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Lula dá sorte com economia na largada, mas incertezas ainda pairam sobre percurso do governo

Série de fatores tem contribuído para melhorar o ambiente econômico, contendo os efeitos negativos dos juros altos, do endividamento das famílias e das dificuldades enfrentadas por setores do varejo e da indústria, independentemente do que o presidente fez até agora

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Foto do author José Fucs
Atualização:

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode reclamar dos juros altos, da autonomia do Banco Central, da postura independente do Congresso e dos empresários do agronegócio que não gostam dele. Também pode vociferar contra a austeridade fiscal, a privatização da Eletrobras e tudo o mais que não se alinhe com a agenda do PT e de seus aliados. Mas de uma coisa Lula não pode se queixar até agora, ao completar os primeiros seis meses de governo: da sorte, que está lhe sorrindo novamente, para desalento de seus adversários.

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Como aconteceu em seu primeiro mandato (2003-2006), quase tudo parece conspirar a seu favor, ainda que por motivos diversos dos que o favoreceram lá atrás. Talvez, desta vez, os frutos que isso proporcione aos brasileiros também não sejam os mesmos de então, nem durem tanto tempo.

Mesmo assim, é um cenário que tem facilitado – e muito – a largada do novo governo, ao conter os efeitos negativos dos juros altos, do elevado nível de endividamento das famílias e das dificuldades financeiras de setores do varejo e da indústria. “Na vida, a gente precisa dar um pouco de sorte”, diz o economista Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018).

Resiliência

Além da conjuntura externa favorável, marcada pela queda dos preços do petróleo e dos alimentos e pela resiliência demonstrada pelas economias dos Estados Unidos e da China, uma série de fatores internos, que pouco ou nada tem a ver com o que Lula fez até o momento na Presidência, tem contribuído para melhorar o ambiente econômico do País.

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Mesmo sem as medidas para aumento de arrecadação já adotadas ou prometidas por Haddad, o déficit nas contas públicas em 2023 já seria bem menor do que o previsto no Orçamento Foto: Wilton Junior/Estadão

Da queda da inflação e do dólar ao saldo comercial recorde e à supersafra agrícola, que puxa o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto); da geração de novas vagas com carteira assinada ao elevado nível dos reservatórios das hidrelétricas, as boas notícias que não dependem de ações do governo chegam de todos os lados.

Mesmo sem as medidas para aumento de arrecadação já adotadas ou prometidas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o déficit nas contas públicas em 2023 já seria bem menor do que o previsto no Orçamento, de 2,3% do PIB (Produto Interno Bruto).

“Nos primeiros seis meses, houve coisas que não foram feitas pelo Lula e que não dependem da política econômica que ajudaram o governo”, afirma o economista e consultor Gesner Oliveira, sócio da GO Associados. “2023 já está ganho. Já estamos na virada do semestre e parece que a coisa está caminhando sozinha”, diz Pedro Jobim, economista-chefe da gestora de recursos Legacy Capital.

Alguns dos fatores que estão beneficiando Lula, de acordo com os economistas ouvidos pelo Estadão, devem-se à herança recebida dos governos Temer e Bolsonaro. Embora Lula e seus aliados batam na tecla da “reconstrução” do País, repaginando a estratégia da “herança maldita”, atribuída ao governo FHC no primeiro mandato do petista, a percepção é de que muito do que está acontecendo de bom hoje é resultado de medidas implementadas após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.

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“O Brasil fez um pedaço grande do dever de casa de 2017 a 2022″, afirma Jobim. “Há uma herança, uma inércia e uma conjuntura global que, durante um ou dois anos, acabam condicionando mais o desempenho econômico do País do que as ações de um novo governo.”

Entre as medidas adotadas nos últimos anos com impacto positivo na economia, ele destaca a autonomia do Banco Central, que permitiu a prática de uma política monetária que levou à derrubada da inflação agora, as reformas da Previdência e trabalhista, os novos marcos regulatórios, a Lei da Liberdade Econômica e a “desalavancagem” do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que abriu espaço para a expansão do crédito privado e o crescimento do mercado de capitais.

Usina hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais: reservatórios das bacias estão cheios, com mais de 80% da capacidade de armazenamento Foto: Divulgação

No plano fiscal, conforme os números oficiais, a herança recebida por Lula também foi benéfica, embora muitos analistas critiquem os resultados deixados pelo governo Bolsonaro na área. De acordo com o Banco Central, o País fechou 2022 com um superávit primário de R$ 126 bilhões, equivalente a 1,3% do PIB, o maior desde 2013.

Segundo Hartung, apesar do adiamento dos pagamentos dos precatórios e da chamada PEC Kamikaze, que aumentou as despesas do governo em R$ 41 bilhões fora do teto de gastos, para concessão de benesses de todos os tipos às vésperas das eleições, houve também uma redução considerável dos desembolsos governamentais, de cerca de 20% para 18% do PIB.

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No setor privado, a grande contribuição para o atual cenário vem do agronegócio, cujo dinamismo tem garantido um crescimento econômico mais robusto do que se previa para 2023 e um saldo comercial recorde, com uma enxurrada de dólares que ajudou a derrubar a cotação da moeda americana abaixo de R$ 5.

Até São Pedro, que castigou o governo Bolsonaro em 2021 com uma estiagem que gerou a pior crise hídrica em 91 anos, acabou dando uma mão para Lula, mandando chuvas abundantes entre o fim de 2022 e os primeiros meses de 2023 em quase todo o País. Hoje, os reservatórios das hidrelétricas estão cheios, com mais de 80% de suas capacidades de armazenamento, permitindo a produção de energia por um custo menor. As chuvas favoreceram também o agronegócio e a queda dos preços dos alimentos.

