Uma portaria editada recentemente pelo governo federal regularizando a lei de igualdade salarial entre homens e mulheres está gerando uma série de dúvidas dentro das empresas e até nos escritórios de advocacia. Além de considerarem o texto complexo, há preocupações principalmente com a obrigatoriedade das empresas de divulgarem dados dos funcionários em suas redes sociais.
A portaria de 24 de novembro regulariza a Lei 14.611/2023, publicada em 4 de julho e que trata da igualdade salarial e critérios de remuneração. A lei veda o pagamento de salários diferentes para homens e mulheres que exerçam as mesmas funções.
A igualdade já está prevista na Constituição, mas o cumprimento das regras não era fiscalizado. A partir de agora, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) fará o que chama de “relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios” com base nos dados do e-Social, que são informados regularmente pelas empresas. Eles incluem, de forma anônima, o valor da remuneração de cada funcionário, salário contratual, 13.º salário, gratificações, comissões, horas-extras, adicional noturno e até gorjetas.
Nos meses de março e setembro, o MTE enviará esses relatórios às empresas com mais de 100 funcionários que, obrigatoriamente, terão de divulgá-los em suas redes sociais.
Caso seja constatado que existe desigualdade entre os salários, a empresa será obrigada a apresentar um plano de ação no prazo de 90 dias para mitigar as diferenças. Em casos de não cumprimento do plano, a empresa também será multada em valor correspondente a dez vezes o valor do salário devido pelo empregador ao empregado discriminado. No caso de reincidência, o valor será dobrado. Também haverá multa para quem não divulgar o relatório.
Na visão de advogados e empresários, a medida infringe a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e as regras da livre-iniciativa e do princípio de concorrência, que podem resultar em ações trabalhistas.
Para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a lei é benéfica, mas a exigência de divulgação pública do relatório é “um exagero”. Flávio Unes, diretor titular do Departamento Jurídico da entidade, afirma que “obrigar as empresas a expor publicamente informações dos funcionários pode configurar violação ao direito à livre-concorrência, por dar acesso às suas políticas salariais, e também violar a LGPD.”
Na avaliação de Unes, apesar de os nomes ficarem em sigilo no relatório, há casos em que será possível identificar o titular dos dados. Ele cita os exemplos de empresas de pequeno porte ou de empresas com cargos ocupados por um único funcionário, como nas áreas de gerência e diretoria.
Ao Estadão, o MTE informa que “o relatório não vai expor os dados individuais de ninguém”. Para isso, diz, vai acompanhar uma metodologia internacional, utilizando porcentagem de diferença. “Usaremos os grandes grupos de ocupação que são similares na classificação nacional (CBO) e nas classificações internacionais (ISCO), o que diminui a possibilidade de não haver menos que cinco pessoas em cada grupo.”
Inconstitucionalidade
Segundo o Ministério, os relatórios por CNPJ, conforme disposto na lei, serão disponibilizados para as empresas no site do Programa de Disseminação das Estatísticas do Trabalho (PDET). Em março de 2024 já serão divulgadas as informações da média salarial dos meses de janeiro a dezembro deste ano. Em setembro, a base serão os dados de janeiro a julho.
Caso seja mantida essa exigência, a Fiesp avalia levar o caso à Confederação Nacional da Indústria (CNI), que pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela inconstitucionalidade da divulgação pública de dados confidenciais. Também há riscos de os funcionários recorrerem à Justiça contra as empresas por terem seus dados expostos. A CNI não comentou o assunto.
Cada empresa fará sua avaliação e não vai divulgar o que não estiver de acordo com a Constituição e buscará proteção judiciária”
Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea
O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite, diz que, para o setor, a lei em si não terá impacto significativo, pois as empresas já trabalham na busca dessa igualdade. Ele avalia, contudo, que a divulgação dos dados caracteriza um conflito com a LGPD. “Cada empresa fará sua avaliação e não vai divulgar o que não estiver de acordo com a Constituição e, se preciso, buscará proteção judicial.”
