Na manhã de 1º de janeiro, garrafas de espumante vazias se acumulam na pia, os pratos com restos de rabanada aguardam para serem lavados e as roupas brancas já voltam para o fundo do armário. No litoral, os barquinhos oferecidos a Iemanjá flutuam de volta à areia, como se ela tivesse rejeitado nossas promessas apressadas. É o ritual do recomeço: limpar os excessos da celebração enquanto tentamos, ainda com ressaca, salvar nossas resoluções do primeiro dia do ano.
É difícil manter resoluções. Vamos começar a academia na segunda, comer melhor na semana que vem, parar de fumar no próximo ano. Economistas comportamentais relatam amplas evidências de que ritualizamos a vida através do calendário como forma de tentarmos nos comprometer com mudanças comportamentais. Cada dia, semana, mês, estação, ano é uma oportunidade de recomeço, de tentarmos trazer à tona aquela melhor versão nossa, adormecida entre o bolo de chocolate de sobremesa na segunda e a taça de carmenère na terça.
O final do ano traz a oportunidade perfeita para materializar, com a troca do calendário, o espírito de renovação. Neste mesmo espaço, há um ano, escrevi sobre desejos: o que as pessoas queriam para 2024. As respostas foram variadas, mas todas mostravam certo otimismo com o ano vindouro.
Lembrei dessa coluna ao ouvir o podcast Financial Times Life and Art, conduzido por Lilah Raptopoulos. No ano passado, ela perguntou aos ouvintes o que achavam que seria algo in na cultura e na arte. A ideia de uma ruptura cultural ficou presa nas esquisitices imaginadas: festas dançantes às terças ou o casual de escritório reinventado por uma blusa cropped. Mas não houve revolução nas roupas nem nas pistas de dança; o que vimos foi uma continuidade discreta, como se a criatividade cultural tivesse tirado férias coletivas.
A promessa de recomeços se entrelaça com a nostalgia de um passado idealizado, como se o antigo tivesse, de alguma forma, mais conforto que o incerto. E assim seguimos: o mesmo presidente de 20 anos atrás, Trump ressurgindo nos Estados Unidos, e o retorno do trabalho presencial, como se as videoconferências fossem só um desvio temporário. O futuro parece ter dado uma pausa.
Os governos também padecem desse problema. Mas prometi a mim mesma que não falaria disso nesta coluna. Deixo todo o pessimismo justificado com minha colega de espaço, Elena Landau, na sua ótima coluna da semana passada. Deixo para falar mal do governo no começo do ano que vem.
Queria trazer algum otimismo com esta coluna e aqui vai: talvez não precisemos da grande ruptura. Às vezes, o recomeço está na segunda-feira em que conseguimos ir à academia. Ou em conseguir manter o jantar com os amigos e familia. As revoluções, afinal, também se fazem de pequenos gestos.
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