Leilão de arroz foi vencido por mercearia de bairro, fabricante de sorvetes e locadora de carros

Firmas sem afinidade com a importação de arroz ganharam leilão para vender 263 mil toneladas de arroz à Conab; estatal diz que empresas serão multadas se não depositarem garantia até quinta, 13

PUBLICIDADE

Publicidade
Foto do author André Shalders
Foto do author Mariana Carneiro
Foto do author Daniel  Weterman
Atualização:

BRASÍLIA - Uma fabricante de sorvetes, uma mercearia de bairro especializada em queijo e uma locadora de veículos estão entre as vencedoras do leilão promovido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a compra de 263 mil toneladas de arroz. Concluído nesta quinta-feira (06), o certame foi realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a importação de 263,37 mil toneladas do grão, ao preço de R$ 1,31 bilhão. Procurada, a Conab disse que não conhece, durante o leilão, quais são as empresas participantes e que os nomes delas só aparecem depois de fechada a operação.

A mercearia Queijo Minas, em Macapá (AP): contrato de R$ 736 milhões com o governo federal Foto: Google Maps / reprodução

PUBLICIDADE

O objetivo do governo é conter o aumento de preços do arroz – cultura realizada principalmente no Rio Grande do Sul e atingida pelas inundações que castigaram o Estado no mês passado. Os produtores e beneficiadores de arroz questionam a iniciativa, alegando que há oferta de arroz no mercado brasileiro e que o governo fará uma intervenção em toda a cadeia, uma vez que além da importação fará a venda do arroz com marca própria nos supermercados.

Das quatro empresas vencedoras do leilão de ontem, apenas uma – a Zafira Trading – é uma empresa do ramo. A empresa atua no comércio exterior desde 2010 e ganhou o direito de vender 73,8 mil toneladas de arroz, a R$ 368,9 milhões – o montante corresponde a 28% do total negociado no leilão. O Tribunal de Contas da União (TCU) foi acionado pelo partido Novo para apurar e suspender o resultado do leilão.

A maior fatia foi arrematada por uma mercearia de bairro de Macapá (AP). Ao todo, a Wisley A. de Sousa LTDA, cujo nome fantasia é “Queijo Minas”, ganhou o direito de vender 147,3 mil toneladas de arroz para a Conab, ao preço de R$ 736,2 milhões. Por meio de seus advogados, a empresa disse ter condições de cumprir o edital.

A Icefruit, uma empresa cuja sede fica em Tatuí (SP), arrematou dois lotes do leilão, oferecendo 19,7 mil toneladas de arroz à Conab por cerca de R$ 98 milhões. Pelo cadastro na Receita Federal, é uma empresa média, cuja primeira atividade é a produção de conservas de frutas, alimentos e sorvetes. Ela também é registrada para atuar no comércio de alimentos.

O dono da empresa é Marco Aurélio Bittencourt Junior, que se tornou sócio no ano passado. Em nota, a empresa informou que tem experiência na importação e exportação de frutas e alimentos e que a operação de venda de arroz para a Conab é um “novo desafio”. “A empresa está com toda documentação em dia, com a carta de garantia e seguro e só vai receber do governo federal após a entrega do produto”, acrescentou.

O terceiro maior lote do leilão ficou com uma locadora de veículos do Distrito Federal, a ASR Locação de Veículos e Máquinas – como o nome diz, o principal negócio da empresa é o aluguel de maquinários. O dono, Crispiniano Espindola Wanderley, presidiu uma cooperativa de transportes públicos no Distrito Federal de 2002 a 2009. Citado em um inquérito que tinha como alvo o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), Wanderley disse em depoimento ter pago R$ 350 mil ao político, em vantagem indevida. Condenado num primeiro momento, Fraga acabou inocentado da acusação.

Publicidade

Após a publicação da reportagem, Wanderley afirmou que a empresa é de médio porte e tem um capital social registrado de R$ 5 milhões. “Temos experiência em participar de leilões do governo federal, fomos ganhador do leilão realizado pela Conab em dezembro passado, assinamos contrato vendemos e entregamos para o governo da Bahia 211 mil sacas de milho”, disse o dono da empresa.