Até a Câmara contribuiu para melhorar o cenário, segundo economistas, ao derrubar o decreto de Lula para alterar o novo marco legal do saneamento Foto: Wilton Junior/Estadão

Mesmo o Congresso, hoje dominado pela centro-direita e pela direita, fez a sua parte para melhorar o quadro, na visão de Gesner Oliveira, ao derrubar o decreto de Lula que alterava o marco legal do saneamento, que facilitou a participação da iniciativa privada no setor. “A Câmara deu um sinal importante de que certas mudanças defendidas pelo governo no ambiente regulatório não serão aprovadas”, diz. “Ainda há um grau de incerteza em relação à posição do Senado, que ainda não votou a matéria, mas a leitura do mercado é de que não deverá haver mudança nas regras do jogo.”

Agora, se 2023 está ganho, como diz Jobim, nada garante que tal situação vai se manter a partir do ano que vem, ainda que a esperada queda dos juros se confirme, mesmo que de forma lenta e gradual. “Alguns desses fatores que estão ajudando o governo são temporários. Essas coisas mudam”, afirma Gesner.

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A volta do fenômeno El Niño, que altera as condições climáticas, pode afetar negativamente os reservatórios das hidrelétricas e a produção agrícola entre o segundo semestre do ano e o primeiro semestre de 2024, de acordo com Gesner, com impacto na inflação e na política monetária.

‘Troca da guarda’

Além disso, há também no horizonte a “troca da guarda” no Banco Central, com a saída de Roberto Campos Neto do comando em 2025, ao término de seu mandato, e sua provável substituição pelo economista Gabriel Galípolo, ex-secretário-executivo do Ministério da Fazenda na atual gestão e indicado por Haddad para ocupar a vaga disponível de diretor de Política Monetária da instituição.

Com ideias mais heterodoxas, Galípolo tende a ser mais dócil com o Executivo, segundo Gesner, turbinando as incertezas no mundo das finanças sobre a atuação do BC nos dois últimos anos de mandato de Lula. “O mais provável é que a saída do Roberto Campos e a posse do Galípolo, se ele realmente assumir a presidência do Banco Central, seja como a substituição do Henrique Meirelles pelo (Alexandre) Tombini, em 2011, levando a uma mudança de orientação na política monetária.”

Há também muitas dúvidas sobre o desempenho da economia e das contas públicas nos próximos anos. Para o PIB, a estimativa é de um crescimento de apenas 1,2% em 2024, conforme o Relatório Focus, do BC, que apresenta a média das previsões dos bancos para os principais indicadores econômicos, quase a metade dos 2,2% projetados para este ano, que já está abaixo do patamar necessário para acelerar o desenvolvimento do País.

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Do lado fiscal, a meta de Haddad, embutida no novo arcabouço que está em votação no Congresso, é zerar o déficit primário em 2024. Mas, como o arcabouço está ancorado no aumento da arrecadação e não no corte de despesas, há muita especulação na praça sobre de onde o governo vai tirar essa receita.

“A lógica do novo arcabouço fiscal é arrecadar mais para poder gastar mais”, diz Jobim. “Só que, neste ano, a despesa real do governo está crescendo 8%. No ano que vem, pelas nossas contas, deve crescer mais 4%, o que dará um crescimento médio de 6% no primeiro biênio do governo. É muita coisa.”

Na avaliação de Jobim, isso vai levar inexoravelmente a aumentos da dívida pública em relação ao PIB e dos impostos que incidem sobre a iniciativa privada. “Mesmo que o crescimento do PIB em 2023 dilua isso um pouco, a única forma de esse arcabouço parar de pé e de a gente chegar às metas de superávit primário e de trajetória de dívida em relação ao PIB que eles preveem é o País ter um crescimento anual de pelo menos 2% e o governo arrumar cerca de 0,5% do PIB em receita adicional todo ano”, afirma. “Mas, como a carga tributária já é muito alta, a única forma de você fechar a conta é revertendo jurisprudência de impostos, como eles já estão fazendo, e encontrando passivos tributários, o que deve penalizar ainda mais o setor produtivo, que já está com uma despesa financeira elevada.”

Apesar de o manual de ciência política rezar que a hora de fazer as “maldades”, arrumando a casa e apertando o cinto, é no início do governo, e que as “bondades” devem ser deixadas para o fim do mandato, Lula resolveu pisar no acelerador dos gastos logo na largada, sem ter a receita correspondente para lastreá-los. Isso gerou um problema que ele terá de administrar durante todo o governo, para manter as contas públicas sobre relativo controle.

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“Sucesso de governo não é largada, é chegada. E governo não é corrida de 100 metros, é maratona”, diz Hartung. “Início de governo é hora de você queimar um capitalzinho político, parra aguentar a maratona, porque vai precisar de muito oxigênio no terceiro e no quarto anos. Depois, você recupera esse capital político lá na frente.”

Para o ex-governador capixaba, querer manter as contas sob controle sem se preocupar com os gastos é confiar na sorte. “A sorte é parte do processo, mas você não pode pendurar sua estratégia de quatro anos de governo na sorte. Mesmo Deus sendo brasileiro, como até o Papa Francisco falou brincando, precisamos fazer a nossa parte”, afirma. “Você procurar receita nova, olhar quem está sonegando e usando artifício para não pagar imposto, é sua obrigação. Agora, fazer um ajuste fiscal só de olho na receita nova, que você supõe que vai conseguir, é acreditar muito na sorte, em vez de fazer o que precisa ser feito para transformar esse cenário conjuntural positivo em algo permanente, estrutural, que seja sustentável.”

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