Governo, Congresso e setor privado querem chegar na Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP) deste ano com o projeto de lei que regula o mercado de carbono aprovado. Para isso, o Senado promete tentar aprovar, nesta terça, 5, o projeto de lei (PL) que cria o sistema e obriga empresas a compensarem suas emissões, já aprovado na Câmara. As duas casas ainda tentam aparar arestas em torno do projeto.
Uma vez aprovado, o texto precisa passar por sanção presidencial, regulamentação e terá um prazo para implementação. Mas já tem gerado preocupação dentro das empresas uma nova obrigação prevista, que tende a ser o primeiro passo para se adaptar à nova realidade: a de fazer o inventário e reportar suas emissões de gases de efeito estufa.
De acordo com o projeto em tramitação, o Brasil terá um sistema de comércio de emissões de gases semelhante ao adotado na União Europeia. Esse sistema se baseia no mecanismo de cap and trade (limite e comércio em inglês), em que são estabelecidas cotas de emissões para os entes regulados (empresas, por exemplo). Quem emitir menos toneladas de CO2 que sua cota pode vender a diferença para quem ultrapassou seu limite.
As empresas que estarão sujeitas ao mercado regulado serão aquelas com emissões de gases de efeito estufa acima de 25 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2eq) por ano. Mas aquelas que poluem menos também precisarão se adaptar: empresas que ultrapassem emissões de 10 mil toneladas de carbono por ano já devem enviar o relatório de emissões e remoções dos gases de efeito estufa (GEE).
“Diversos dos nossos clientes já estão se preparando para o que virá. Empresas com as quais temos contato já têm familiaridade com o mercado de emissões, já sabem o que tem de ser feito. Há diversas empresas que já estão familiarizadas, sabendo que precisarão adaptar algumas informações em razão das peculiaridades do PL. E há outras empresas, mas diria que poucas, que não são nada familiarizadas ainda”, diz a advogada Paula Mello, sócia do escritório Pinheiro Neto, na área ambiental.
O projeto foi aprovado no Senado e encaminhado à Câmara no ano passado. Em dezembro, deputados fizeram alterações. O texto entrou na pauta do Senado desta terça, 5, após negociações políticas entre governo, deputados e senadores. A intenção do mercado regulado é impulsionar as empresas a reduzirem suas emissões por meio, em um primeiro momento, do sistema de compensação.
“As empresas estão se preparando, e não só os setores de maior emissão. Temos visto pessoal de logística, rede hoteleira, o próprio agronegócio. É bem diversificado. Mas, invariavelmente, quem está fazendo são as empresas de ponta. Normalmente é quem já faz o dever de casa”, diz Yuri Rugai Marinho, sócio da Eccon, empresa que também desenvolve projetos de carbono.
Depois da sanção presidencial, será necessário trabalhar na regulamentação da lei. Na fase de implementação, as empresas terão apenas de reportar suas emissões, não sendo obrigadas a limitá-las.
“O PL também prevê um cronograma de implementação gradual do sistema, de maneira a possibilitar uma curva de aprendizado das empresas ao se adaptarem à nova legislação”, diz Viviane Romeiro, Diretora de Clima, Energia e Finanças Sustentáveis do Centro Empresarial Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (Cebds).
Estrutura de fiscalização
Será um desafio também para o poder público criar uma estrutura para fiscalizar e analisar as informações prestadas pelas empresas. “O maior desafio é aparelhar a estrutura estatal não só para os inventários públicos e fazer cálculos e estimativas confiáveis, mas também para fiscalizar. O PL será uma lei muito intensiva em obrigações, e esses órgãos não poderão ser demorados, não poderão levar o tempo que alguns órgãos ambientais levam para emitir licenças”, diz André Vivan, também sócio do Pinheiro Neto na área ambiental. Na leitura do advogado, o órgão responsável por analisar as emissões precisará ter um funcionamento parecido com o da Receita Federal.
“Nós estamos falando de milhões de inventários. Todo ano. Então, tem de ter tecnologia. Não dá pra ser PDF, não dá pra ser um relatório digitado”, diz Yuri Rugai, da Eccon.
Segundo Vivan, a tendência, no caso das empresas poluentes acima de 25 mil toneladas de CO2 equivalente por ano, é de que isso atinja indústrias de grande porte, e não apenas unidades que não façam uso intensivo de combustível fóssil.
Entre os grandes grupos, o inventário já é uma realidade. A maioria das empresas que compõem a rede do Cebds, por exemplo, já realiza inventários das emissões de carbono. Só 10% das associadas ao grupo não fazem esse processo atualmente. O Cebds reúne 111 grandes empresas, com faturamento somado que equivale a cerca de 50% do PIB brasileiro.