CONAB1 - ECONOMIA - ROTULO / ARROZ - Rótulo do arroz que será vendido pelo governo federal a preço tabelado. Foto Conab/Divulgação Foto: Conab/Divulgação

Quando foi fundada, em setembro de 2006, a mercearia Queijo Minas possuía capital social de apenas R$ 80 mil. No mesmo dia do anúncio do leilão pelo governo, em 29 de maio deste ano, a empresa alterou seu capital social para R$ 5 milhões, e deixou de ser uma microempresa, de acordo com informações da Junta Comercial do Amapá.

Para garantir o negócio, o empresário Wisley Alves de Sousa, dono da mercearia, terá de pagar uma caução de R$ 36,8 milhões à Conab até a próxima quinta-feira, 13, e ainda dar conta de entregar o produto no Maranhão, em Minas Gerais e em Pernambuco até setembro – e há certo ceticismo em relação a isso.

“No dia 13 a gente vai saber exatamente de quem nós estamos falando. Agora, eu não posso falar sobre quem vai ou quem não vai entregar o produto. Eu só tenho uma certeza que eu posso falar para você: a Conab vai fazer três fiscalizações. Prejuízo financeiro para o governo não vai ter nenhum”, afirmou o diretor de Operações e Abastecimento da Conab, Thiago dos Santos.

O capital social é uma estimativa feita pelos sócios de uma empresa do valor necessário para iniciar as operações, e não se confunde com a capacidade de pagamento da firma.

Outro dado que sugere a falta de capacidade da Queijo Minas para concluir o negócio aparece em uma ação de execução fiscal contra a empresa, iniciada em meados de 2022 pela Secretaria da Fazenda do Amapá. O governo local cobrava supostos débitos de ICMS não recolhido pela firma, no montante de R$ 825,9 mil. Com juros, multa e correção, o valor chegou a R$ 2,9 milhões, nos cálculos da Fazenda Estadual – o valor é contestado pelos advogados da firma.

No processo, que foi suspenso em maio passado, os advogados pedem (em agosto de 2022) que a Justiça reduza o pagamento inicial das custas processuais, pois a empresa não poderia arcar naquele momento com o pagamento de R$ 26,7 mil em custas.

Publicidade

“A embargante não tem condições financeiras para custear o total das custas sem prejudicar o funcionamento da empresa, como por exemplo o pagamento de funcionários, posto que, agora que efetivamente a empresa voltou ao regular funcionamento em virtude de passar toda a pandemia fechada”, diz um trecho.

À reportagem, o advogado Riano Valente Freire, que representa a empresa, disse que as custas já foram pagas e que a Queijo Minas terá condições de cumprir com o edital. “A empresa tem total condição de arcar com todos os custos da operação e de cumprir o previsto no edital”, disse o advogado, por e-mail.

Wisley Alves de Sousa já foi ouvido em um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apurou possíveis crimes de fraude a licitação e desvio de verbas públicas por parte do ex-deputado federal Roberto Góes, na época em que o político era prefeito de Macapá (AP). Uma investigação do Tribunal de Contas do Amapá encontrou “indícios de sobrepreço na aquisição de utensílios de cozinha” para a Secretaria de Educação da prefeitura, na gestão de Góes, em 2010.

Na ocasião, a empresa de Wisley, que se chamava Distribuidora Premium, acabou contratada por R$ 352 mil pela Secretaria de Educação para fornecer os equipamentos. O Tribunal de Contas do Estado apurou sobrepreço, isto é, pagamentos inflados, no valor de R$ 113,6 mil. Durante a investigação no STF, a licitação foi reexaminada pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC), ligado à Polícia Federal, que “confirmou a ocorrência de sobrepreço em 17 itens do Pregão (...), na ordem de R$ 172.939,85″.

