A tradicional hora da xepa, que ocorre depois do meio-dia nas feiras livres, é o momento crucial para o dono da banca. O feirante tem de decidir, e rápido, quanto vai baixar o preço de frutas, verduras e legumes, para “roubar” a freguesia da concorrência e voltar para casa com o caminhão vazio, mas sem prejuízo.
Toda essa ginástica comercial e de marketing, que para os feirantes é intuitiva, agora tem ganhado uma ajuda da inteligência artificial nos supermercados online. Um exemplo vem do Justo, o primeiro supermercado digital do México, que desembarcou no Brasil em 2021 com o desafio de vender alimentos perecíveis online. O grupo usa a inteligência artificial como um dos pilares do negócio.
“A minha demanda é viva”, diz André Braga, responsável pela operação da empresa no Brasil. Por meio de um aplicativo ou da página da varejista na internet, o consumidor pode fazer os pedidos 24 horas por dia.
Do outro lado do balcão virtual, há todo um planejamento de compras do produto que está sendo colhido no campo e segue para centros de distribuição (CD). Um deles fica no Parque São Domingos, zona noroeste de São Paulo, e o mais recente, aberto em abril, no Parque Novo Mundo, na zona norte da capital. Cada um tem cerca de 4 mil metros quadrados.
Com a inteligência artificial, o supermercado online consegue se desfazer mais rapidamente das mercadorias. Se há um produto com estoque elevado, o algoritmo dispara automaticamente uma promoção personalizada para os clientes que têm o costume de comprar esse item. O objetivo é impulsionar a venda, evitar o encalhe do produto e aumentar a eficiência do negócio.
Desta forma, diz o executivo, é possível mexer na demanda com a ajuda da inteligência artificial. “Seria humanamente impossível ter uma pessoa que olhasse, a cada segundo, o movimento do aplicativo e do site”, argumenta. Na loja física de um supermercado tradicional, por sua vez, a saída para ajustar a sobra de produto é colocar uma placa avisando a todos os consumidores que o item está em promoção.
A efetividade do uso de algoritmos para calibrar a oferta com a demanda é alta. Nas contas de Braga, o encalhe dos cerca de 5 mil itens vendidos pela empresa é de 1,5%, ante 10% a 12% de um supermercado tradicional que não usa essa ferramenta.
A inteligência artificial também permite que a falta do produto desejado pelo cliente, chamada no jargão do setor de “ruptura”, seja bem menor. A varejista busca uma taxa de ruptura de 2% a 2,5%. Essa marca, segundo o executivo, é um quinto do normal do mercado de autosserviço.
A varejista também usa tecnologia para estabelecer padrões de qualidade dos produtos, especialmente os alimentos frescos. Metade do faturamento – cifra que a companhia não revela, assim como o número de clientes – vem da venda de frutas, verduras, legumes, carnes e lácteos.
Linha de montagem
O frescor dos alimentos, que é a pegada da varejista online, é garantido, segundo Braga, pela proximidade dos fornecedores de itens in natura e pela frequência das entregas, que chegam duas vezes ao dia nos CDs.
Além disso, existe uma verdadeira linha de montagem para separar as mercadorias e preparar os pedidos. Os itens in natura vêm em caixas ventiladas que permitem o mínimo de manuseio. Ficam acondicionados em câmaras climatizadas ou frigoríficas, aguardando a separação e o despacho.
Leia também
Depois, os pedidos partem do CD para a entrega com hora marcada, em frota e equipe próprias. “Temos uma entrega pontual, com profissional dedicado, uniformizado, educado, que oferece uma flor ao cliente (no primeiro pedido)”, conta o executivo.
Vender perecíveis e também produtos de alto giro, como alimentos industrializados, bebidas e cosméticos, é um grande desafio e também o grande potencial do e-commerce. Fábio Bentes, economista da Confederação Nacional de Bens, Serviços e Turismo (CNC), destaca que o sucesso do online nesses segmentos de maior recorrência de compras depende do varejo prestar um bom serviço de entrega e também da qualidade dos produtos.
Levantamento da Associação Brasileira de Comércio eletrônico (Abcomm) mostra que o faturamento do commerce cresceu 4,5% de janeiro a agosto em relação ao mesmo período de 2022, sem descontar a inflação. É um ritmo bem menor do que o registrado no ano anterior, na casa de 12%.
“O que estamos vendo é um crescimento na categoria alimentos e bebidas”, diz o diretor de Inteligência de Mercado da Abcomm, Alexandre Crivelaro. Ele considera esse movimento positivo, porque aumenta a frequência de compras. No entanto, o tíquete médio é menor, porque as compras são de produtos não duráveis.
Para Bentes, o potencial de crescimento de vendas online de itens essenciais, vendidos em supermercados e farmácias, é muito maior do que o e-commerce de eletroeletrônicos. Esse segmento já avançou muito nesse canal de venda e hoje sofre com a alta dos juros.
Planos
Desde a estreia no País em 2021, o Justo tem crescido em ritmo acelerado. Braga diz que hoje vende dez vezes mais do que no início da operação. E o potencial de avanço é muito grande.
“Neste momento, estamos focados em aumentar a presença no Estado de São Paulo, mas temos sete capitais mapeadas e há regiões metropolitanas com forte potencial”, avalia. Cidades como Curitiba (PR), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Campinas (SP) e Brasília (DF) são bem interessantes para o tipo de serviço, acrescenta.
Em setembro, a empresa iniciou um projeto piloto em Santos (SP). A intenção é avançar pela Baixada Santista. Recentemente, a Oxxo, mercado de vizinhança, estreou em Santos (SP), Praia Grande (SP) e São Vicente (SP) e planeja ter 50 lojas na região.
Presente na capital e em mais 12 cidades da Grande São Paulo, a operação brasileira do Justo representa hoje 31% do negócio. O México e o Peru respondem por 60% e 9%, respectivamente. A empresa começou como uma startup fundada pelo brasileiro Ricardo Martinez e o mexicano Ricardo Weder, ambos egressos de empresas de tecnologia. Martinez é ex-Netshoes e Weder, ex-Cabify.
Marca própria
Outra investida recente da empresa é marca própria. Batizada “Do Justo”, a intenção é aumentar a fidelidade do cliente à loja. Braga diz que hoje são 300 produtos que levam esse selo, com preços entre 10% e 15% mais baixo, comparado à marca líder do segmento. Sem revelar investimentos, o número de itens de marca própria deve chegar a 350 ao final deste ano e crescer ao longo de 2024.
Para fazer todos esses investimentos, a companhia tem usado o dinheiro de captações. Liderada pelo fundo General Atlantic, em 2021 a empresa levantou US$ 65 milhões e o projeto brasileiro absorveu US$ 40 milhões (cerca de R$ 200 milhões). Em 2022, foram captados US$ 152 milhões. De lá para cá, diz o executivo, não houve novos aportes.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.