Na fase de realização do plano de ação para mitigar as discrepâncias salariais, a empresa deverá chamar o sindicato que representa os funcionários para participar do processo de sua elaboração e acompanhar a adoção. “Vamos acompanhar de perto o cumprimento das medidas, pois essa lei cria mais musculatura para nossa atuação nas empresas da região, onde já trabalhamos com esse tema e temos tradição de negociações”, diz a diretora executiva do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Andrea Souza.
Lei ‘generalista’
O sociólogo José Pastore, professor de Relações do Trabalho da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA-USP) e especialista em mercado de trabalho e legislação, considera a lei “generalista”. Segundo ele, estudos nesse campo mostram que as diferenças de salário e remuneração são determinadas por inúmeros fatores e não apenas por preconceito e discriminação.
Ele afirma ter vasto material bibliográfico confirmando preconceitos, discriminação de mulheres, negros, idosos e outros, mas que ”não se pode atribuir todas as diferenças salariais a essas discriminações, que seriam só uma parte do processo”. Também há casos, diz ele, em que gratificações, comissões, prêmios, bônus e gorjetas são atribuídos com base no desempenho pessoal ou atingimento de metas.
“Essa lei e sua regulamentação geram insegurança jurídica para as empresas e alimenta muitos conflitos potenciais”, afirma Pastore. Ele informa ainda que participou das várias comissões que avaliaram a lei de igualdade salarial de gêneros, e expôs essas questões também a deputados, senadores e membros do governo, “mas ninguém levou em conta”.
Insegurança
O escritório de advocacia Ambiel, Manssur, Belfiore & Malta Advogados tem recebido várias demandas de empresas que querem entender melhor a lei. “Está gerando muita insegurança por parte do mercado; embora o objetivo seja nobre, ao fazer (a lei) dessa forma, o governo está trazendo outros riscos que podem ter consequências”, afirma Carlos Eduardo Ambiel, sócio do escritório.
Ele também avalia que podem ocorrer muitos processos de judicialização relacionados à conflitos com a LGPD e com a lei da concorrência. “Mudar essa relação é um processo de longo prazo e não se espera que as diferenças salariais, hoje em torno de 20% entre mulheres e homens, se resolva no curto prazo”, acrescenta Ambiel.
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Baixa participação de mulheres
Um dado que preocupa outro grande escritório, o Mattos Filho, tem como base o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa feita em 2019 voltada às questões de gênero cita que, em alguns cursos universitários, a participação de mulheres é baixa. Por exemplo, mulheres em cursos de ciência da computação eram 13% dos alunos e, em cursos de engenharia, 30%.
“As empresas que dependem de profissionais dessas áreas para o desenvolvimento de suas atividades obviamente vão ter mais homens, porque o mercado de trabalho não oferece mulheres com esse tipo de formação”, diz Érika Seddon, da área Trabalhista do Mattos Filho.
Em sua opinião, o governo precisa pensar em políticas públicas que estimulem as meninas a buscarem esses cursos que, afinal, vão ser os mais utilizados pela economia 4.0. “Meu receio é que, daqui a alguns anos, vai estar muito pior, porque o mercado precisará de mais pessoas ligadas às ciências exatas e à tecnologia e não haverá mulheres formadas, o que seria um cenário ruim.”
Esse estudo também mostra que as mulheres ganham 77,8% da remuneração dos homens. Pastore cita outro “ponto delicado” sobre a proporção de mulheres e homens por ocupação e cargo. Em muitos casos, diz o professor, a desproporção é fruto da natureza da ocupação, como a profissão de motoristas de ônibus, ajudantes de caminhões, eletricistas, pedreiros e carpinteiros.
Também ocorre o inverso em profissões em que as mulheres são maioria, como enfermagem, educação no ensino fundamental, assistência social e psicologia. “Não se sabe qual é a pretensão do Ministério do Trabalho neste campo, pois muitas das desproporções são culturalmente insuperáveis no curto e médio prazos”, afirma Pastore.
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