BRASÍLIA - O resultado do lucro do Banco Central no caixa do Tesouro Nacional tem potencial para reduzir em quase 10% a dívida pública interna brasileira, que já alcança R$ 4,151 trilhões. A equipe econômica está de olho em uma parcela de R$ 400 bilhões do resultado positivo do primeiro semestre, que superou R$ 500 bilhões. O repasse depende de aprovação do Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão formado por representantes do Ministério da Economia e do Banco Central.
Em tese, os recursos podem tanto ser usados para abater a dívida de uma tacada só quanto para garantir recursos para a rolagem, suavizando a necessidade de novas emissões.
Na terça-feira, 18, o secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, afirmou que o governo observa uma "severa restrição de liquidez" por causa da pandemia. Ou seja, segundo ele, há preocupação com a disponibilidade de recursos nos cofres do governo para honrar seus compromissos, especialmente de refinanciamento da dívida pública. Isso porque houve o que se chama de encurtamento da dívida do governo, o que obriga ao Tesouro ter mais recursos para a rolagem nos próximos meses.
Essa possibilidade de repasse ao Tesouro, antecipada pelo Estadão em maio, deve ser avaliada já no próximo encontro do CMN, marcado para o dia 27, como indicou Funchal. Basta o consenso dos integrantes do CMN para que a transferência de recursos seja confirmada.
Fazem parte do conselho o presidente do BC, Roberto Campos Neto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues.
O dinheiro servirá apenas para a gestão da dívida pública e não para ampliar gastos. Ainda assim, os recursos podem servir como uma sinalização positiva ao mercado de que o governo está atuando para segurar o avanço da dívida. O montante de R$ 400 bilhões equivale a 9,64% da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), que é a parte da dívida pública em títulos no mercado interno.
O Ministério da Economia já sinalizou que quer os recursos e o BC, por sua vez, que o ano de 2020 é "especial" e, por isso, uma transferência seria justificável. A questão agora gira em torno de quanto será transferido.
No centro das discussões está a Lei nº 13.820, de 2019, que estabeleceu uma nova relação entre BC e Tesouro. Antes da lei, sempre que o Banco Central registrava em seu balanço lucro cambial (com reservas internacionais, por exemplo), os recursos eram transferidos para o Tesouro. Quando havia prejuízo, era o Tesouro que cobria o rombo do BC, por meio da emissão e da transferência de títulos públicos. Essa dinâmica levava ao aumento da dívida pública.
Com a lei, os lucros do BC não são mais transferidos ao Tesouro: eles passaram a abastecer as reservas de resultado cambial. Assim, quando o BC tiver prejuízo cambial, as reservas são usadas para cobrir o rombo, sem precisar do auxílio do Tesouro. A dívida pública, portanto, não cresce.
Esse mecanismo também prevê que a reserva de resultado pode ser destinada ao Tesouro, para abatimento da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), no caso de "severas restrições nas condições de liquidez afetarem de forma significativa o seu refinanciamento". Seria um caso de exceção.
Na visão do Ministério da Economia, foi justamente isso o que ocorreu neste ano: com a pandemia de covid-19, o Tesouro foi obrigado a elevar as emissões de títulos, em especial nos últimos dois meses. "Do lado da demanda por títulos, o mercado está respondendo a este choque com o encurtamento da dívida", afirmou Funchal.
Ao mesmo tempo, a pandemia, apesar de desastrosa para a atividade econômica, provocou um efeito positivo para as reservas de resultado cambial do BC. Como o dólar disparou 35% ante o real no primeiro semestre, o BC registrou lucro com suas operações cambiais de R$ 478,5 bilhões no período, um recorde.
Com o acréscimo de R$ 42,6 bilhões que já estavam nas reservas de resultado desde 2019, o valor disponível saltou para R$ 521,1 bilhões. Parte desse montante é que será, com a autorização do CMN, transferido ao Tesouro.
"Isso tem que ser feito. Não existe a necessidade de a reserva de resultado ter essa quantidade de dinheiro", avaliou o consultor Raul Velloso, especialista em finanças públicas.
Segundo ele, o fato de o Brasil contar com reservas internacionais, hoje acima de US$ 350 bilhões, impulsionou o resultado cambial do BC durante a pandemia, na esteira do avanço do preço do dólar. "É como se fosse uma estatal que deu um lucro extraordinário. Tem que transferir para o Tesouro, principalmente no momento que estamos vivendo", defende Velloso.
Na noite de segunda-feira, 17, durante evento virtual, Roberto Campos Neto ponderou que é prudente "minimizar" a probabilidade de que, após uma transferência do BC ao Tesouro neste ano, ocorra operação inversa no ano que vem, caso a autoridade monetária registre prejuízo cambial no próximo exercício fiscal. Nesse aspecto, a tendência é de que apenas uma parcela dos R$ 521,1 bilhões seja transferida ao Tesouro, e não o valor total disponível.
Margem
Ainda que o valor transferido seja de R$ 400 bilhões, a sobra de R$ 121,1 bilhões nas reservas de resultado representaria uma margem razoável para cobrir eventuais prejuízos. Pela série histórica, iniciada em 2008, o maior prejuízo semestral do BC com operações cambiais ocorreu no primeiro semestre de 2016: R$ 184,6 bilhões. Em todos os demais períodos as perdas foram bem inferiores.
Naquele primeiro semestre de 2016, o dólar registrou queda de 17%, o que impôs fortes prejuízos, em reais, para as reservas internacionais - algo que não está no radar atualmente. A expectativa do mercado financeiro é de que o dólar encerre 2020 em R$ 5,20. Se confirmada, essa taxa representará uma queda de menos de 5% no segundo semestre.
Para Raul Velloso, a transferência ao Tesouro, se confirmada pelo CMN, será um fator positivo. "R$ 400 bilhões é dinheiro em qualquer país do mundo. Vai fazer bem ao Tesouro", afirma o consultor.
Ao abater parte da dívida pública, o governo também daria uma sinalização positiva ao mercado. "É uma indicação boa de que estamos enfrentando nossas necessidades através de uma correção que a crise traz sobre nossas disponibilidades de dólar", completou Velloso.