“Um exemplo de iniciativa que tem auxiliado o setor nessa jornada é o Programa Brasileiro GHG Protocol, desenvolvido pela FGVces e WRI, em parceria com o Cebds e o Ministério do Meio Ambiente, que visa a estimular e qualificar o desenvolvimento de inventários de emissões de GEE de empresas brasileiras”, diz Viviane Romeiro, do Cebds. O programa possui mais de 800 inventários em seu Registro Público de Emissões.
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O número ainda é baixo perto do universo de empresas que devem precisar passar a fazer esse inventário, segundo Felipe Viana, diretor comercial da empresa Carbonext. “Tem algumas empresas que têm pedido aos fornecedores o inventário de gás de efeito estufa. Mas isso não é regulado, então eu posso querer ou não querer fazer e não tem problema. Agora, a hora que tem um governo que vira e fala ‘todas as empresas que têm emissão acima de 10 mil serão obrigadas a reportar’ e eu não sei quanto que é a minha emissão, será preciso pagar uma consultoria pra fazer esse processo”, diz Viana. “Existe uma geração de demanda para a cadeia de sustentabilidade enorme que nasce com o PL.”
Ele pondera que, hoje, se cerca de 800 empresas no País fazem e compartilham o inventário, de um universo de 21 milhões de empresas no País, o mercado tende a crescer após a aprovação do PL. “Supondo descartar dois terços desses 20 milhões, estamos falando ainda de 7 milhões de empresas”, diz Viana. “Não há braço no Brasil para fazer a cadeia de descarbonização hoje como tem de ser feita. Existe uma geração de demanda para consultorias dentro de jornadas de descarbonização, começando com inventários”, diz.
Já Yuri Rugai, da Eccon, afirma que não há como estimar, inicialmente, o número de empresas que não fazem esse inventário e precisam se adaptar. Ele afirma, no entanto, que a procura pelo serviço tem crescido.
Vivan, do Pinheiro Neto, afirma que há setores que podem ser liberados da obrigação, se o governo entender que, dentro de um panorama nacional, a cobrança representar mais ônus do que bônus de redução de emissões. Segundo ele, isso se dá porque a maior fonte de emissões no Brasil não vem da indústria, mas das mudanças no uso do solo - associadas ao desmatamento. “Não está totalmente claro quem vai estar sujeito a essas regulamentações ainda”, diz.
Paula Mello, do Pinheiro Neto, diz que muitas empresas já estão familiarizadas com o assunto pois já entraram no mercado voluntário de carbono. “Acho difícil hoje achar empresas que não estejam familiarizadas com o assunto”, diz. “Talvez empresas de pequeno porte, uma ou outra de médio porte, mas não é um assunto totalmente novo que está pegando as pessoas de surpresa.”
Incerteza regulatória
Um estudo entre as empresas associadas ao Cebds mostrou que o principal desafio apontado pelas empresas, na jornada de descarbonização, é a incerteza regulatória. “Além disso, o segundo desafio mais citado foi o engajamento de suas cadeias de valor, cujas emissões compõem o chamado ‘Escopo 3′. O reporte eficaz de emissões indiretas, oriundas de cadeias de valor, ainda é um desafio relevante para grande parte das empresas brasileiras”, diz Viviane Romeiro. Este escopo de emissões, no entanto, não estará abarcado pelo chamado mercado regulado.
O mesmo levantamento mostra que outros desafios relacionados ao processo de construção do inventário e reporte de emissões são a falta de mão de obra capacitada dentro da companhia, a falta de padronização de dados provenientes dos fornecedores (emissões do escopo 3), a falta de precisão dos dados e a falta de sistematização e processos estruturados e amplamente comunicados de coleta de dados dentro da companhia.
“O principal desafio hoje é operacional. Temos o desafio metodológico, mas usamos o GHG protocolo, a maioria usa, já faz há alguns anos. Onde a dor é maior? Imagine pegar uma empresa inteira, com todos os seus funcionários, todos os recibos, todos os destinos, transformar isso em gasolina, diesel, querosene de aviação, álcool. São milhões de arquivos, documentos. E quando você começa a fazer estimativas, arredondamentos, a margem de erro cresce e já não fica mais um dado confiável”, diz Rugai. “Uma eficiência maior no trato dos dados é muito desejada.”
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A criação desse mercado foi prevista em 2009 pela Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Apesar de a lei não estabelecer um prazo para a criação do mercado, ela já dava diretrizes para isso.
Por mais de cinco anos, no entanto, pouca coisa foi feita no Brasil, e as discussões em torno de um mercado regulado só começaram a ganhar tração com o Acordo de Paris, em 2015, e conforme a crise climática foi se agravando. No ano passado, a questão finalmente virou prioridade no governo federal, mas a aprovação do projeto de lei esbarrou em impasses políticos.
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