BRASÍLIA – Desde a última terça-feira, 4, quando o governo Lula baixou uma nova medida provisória para ampliar a receita tributária e compensar a desoneração da folha de pagamentos, as empresas exportadoras estão em pé de guerra. Para elas, a medida é uma tributação indireta, que desrespeita a isenção prevista na Constituição para as exportações. A discussão já chegou ao Congresso, com a mobilização de parlamentares mais próximos da agenda do setor privado.
Em entrevista ao Estadão concedida na quarta-feira, a procuradora-geral da Fazenda Nacional, Anelize de Almeida, disse que os exportadores têm um argumento importante que pode levar a uma revisão da MP no Parlamento.
O texto foi apelidado de “MP do Equilíbrio” pelo Ministério da Fazenda e de “MP do Fim do Mundo” por 27 frentes parlamentares empresariais do Congresso. Ela proíbe que as empresas usem o crédito tributário de PIS/Cofins para abater outros tributos, como o Imposto de Renda. Os créditos obtidos por crédito presumido também foram restringidos – não haverá mais ressarcimento e eles também só poderão ser usados para abater o pagamento de PIS/Cofins.
Empresas exportadoras afirmam que, como vendem ao exterior sem PIS/Cofins, não têm como usar os créditos para abater este tributo. Assim, eles ficarão retidos em seus balanços.
“(A demanda dos exportadores) pode ser um argumento importante que eu acho que o Congresso talvez tenha de analisar diferente. A empresa exportou e ela não paga; como é que ela vai usar esse crédito se ela só pode usar no PIS/Cofins? É estranho. Talvez a gente tenha de fazer uma outra alteração no sistema tributário das exportadoras. Não sei, mas é um argumento”, diz Anelize.
A procuradora-geral afirma, no entanto, que o uso de créditos tributários para abater impostos é uma autorização concedida pelo Fisco e que houve muita desorganização nos últimos anos, levando a uma erosão na arrecadação do governo. Por isso, ela defende a medida, assim como a MP anterior, baixada em dezembro e que limitava o uso de créditos tributários quando derivados de ações judiciais.
As duas medidas têm o objetivo de ampliar as receitas tributárias do governo, ainda que o Ministério da Fazenda afirme que não há aumento de impostos, nem de alíquotas. O efeito prático, porém, é de uma ampliação das receitas.
Só com a MP baixada nesta semana, o governo prevê arrecadar R$ 29,2 bilhões neste ano, mais do que o suficiente para compensar a desoneração da folha de pagamentos.
Nesta entrevista, Anelize fala ainda da expectativa do governo de ampliar a arrecadação, no segundo semestre, por resultados favoráveis no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), onde são resolvidos impasses envolvendo grandes empresas e a Receita Federal. A projeção do governo é levantar R$ 55,6 bilhões neste ano com esses julgamentos, estimativa que foi mantida no último relatório bimestral de receitas e despesas.
Ela afirma que a equipe econômica montou um fast track (via rápida) que acelerou a liquidação das dívidas após as decisões no conselho, e que isso explica o porquê das expectativas positivas. Um processo de liquidação que antes durava até seis meses agora pode ser feito em um mês.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
Empresas estão se queixando da MP do PIS/Cofins, principalmente as exportadoras, alegando que o acúmulo de créditos decorrentes da medida vai ferir o direito constitucional de isenção tributária para as exportações. Como a sra. avalia esse pleito?
É verdade, o direito da exportação ser desonerada é uma previsão constitucional; mas o direito de compensar créditos que está na lei é por interesse da administração tributária. Então, é uma discussão enviesada na compensação. Foi mais ou menos o que saiu na outra MP, com a limitação na compensação (em dezembro, o governo editou uma MP limitando o uso de créditos decorrentes de ações na Justiça).
Como assim?
