BRASÍLIA – Metade do que o governo conseguiu de espaço extra para gastar na última década foi usada para pagar emendas parlamentares. As despesas do Orçamento da União e o histórico de mudanças na Constituição mostram que, a cada folga orçamentária que o Executivo negociou com o Congresso, teve que pagar um “pedágio” para as indicações dos congressistas entre 2015 e 2023. Em 2024, a previsão segue a mesma tendência.
A equipe econômica do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estuda uma agenda de revisão de gastos. Especialistas indicam a necessidade de corte de despesas para sustentar o arcabouço fiscal. No último dia 26, o presidente Lula questionou a necessidade de cortes. “O problema não é que tem que cortar, o problema é saber se precisa efetivamente cortar ou se a gente precisa aumentar a arrecadação.”
Após alertas do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e reações do mercado financeiro com alta do dólar, Lula voltou atrás e reforçou o compromisso com a responsabilidade fiscal. “Aqui, neste governo, responsabilidade fiscal não são palavras, mas é um compromisso desse governo desde 2003″, afirmou o petista no Palácio do Planalto, na quarta-feira, 3.
Em entrevista ao Estadão, a secretária nacional de Planejamento, Virgínia de Ângelis, afirmou que a revisão de gastos precisa deixar claro quais são os objetivos do corte de despesas pretendido pelo Executivo, sob risco de o novo espaço fiscal ser ocupado por mais emendas parlamentares.
“Quando você faz a revisão, ela não é simplesmente para gerar espaço fiscal; é gerar espaço fiscal para quê? Se for para pagamento de serviço da dívida, isso tem que estar muito claro. Se for para realocar em prioridades do governo, são quais prioridades?”, disse a secretária. “Se a gente não tiver clareza sobre isso, podemos ter um novo aumento do porcentual de emendas impositivas individuais, por exemplo.”
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O efeito acontece desde 2015, quando as emendas individuais (aquelas indicadas por cada deputado e senador no Orçamento) começaram a ser pagas de forma impositiva. Atualmente, aproximadamente 20% dos recursos livres da União, incluindo manutenção dos serviços públicos e investimentos, ficam com o Congresso e são os parlamentares que escolhem para onde vai o dinheiro, sem tutela do Executivo, que controla o caixa e os pagamentos.
Entre 2015 e 2023, as despesas não obrigatórias (investimentos, manutenção de serviços públicos e custeio dos órgãos federais) aumentaram em R$ 65,3 bilhões, com sucessivas mudanças nas regras fiscais e nos limites de gastos. As emendas, por sua vez, ficaram com R$ 32,3 bilhões desse crescimento, capturando 50% do aumento. Em 2024, o espaço adicional no Orçamento da União deve chegar a R$ 100,2 bilhões em nove anos, com 47% sendo destinado às emendas.
Aumento de emendas acompanhou mudanças na Constituição e crescimento de gastos
O governo conseguiu aprovar o teto de gastos em 2016, limitando o crescimento de despesas da União à inflação do ano anterior, mas as emendas continuaram capturando mais recursos dentro desse espaço. Em 2019, as emendas de bancada (indicadas pelo conjunto de parlamentares de cada Estado) também passaram a ter pagamento impositivo.
Em 2020, o Executivo federal começou a pagar o orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão com dinheiro distribuído pelo governo em troca de apoio político, e a emenda Pix sem transparência, em caso também revelado pelo Estadão.
O antigo teto sofreu uma série de “furos”, com alterações na Constituição para abrir espaço fiscal, que vieram acompanhadas de mudanças ampliando os recursos nas mãos dos parlamentares. Foi o que ocorreu com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, em 2021, e da PEC do Auxílio Brasil, em 2022, que deram folgas para os gastos do governo, mas também foram custeadas com aumento de emendas.
O fenômeno se intensificou no governo do presidente Lula. Em 2022, após a vitória do petista nas eleições, o Congresso aprovou a PEC da Transição, com aumento de recursos para a nova gestão, a pedido da equipe de transição. Desta vez, novamente, as verbas parlamentares capturaram uma parcela dos recursos extras, aumentando de tamanho com o crescimento das emendas individuais e as emendas de comissão. Em 2023, veio o novo arcabouço fiscal, mais flexível que o teto, e o governo deu aval para um aumento ainda maior de emendas, que se concretizou em 2024.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), defendeu, na abertura do ano legislativo, em fevereiro, o poder dos parlamentares definirem para onde vão os recursos da União. Ele afirmou que o Orçamento não pode ser só do Executivo, que “não gasta a sola de sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós parlamentares, senadores e deputados.” Antes das eleições, Lula classificou o Congresso com o “pior da história” em função das emendas, mas deu aval para a continuidade do orçamento secreto, sob nova roupagem, e bateu recordes em liberação de recursos indicados por deputados e senadores.
Em 10 anos, a maior parte das emendas (49%) foi direcionada para a saúde. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que as indicações direcionadas para essa área beneficiaram mais as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, mas houve inconstância dos montantes recebidos por localidades. Roraima, por exemplo, gastou 191,30 reais por habitante com dinheiro de emendas para custeio dos serviços de saúde em 2022, enquanto São Paulo gastou 30,40 reais. Ao mandar uma emenda, o critério é político, e o dinheiro não vai necessariamente para quem mais precisa.
“Esse montante de recursos de emendas não pode crescer dessa forma. É preciso ter um limite e a alocação deve observar a forma como o sistema de saúde se organiza”, diz a pesquisadora Fabiola Sulpino Vieira, uma das autoras do estudo. “O governo já faz uma orientação sobre onde recurso deveria ser colocado, mas a indução precisa ser mais forte e organizada. Por parte do parlamentares, é preciso entender que ampliar o recurso por emenda pode gerar desequilíbrios na oferta de serviços para a população.”
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