Iniciada em 2015, o caso foi arquivado no STF em 2018, a pedido da então procuradora-geral da República Raquel Dodge – mas apenas porque não ficou provada a participação de Roberto Góes na fraude da licitação. “Apesar de comprovada a materialidade, o inquérito policial não reuniu provas da participação do congressista nos ilícitos apurados”, escreveu Dodge. Atualmente, Roberto Góes é deputado estadual no Amapá pelo União Brasil e vice-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Após a publicação da reportagem, a Wisley afirmou, em nota, que a empresa “tem solidez e mais de 17 anos de experiência no comércio atacadista, na armazenagem e na distribuição em todo Brasil de produtos alimentícios, com um faturamento mais de R$ 60 milhões apenas no ano passado”. “A empresa lamenta que grupos com interesses contrariados estejam tentando afetar sua imagem e deturpar a realidade num momento em que é essencial o país encontrar formas de assegurar o abastecimento de arroz para a população”, diz a nota.

As três empresas não costumam participar dos leilões da Conab - a ASR apareceu em um leilão no ano passado, organizado pela estatal para a venda de milho em uma operação para o governo da Bahia.

Publicidade

A Conab alega que as vendas foram feitas por meio das bolsas de alimentos, a Bolsa de Mercadorias do Mato Grosso (BMT) e a Bolsa de Cereais e Mercadorias de Londrina, que cadastraram as empresas interessadas em fazer ofertas de arroz importado ao governo federal.

Caso elas não apresentem até a próxima quinta-feira uma garantia equivalente a 5% do valor ofertado, serão multadas em 10% do valor da operação e banidas por dois anos dos leilões da Conab. As bolsas que as representaram no leilão também deverão ser punidas.

Grandes empresas que operam no mercado de arroz ficaram de fora

O presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Caio Carvalho, afirma que o setor se posicionou contra a compra de arroz importado pelo governo desde o início, o que pode ter resultado na ausência das empresas do leilão.

“A obviedade disso é o movimento da CNA, a Confederação Nacional do Agro, e de outros junto ao Supremo. Ou seja, todo mundo é contrário. O governo está absolutamente sozinho nisso. Sozinho e insistindo”, disse Carvalho.

Para o diretor da Conab, Thiago Santos, as margens apertadas oferecidas pelo governo, além de uma liminar na véspera suspendendo o leilão, podem explicar por que as empresas ficaram de fora.

Segundo Santos, 13 bolsas de alimentos do País se cadastraram para o leilão e, na hora marcada para a oferta, seis delas apareceram, mas só duas fizeram lances de oferta. Dos 27 lotes em que as empresas poderiam fazer oferta de arroz, só apareceu mais de um interessado em apenas dois, no Maranhão. No restante, levou a única empresa que fez um lance à Conab ou não apareceram ofertantes.

“Na hora do leilão, o que aparece para mim é apenas o lance da bolsa, não aparece que empresa é. Eu só sei que tem uma empresa que está dando um lance através de uma bolsa, mas eu não sei qual empresa, porque é a bolsa que cadastra a empresa, que verifica as regularidades junto aos normativos da Conab e junto ao nosso edital para saber se a empresa pode ou não participar do leilão”, afirmou Santos.

Publicidade

O executivo reconhece que as empresas não têm experiência e afirma que a Conab pretende fazer “reuniões orientativas” com as empresas que honrarem com o pagamento da garantia, para ter certeza de que farão a entrega do arroz como combinado. O edital prevê que o arroz entregue seja do tipo 1 agulhinha e chegue ao Brasil embalado em sacos de cinco quilos com o rótulo do governo.

A Conab revenderá esse arroz a redes de supermercado e atacarejo para que seja vendido ao preço tabelado de R$ 20 o saco.

No dia do leilão, o presidente da Conab, Edegar Pretto, afirmou que o leilão havia sido politizado. “Não esperávamos a mobilização para impedir o leilão, houve uma politização desse assunto. Ou não compreenderam ou acharam oportunidade para fazer oposição (ao governo)”, disse o executivo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.