BRASÍLIA - Em cima de um palanque erguido em Boa Vista (RR), o presidente Jair Bolsonaro anunciava, em setembro do ano passado, o início da construção do linhão de Tucuruí, rede de energia planejada para ligar a capital de Roraima a Manaus (AM) e, assim, fechar a malha nacional de transmissão elétrica. “Essa data, para todos os brasileiros e, em especial, para homens e mulheres de Roraima, é marcante. É o início das obras do linhão”, disse Bolsonaro, aplaudido por quem acompanhava o ato. “Há mais de 10 anos, Roraima não estava integrada com o resto do Brasil na questão energética. Esse pesadelo, em menos de três anos, deixará de existir neste Estado maravilhoso”, declarou o presidente.
Um ano depois, nada aconteceu. Enrolado em questionamentos judiciais, letargia dos órgãos federais e falta de entendimento com o povo indígena que terá suas terras cortadas pelo traçado do projeto, o linhão não avançou um centímetro sequer. O Estadão apurou que, duas semanas atrás, o impasse para iniciar a obra foi tema de uma reunião com representantes da empresa Transnorte Energia, dona do projeto, com representantes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
No encontro, a Transnorte, uma sociedade de companhia privada Alupar e da estatal Eletronorte, detalhou sua preocupação com o atraso e deixou claro que, hoje, o acordo com os indígenas está selado, mas órgãos federais, como o Ministério de Minas e Energia (MME), o Ibama e a Funai, ainda não se posicionaram oficialmente, o que tem impedido o início das obras. “O que foi negociado foi aceito pela empresa e indígenas, resta o aceite do governo federal”, declarou a concessionária na reunião, citando o MME, a Funai e Ibama.
O linhão de Tucuruí foi leiloado em setembro de 2011, mas nunca saiu do papel por causa do impacto que a linha impõe à terra indígena Waimiri Atroari, onde hoje vivem mais de 2.300 indígenas. Dos 720 quilômetros de extensão da rede, 122 têm previsão de passar no meio da terra demarcada. Os indígenas não se posicionavam contra a obra de energia, mas exigiam ser consultados e ter suas condicionantes atendidas pela empresa.
No fim do ano passado, depois de Bolsonaro anunciar o início das obras, a Justiça Federal no Amazonas determinou que a construção poderia começar desde que fosse aceita a proposta de indenização da Associação do povo Kinja (ACWA), que representa o povo indígena. A decisão apontava que as compensações chegariam ao valor de R$ 133,089 milhões, além de medidas previstas ao longo dos anos de concessão.
Nas contas da concessionária, o valor pedido pelos indígenas ultrapassou em cerca de R$ 100 milhões a cifra proposta pela companhia. Ficou acertado em maio, porém, que esse acréscimo seria bancado pelo governo federal, com os recursos obtidos no processo de privatização da Eletrobras. Mas, na prática, nada disso se viabilizou até hoje, porque os acordos não se concretizam.
A Transnorte alega que só vai iniciar as obras quando tiver total segurança de que a passagem pela terra indígena está liberada. Hoje a empresa não pode sequer realizar a sondagem do trecho, conforme declarou à Aneel. “Existe uma sondagem antiga, que pode estar desatualizada. Não é permitido sequer parar o carro no acostamento da terra indígena”, informou a empresa.
A reportagem questionou o Ibama, a Funai e o Ministério de Minas e Energia sobre as causas do atraso em liberar a obra. O Ibama e a Funai não responderam aos pedidos de esclarecimentos. O ministério afirmou que “continua envidando esforços para viabilizar o efetivo desenvolvimento da ligação de Roraima ao Sistema Interligado Nacional, preservando o interesse público” e que, “nesse sentido, tem priorizado tratativas para homologação do acordo entre as partes no âmbito judicial.”
A Transnorte declarou que “todas as informações e tratativas com órgãos da administração constam dos respectivos processos administrativos, que são, igualmente, públicos”, e que “quaisquer dúvidas sobre atos da administração pública devem ser direcionadas aos órgãos responsáveis”.
A respeito da demora nas obras, a empresa afirmou que “o impacto para a sociedade brasileira, decorrente de atrasos na conclusão do empreendimento, é gigantesco”, porque, “além de não produzir os benefícios relativos ao desenvolvimento da economia, da geração de emprego e renda, deve-se somar, também, os gastos com combustíveis fósseis utilizados para gerar energia no estado de Roraima e os prejuízos ambientais oriundos dessa geração e das atividades de suporte necessárias para viabilizar tal produção de energia elétrica”.
Início de obras perde ‘janela seca’ e deve ficar para 2023
Uma das consequências do atraso para iniciar as obras da linha de transmissão é a perda da chamada “janela seca”, como é conhecido o período sem chuvas e que ocorre neste momento, na região entre Manaus e Boa Vista. Isso significa que, iniciado o período chuvoso, em meados de fim de novembro, a velocidade do trabalho no traçado da linha fica bem mais lento, o que pode impactar o cronograma geral da obra.
A concessionária Transnorte ressaltou, na reunião que realizou com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em agosto, que “já se passaram 12 meses da repactuação do contrato e que possivelmente será necessária uma nova repactuação em breve, tendo em vista os obstáculos enfrentados”.
Por contrato, o linhão de Tucuruí tem previsão se ficar pronto em 36 meses. A concessionária Transnorte prevê, no entanto, que só a obra dentro do trecho indígena demande de 24 a 30 meses de trabalho, por causa de uma série de compromissos que assumiram durante a execução da obra.
Entre as diversas regras exigidas está aquela que limita as frentes de trabalho no trecho indígena a, no máximo, dez grupos de funcionários. Outra determinação é que essas frentes não podem somar mais de 300 pessoas trabalhando na área.
Há ainda restrições sobre o horário. O acesso só pode se dar após o nascer do sol e todos os funcionários devem deixar a região até o pôr do sol. Equipamentos e materiais também estão proibidos de ficarem na terra indígena durante a execução da obra.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.