Desde os primórdios da civilização, a pobreza tem sido um problema capital para a humanidade. Ainda hoje, apesar de a renda per capita global ter crescido de forma exponencial desde a Revolução Industrial, uma parcela significativa da população mundial continua a viver na miséria, colocando a questão no centro do debate político, econômico e intelectual em todo o planeta.
Mas, nos últimos trinta anos, embora muita gente não se tenha dado conta, a pobreza extrema – que engloba o contingente com renda per capita inferior a US$ 2,15 (R$ 10,75) por dia em valores de 2017, pela paridade do poder de compra (PPP) – teve uma redução extraordinária no mundo. Foi a maior queda no número de pessoas em situação de vulnerabilidade, no menor prazo, ocorrida em todos os tempos.
De 1990 a 2022, a população que vive abaixo da linha da pobreza foi praticamente dividida por três, segundo dados do Banco Mundial, caindo de dois bilhões (38% do total) para menos de 700 milhões de pessoas (8,5%) – e grande parte deste resultado notável se deve ao desempenho da Ásia, que concentra 60% dos habitantes e cerca de 40% do PIB (Produto Interno Bruto) globais.
Ambiente estável
A rigor, foi a contribuição da Ásia que fez com que a pobreza extrema diminuísse nesse período. No resto do mundo, embora a miséria tenha caído em termos relativos, o número de pessoas vivendo na extrema pobreza cresceu, de 384 milhões para 515 milhões. Enquanto isso, na Ásia, mais especificamente nos países localizados na Ásia Meridional e Oriental e na chamada região do Pacífico, onde a evolução foi mais acentuada, a população mais vulnerável diminuiu também em termos absolutos, de 1,6 bilhão para 166 milhões de pessoas. Ou seja, se não fosse pela Ásia, o total de pessoas na pobreza extrema no mundo teria subido e não caído, desde 1990.
Só nos últimos 20 anos, a Ásia tirou mais de um bilhão de pessoas da miséria. A população vivendo abaixo da linha de pobreza na Ásia Meridional e Oriental e na região do Pacífico, que representava 70,5% do total global em 2002, agora corresponde a 24,4%. Tal queda aconteceu mesmo num período em que o número de habitantes da região teve um aumento de 46,4%, de 3,2 bilhões para 4,7 bilhões.
Apesar de a China e a Índia, os dois países com a maior população da Ásia e do mundo, terem tido a maior influência na redução da miséria desde 1990, com o corte do nível de pobreza extrema de 72% e 47,6% da população para 0,1% e 11,9%, respectivamente, a queda da taxa – deflagrada pelo Japão a partir dos anos 1960 e pelos chamados Tigres Asiáticos (República da Coreia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura) a partir dos anos 1970 e 1980 – espalhou-se por toda a região (veja os mapas).
Para contribuir para a compreensão do fenômeno, o Estadão decidiu lançar uma série de reportagens especiais sobre a diminuição da pobreza extrema na Ásia. Iniciada com esta reportagem, que apresenta o quadro geral e aborda as razões que levaram a Ásia a obter um resultado tão expressivo neste quesito nas últimas décadas, a série vai dar um mergulho em três casos, a serem publicados nas próximas semanas, que mostram que a redução da miséria na região vai muito além da China e da Índia e se espalha por quase todos os países asiáticos.
O primeiro será o de Bangladesh, que vem ganhando visibilidade internacional nos últimos anos, com o corte da taxa de pobreza de 43% para 9,6% desde 2000. Depois, virá o caso da Indonésia, país com a maior população islâmica do planeta e a terceira maior da Ásia, que diminuiu o número de pessoas vivendo na extrema pobreza de 62,8% do total para 2,5%, entre 1990 e 2022. Por último, será a vez do Vietnã, que, apesar do regime marxista-leninista de partido único em vigor no país, seguiu o caminho da China e abriu sua economia, reduzindo a taxa de pobreza de 45,1% em 1990 para 0,7%.
Além do encolhimento da pobreza extrema, houve o surgimento de uma classe média considerável na Ásia, puxando o consumo de bens e serviços e dinamizando a economia. De acordo com o Banco de Desenvolvimento da Ásia (ADB, na sigla em inglês), que considerou como classe média os indivíduos de famílias com gastos per capita de US$ 3,20 a US$ 32 por dia em valores de 2011, quase 70% da população integravam o grupo em 2015 contra apenas 13% em 1981. “O forte consumo doméstico destes novos consumidores impulsiona o desenvolvimento das economias asiáticas assim como do resto do mundo”, afirma o ADB na publicação A viagem da Ásia para a prosperidade, lançada pela instituição em 2020.
