Fabricantes de automóveis e seus fornecedores de peças estão se movimentando para trazer ao Brasil linhas de produção substituídas no exterior por montadoras que migraram para os carros elétricos. São linhas incompatíveis com a nova tecnologia, mas que têm utilidade para a indústria automotiva brasileira, que, em maior parte, não vai abandonar tão cedo os sistemas de propulsão convencionais.
A avaliação é que os equipamentos industriais aposentados em mercados que estão mais avançados na transição tecnológica oferecem ao Brasil a oportunidade de, a um custo mais baixo, melhorar a produtividade das fábricas de carros, assim como nacionalizar componentes hoje importados.
A lista inclui sistemas eletrônicos dos quais dependem a conectividade, a segurança e a própria eletrificação dos automóveis. Por exemplo, os carros híbridos, tecnologia que está sendo adotada em maior escala no Brasil, contam com uma central eletrônica para gerenciar o funcionamento dos dois motores, um elétrico e o outro a combustão interna.
Além das tendências tecnológicas, a transferência de linhas permitiria a produção nacional de dispositivos já com larga adoção pelas montadoras brasileiras, mas ainda importados. É o caso do câmbio automático, presente em 67% dos carros vendidos no País, segundo dados da consultoria Bright Consulting.
A importação de linhas desativadas em outros países não é uma novidade. Porém, passou a receber maior interesse após ser incluída no rol de projetos incentivados pelo governo federal no Mover, como foi batizado o programa de apoio à indústria de mobilidade lançado no fim do ano passado.
Pelo programa, montadoras ou fornecedores de peças, com projetos habilitados, receberão créditos financeiros na importação das linhas, correspondentes ao imposto de importação, e nas exportações dos produtos fabricados pelas linhas transferidas - neste segundo caso, o crédito é correspondente aos tributos incidentes sobre o lucro dos produtos exportados.
O benefício vale na relocalização desde células de produção a unidades industriais inteiras. No total, incluindo incentivos à pesquisa e desenvolvimento para a evolução tecnológica dos carros produzidos no Brasil, o Mover prevê, até 2028, R$ 19,3 bilhões em créditos financeiros, que podem ser usados no pagamento de impostos federais. Na esteira do programa, os investimentos anunciados pela indústria de automóveis, entre ciclos novos e ampliados, passam já de R$ 100 bilhões.
Mais barato e rápido
Antes mesmo de o governo abrir a habilitação ao Mover, em portaria editada duas semanas atrás, as empresas já faziam cálculos do custo de transferir linhas desmontadas, principalmente, na Europa, onde carros movidos a combustíveis fósseis devem sair de linha até 2035.
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Sócio-diretor da Pieracciani, uma consultoria especializada em inovação, que vem sendo procurada por empresas interessadas em aproveitar os incentivos do Mover, Francisco Tripodi diz que simulações apontam para uma diferença de 50% entre transferir uma linha desativada na Europa e o custo de investir em equipamentos totalmente novos.
“Pensando que muitas vezes essa operação será feita dentro de um mesmo grupo - como, por exemplo, uma filial no Brasil que vai trazer uma linha não mais usada pela matriz na Alemanha -, o único gasto é de transferir a linha”, comenta Tripodi. Segundo ele, um dos objetivos da indústria é substituir as linhas atuais por outras mais modernas.
Uma das montadoras que confirmam, reservadamente, estudos para importar linhas de produção conta que outra vantagem é ganhar tempo. Como os equipamentos já estão à disposição, sua instalação é mais rápida se comparada ao prazo de entrega de máquinas completamente novas.
Governo vai levar em conta produção e emprego para liberar importação
Os critérios a serem observados pelo governo na concessão do incentivo à importação de linhas de produção ainda serão definidos nas portarias e decretos a serem editados na regulamentação do Mover, o novo regime automotivo. O ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) já adianta, no entanto, que será levado em conta o valor do investimento, assim como seu impacto no emprego, o volume de produção pretendido e a expectativa de exportação.
Procurado pelo Estadão/Broadcast, o ministério respondeu que a intenção é atrair linhas de produção que começam a ser desmontadas no Hemisfério Norte, gerando no Brasil emprego, renda, transferência de tecnologia e aumento de competitividade.
Conforme a pasta, componentes como a caixa de câmbio com transmissão automática deixarão de ser usados onde a eletrificação avança mais rapidamente, mas continuarão sendo necessários no Brasil e vários outros países, sobretudo no mercado de reposição de peças.
Ganho tecnológico
Para Ricardo Bastos, diretor de assuntos institucionais da GWM, é possível pensar em trazer linhas que forem renovadas pelas montadoras de carros elétricos na China, onde a escala de produção, 12 vezes superior a do Brasil, permite absorver mais rápido os investimentos pesados em equipamentos novos. A montadora chinesa está prestes a começar a produzir carros híbridos na fábrica adquirida da Mercedes-Benz em Iracemápolis, no interior de São Paulo.
“Não temos esse projeto no momento, mas é uma alternativa importante, sim, para a GWM e seus parceiros”, comenta Bastos. “Empresas que têm parcerias com chineses podem ter a oportunidade de fazer a transferência parcial ou completa de linhas, desde que seja compatível com a escala de produção no Brasil”, acrescenta o executivo, que também é presidente do conselho diretor da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
Ao prever compromissos com novos investimentos em ativos fixos, trazendo assim oportunidades também para a indústria nacional de bens de capital, o incentivo à transferência de linhas de produção não foi contestado pelos fabricantes de máquinas.
“Lá fora, vão produzir carros elétricos, e vai sobrar equipamentos que o Brasil não tem. É uma oportunidade de trazer equipamentos usados para a produção (no Brasil) de mobilidade verde”, comenta José Velloso, presidente-executivo da Abimaq, a associação da indústria de máquinas e equipamentos. “Entendemos que deve ser para a importação de linhas usadas que estejam intimamente ligadas à mobilidade verde, e que haja ganho tecnológico para o País. Junto com a linha usada, tem de vir a tecnologia”, pondera o representante da indústria de bens de capital.
Na avaliação de Gastón Diaz Perez, CEO na região da Robert Bosch, um dos maiores fornecedores das montadoras, o estímulo à importação de linhas responde ao desafio de tornar viável, em um mercado com a escala do Brasil, a produção do “carro do futuro”, que depende de muita eletrônica. “Já temos algumas linhas localmente, como centrais que controlam os dois motores (de carros híbridos). Mas diversas outras tecnologias de carros elétricos e híbridos não estão disponíveis no Brasil. Aí, sim, existe a possibilidade de trazer linhas para essa produção”, diz Gaston.
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