das famílias, para fugir da alta dos preços dos grãos, o consumo de macarrão e salsicha ganhou espaço, embora o arroz e feijão siga como prato favorito dos brasileiros. “As pessoas também passaram a comprar em casa e levar para comer fora. Nesse movimento de reabertura, ficou caro almoçar fora de casa”, afirma David Fiss, diretor da Kantar Worldpanel.

Ano morno

Com a desaceleração no consumo, o comércio também já projeta um ano morno nas vendas. O economista Fabio Bentes, da CNC, calcula que o setor deve ter crescimento real de 1% em 2023. “O que está muito claro é que os segmentos que dependem das condições de crédito vão sofrer mais, principalmente na primeira metade do ano, porque a taxa de juros vai, no melhor dos cenários, permanecer no patamar atual até lá.”

As vendas dos supermercados, por outro lado, podem melhorar um pouco, com a inflação dos alimentos mais controlada. Isso, no entanto, não é suficiente para alavancar o varejo. “As pessoas não jantam duas vezes porque os alimentos estão mais baratos. Esse tipo de consumo oscila menos que o de bens duráveis”, acrescenta Bentes.

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