É certo que, nos últimos três anos, desde o auge da pandemia, houve um ligeiro aumento no nível de pobreza em alguns países na região, como na maior parte do mundo, em decorrência da queda da atividade econômica, da alta dos juros e da inflação, da desaceleração da globalização e mais recentemente das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio.
Em 2022, conforme uma projeção realizada pela Statista, uma plataforma online alemã especializada em coleta e divulgação de dados, a pobreza extrema atingia cerca de 4% da população da Ásia, ante uma previsão de 2,2% feita antes da pandemia – um resultado que, segundo o Banco Mundial, representou “o maior retrocesso nos esforços para a redução da pobreza global desde 1990″, colocando em risco o cumprimento da meta da ONU de zerar a miséria no mundo até 2030.
É certo também que as médias da região mascaram a disparidade existente entre os diferentes países asiáticos e os desafios que há pela frente para aprofundar a redução da pobreza extrema. O Afeganistão, o Timor Leste, o Nepal, o Laos e a própria Índia, com índices de 49,4%, 24,4%, 8,2%, 7,1% e 11,9%, respectivamente, ainda estão bem distantes de países como República da Coreia, China, Malásia e Tailândia, cujos indicadores estão próximos de zero, no enfrentamento da pobreza extrema.
Além disso, quando se sobe um pouco a barra e se considera uma renda ou gasto per capita inferior a US$ 3,65 por dia, em vez de US$ 2,15, o número de pessoas enquadradas na faixa mais baixa da pirâmide aumenta para 930 milhões, quase seis vezes mais do que quando só o grupo mais vulnerável entra na conta. Se a barra subir ainda mais, para US$ 6,85 per capita por dia, o total de pessoas pertencentes à categoria chega a 1,2 bilhão.
As ressalvas, porém, não chegam a ofuscar o saldo acumulado pela Ásia na diminuição da pobreza extrema nos últimos trinta anos. Em 1990, de acordo com um estudo da Brookings Institution, uma ONG com sede em Washington (EUA), havia sete países asiáticos entre os dez primeiros colocados na lista dos que tinham as maiores taxas de pobreza no mundo – China, Índia, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Vietnã e Mianmar. Hoje, não há mais nenhum – nove são da África Subsaariana e um da América Latina (Guatemala). O Afeganistão, que é o país asiático mais pobre, com uma taxa de pobreza de 49,4%, ocupa o 18º lugar no ranking.
Por trás dessa redução espetacular da pobreza extrema na Ásia nas últimas décadas, como afirmam de forma unânime economistas, cientistas sociais e instituições multilaterais, está o “milagre” econômico que ocorreu na região, puxado pelo crescimento acelerado, principalmente da China, que abriu sua economia em meados dos anos 1970, interrompendo um período de trinta anos de controle absoluto do Estado sobre a produção, iniciado com a implantação do comunismo no país.
Como no caso da redução da pobreza, os números do crescimento asiático no longo prazo são impressionantes, apesar da desaceleração registrada após a pandemia, que ainda aflige os países da região. Segundo a Statista, a Ásia Meridional teve um crescimento médio de 5,6% ao ano entre 1982 e 2021 e a Ásia Oriental e a região do Pacífico, de 4,9%, enquanto na África Subsaariana ele foi de 3% ao ano, no Oriente Médio e Norte da África, de 2,9%, na América do Norte, de 2,6%, na América Latina e no Caribe, de 2,3%, e na Europa e Ásia Central, de 1,9%.
“Historicamente, nada funciona mais que o crescimento econômico para as sociedades melhorarem as condições de vida de seus integrantes, incluindo as mais desfavorecidas”, diz o economista Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em seu livro Uma economia, muitas receitas: globalização, instituições e crescimento econômico.
Um estudo sobre o que move o desempenho dos países de alto crescimento do mundo, divulgado em 2018 pela McKinsey, uma das principais empresas internacionais de consultoria, mostra que apenas sete países e territórios emergentes com mais de cinco milhões de habitantes tiveram um aumento do PIB per capita de mais de 3,5% ao ano, em média, nos últimos 50 anos (entre 1965 e 2016), todos asiáticos – China, Hong Kong, Indonésia, Malásia, Cingapura, República da Coreia e Tailândia.
Entre as 11 economias emergentes que cresceram ao menos 5% de 1995 a 2016, oito são da Ásia Meridional, Central e Oriental – Índia, Cambodja, Vietnã, Mianmar, Laos, Casaquistão, Usbequistão e Turcomenistão. Num período mais curto, entre 2011 e 2018, outros três países asiáticos se destacam no estudo da McKinsey, com crescimento de pelo menos 3,5%, em média, ao ano – Bangladesh, Filipinas e Sri Lanka. Não por acaso, a Ásia contribuiu, de acordo com a consultoria, com 57% do crescimento do PIB global entre 2015 e 2021.
O “milagre” econômico asiático teve um efeito direto no bem-estar da população. Entre 1960 e 2022, o PIB per capita dos países da Ásia Meridional passou de US$ 330, em valores de 2010, para US$ 1.986 em 2022, conforme o Banco Mundial – seis vezes mais. Na Ásia Oriental e na região do Pacífico, o PIB per capita cresceu quase 11 vezes, de US$ 1.112 para US$ 12.090 no mesmo período, e o do Brasil, 3,4 vezes, de US$ 2.578 para US$ 8.831, também em valores de 2010, enquanto o PIB mundial aumentou apenas três vezes, de US$ 3.613 para US$ 11.314.
Além de gerar empregos em profusão e engordar mais rapidamente a renda da população, o crescimento acelerado alavanca o desenvolvimento humano, ao permitir que as pessoas cuidem melhor da saúde, comam melhor e possam viver mais, de acordo com outro estudo sobre a questão, realizado pelo Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Reino Unido, hoje rebatizado de Escritório para Comunidade Estrangeira e Desenvolvimento (FCDO na sigla em inglês).
O crescimento, conforme o órgão britânico, gera também círculos virtuosos de prosperidade e oportunidade. “Crescimento forte e oportunidades de emprego aumentam os incentivos para os pais investirem na educação de seus filhos colocando-os na escola. Isso pode levar à emergência de um forte e crescente grupo de empreendedores, que podem fazer pressão para melhorar a governança”, diz o estudo. “Há preocupações de que o trabalho informal, tradicionalmente visto como involuntário, aumente com o crescimento da economia, enquanto o trabalhador aguarda uma vaga de emprego formal, que também sobe. Embora o trabalho informal seja melhor do que nada, tem se assumido que ele é a segunda melhor opção, depois do emprego formal. Evidências recentes, porém, sugerem que o trabalho informal não deve ser encarado como algo pior do que o emprego formal, mas como uma alternativa legítima, que fomenta a ambição empreendedora.”
Subsídios polpudos
Ainda que o sistema de proteção social seja pouco desenvolvido na maioria da Ásia Meridional e Oriental e na região do Pacífico, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), vários países lançaram programas de apoio à população mais vulnerável nos últimos anos, contribuindo para reduzir a taxa de extrema pobreza.
As Filipinas, por exemplo, implementaram um programa nacional de transferência de renda que lembra o Bolsa Família, conforme o livro A viagem da Ásia para a prosperidade, do ADB. Também na Malásia e na Tailândia, de acordo com a publicação, os governos implementaram medidas destinadas aos ajudar mais pobres. A Mongólia lançou, em meados dos anos 1990, novos programas de proteção social, depois de os antigos terem o financiamento comprometido após o fim da União Soviética, que concedida subsídios polpudos ao país.
Na Índia, há um programa que combina transferências de renda com apoio ao emprego. Mesmo na China, onde a rede de proteção social é limitada, em comparação com países mais generosos, houve aumentos no salário mínimo e na ajuda governamental nas áreas rurais, segundo o livro do ADB. Seguindo uma tendência global, a China também lançou seu programa de renda mínima, o Dibao, hoje acusado no Ocidente de servir como ferramenta para o regime de Pequim controlar a população, ao negar ou suspender a concessão do benefício de forma pouco transparente.
‘Consenso asiático’
Agora, apesar de a maioria dos países da Ásia Meridional e Oriental estar colhendo os frutos da industrialização ocorrida nas últimas décadas, em maior ou menor grau, e da abertura da economia, com maior integração nas cadeias globais de produção, os caminhos para alavancar o processo de crescimento, que levou à redução da pobreza extrema na região, variaram muito.
“Não há essa coisa de ‘consenso asiático’”, afirma Takehiko Nakao, que foi presidente executivo e do conselho do ADB entre 2013 e 2020, no prefácio do livro A viagem da Ásia para a prosperidade. “Embora houvesse variações entre os países no mix de políticas e no timing, com retrocessos e tropeços ocasionais, as economias asiáticas bem-sucedidas perseguiram as políticas necessárias para o crescimento sustentável. Ao longo do tempo, elas abriram o comércio exterior, facilitaram o investimento estrangeiro, apoiaram o progresso tecnológico, investiram em saúde e em educação, mobilizaram altos níveis de poupança doméstica para investimentos produtivos, promoveram o desenvolvimento da infraestrutura, praticaram políticas macroeconômicas sólidas e implementaram políticas para inclusão e redução da pobreza.”
Nakao contesta a visão de que o elevado crescimento asiático se deveu à participação ativa do Estado nos negócios e na vida econômica dos diferentes países da região. “Faz tempo que eu acho que as discussões sobre o sucesso econômico asiático são muito simplistas”, diz. “Muitos acadêmicos, especialmente de fora da Ásia, tendem a superenfatizar o papel da intervenção e da liderança do Estado. Mas o sucesso da Ásia se apoiou essencialmente nos mercados e no setor privado como motores do crescimento.”.
A política de substituição de importações foi largamente adotada por países em desenvolvimento por influência de ideias socialistas
Takehiko Nakao, ex-presidente do ADB
Ele questiona também a implementação de “políticas industriais” pelos países emergentes para promoção do desenvolvimento. “As economias (asiáticas) começaram a crescer mais rápido quando deixaram de lado as políticas de intervenção do Estado e focaram no mercado, enquanto os governos continuaram a desempenhar um papel proativo”, afirma. “Metas de políticas industriais, se usadas de forma inadequada, podem levar ao patrimonialismo, competição injusta e ineficiência. Políticas indústrias são mais propensas a ter sucesso quando promovem competição e são implementadas de forma transparente, com metas claras e prazos de duração pré-definidos.”
Segundo Nakao, a política de substituição de importações foi largamente adotada por países em desenvolvimento no pós-guerra por influência de ideias socialistas e o desejo de autossuficiência, depois da obtenção da independência dos poderes coloniais. “Mas essa estratégia, proteção comercial, falta de concorrência e taxas de câmbio sobrevalorizadas levaram a sérias ineficiências e algumas vezes até geraram crises na balança de pagamentos, especialmente na América Latina.”
Setor privado
Para a McKinsey, a agenda pró-crescimento dos países de alta performance se desenvolveu pelos setores público e privado com foco nos aumentos de produtividade, renda e demanda. Um traço comum a eles nas últimas décadas, na avaliação da consultoria, foi a ênfase dada à acumulação de poupança pelos indivíduos, que viabilizou a melhoria da infraestrutura, ao desenvolvimento tecnológico, que favoreceu o aumento de produtividade, e à concorrência interna no setor produtivo, que impulsionou os investimentos, além da forte conexão com a economia global, que permitiu a elevação das exportações e a atração de investimentos estrangeiros, e da flexibilidade para adaptar as práticas macroeconômicas internacionais ao contexto local.
A competição, inclusive entre empresas estatais e privadas, e a disputa pela liderança em diferentes ramos de atividade são pontos-chave nessas economias dinâmicas, segundo a McKinsey, nas quais apenas 45% das empresas que estão entre as maiores geradoras de lucro conseguem manter uma posição de destaque no mercado por mais de uma década, ante 62% em países de alta renda. As grandes empresas, na visão da consultoria, é que turbinam os países de crescimento acelerado. Na média, essas economias têm duas vezes mais companhias com faturamento superior a US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) ao ano do que outros países emergentes.
Ainda que, muitas vezes, o setor privado apareça como coadjuvante nas análises sobre a economia asiática, em especial no caso de países que tiveram um crescimento acelerado nas últimas décadas, ele teve uma importância fundamental no desenvolvimento alcançado nesse período e na redução da pobreza extrema na região. “A maioria dos estudos sobre o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza se concentra nas políticas macroeconômicas”, afirma o pesquisador Scott Paul Hipsher, na publicação O papel do setor privado na redução da pobreza na Ásia. “Mas eles dependem tanto das decisões microeconômicas tomadas pelas empresas privadas quanto das decisões macroeconômicas tomadas pelos governos.”
Como se pode observar, os caminhos para alcançar a prosperidade e a redução significativa da pobreza extrema são complexos e cheios de obstáculos. Mas as lições deixadas pela Ásia nas últimas décadas podem dar uma “contribuição milionária”, nas palavras do escritor Oswald de Andrade (1890-1954), para solucionar o problema da miséria no mundo, inclusive no Brasil. Talvez nem tudo sirva para o País, mas muita coisa pode ser útil para enfrentar para valer a questão.
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