É a mesma lógica. Se a Fazenda pública tem um débito com você, o que a Constituição diz é pagar por precatório (dívida judicial da União). E porque o sistema de precatórios é mais burocrático, a lei permite a compensação. É muito mais fácil. Só que virou uma complexidade imensa esse sistema de compensações. A primeira medida provisória que limitou as compensações judiciais (acima) de R$ 10 milhões tem muito da lógica de organização interna da administração tributária. Quer dizer: “ok, você pode compensar, mas vamos organizar”. (A demanda dos exportadores) pode ser um argumento importante que eu acho que o Congresso talvez tenha de analisar diferente. A empresa exportou e ela não paga; como é que ela vai usar esse crédito se ela só pode usar no PIS/Cofins? É estranho. Talvez a gente tenha de fazer uma outra alteração no sistema tributário das exportadoras. Não sei, mas é um argumento.
Que está ganhando força?
Está.
Os empresários alegam também que a mudança foi feita por meio de MP, com efeito imediato, e que isso desarranja o planejamento tributário de maneira abrupta. Isso pode ser questionado judicialmente?
Tudo pode ser questionado judicialmente, mas é o tipo de discussão que eu vejo com muita tranquilidade. O direito ao crédito não é um direito líquido e certo. Acho que é uma discussão de se tentar criar uma tese jurídica para ver se ela pega, para ver se ela cola. Às vezes, no Judiciário, ela cola; às vezes, no Parlamento, ela cola – e cada um no seu papel. Mas não vejo com grande preocupação, foi a mesma discussão da MP 1202 (a medida provisória que limitou os créditos judiciais, baixada em dezembro). Não vejo a utilização do crédito em compensação como um direito líquido e certo do contribuinte.
Nem no caso das exportações?
Nem no caso das exportações, mas aí eu tenho uma dúvida. Eu tenho uma pulga atrás da orelha, realmente. Mas isso de dizer: “ah, mas eu estava me organizando”. Ninguém tem direito adquirido sobre um regime jurídico. A medida provisória mudou e, se ela for aprovada em lei, (a empresa) se reorganiza.
E sobre o argumento de que haverá aumento de custos com a tributação, uma vez que haverá maior acúmulo de créditos a receber em uma medida feita sem anterioridade?
Não tem a ver com anterioridade isso, não considero um argumento válido. Vamos imaginar uma lei que diga: “agora você não pode mais abater da sua base do Imposto de Renda pessoa física a escola do seu filho”. Sinto muito, mudou a lei. Ah, mas eu preciso me adaptar… A lei mudou. Não há direito adquirido sobre uma dedução ou um benefício. De alguma forma, o que se tenta fazer com essa medida provisória é moralizar a sistemática das compensações. PIS/Cofins são contribuições que têm vinculações muito específicas (para financiar a Seguridade Social), e as empresas acabam usando o crédito de PIS/Cofins para abater diversos outros tipos de tributos federais, erodindo a base. Então, considero uma ideia genial moralizar e organizar a sistemática de compensação.
A sra. vê dano à defesa da não cumulatividade prevista na reforma tributária, uma vez que, com a limitação da MP, aumentará a cumulatividade de créditos de PIS/Cofins ao longo da cadeia produtiva?
Não há vedação ao uso de créditos, é uma limitação; você não pode usar o crédito para qualquer coisa. Mas tem de pensar... Em eventos sobre a reforma tributária, ouço que a lógica da não cumulatividade é maravilhosa, mas será que a administração tributária, a Receita Federal, vai dar conta de fazer essa devolução tão rápido assim? A utilização desse crédito no prazo? Porque, se sim, ótimo; e se o split payment realmente funcionar, ótimo: você vai reduzir drasticamente a sonegação e vai se apropriar do seu crédito quase que imediatamente. Agora, se a MP afeta (esse debate), uma vez que aumenta o estoque de crédito… É um debate interessante, não sei responder.
A MP também estipula que as empresas beneficiárias de algum incentivo tributário terão de declarar o benefício e calcular quanto deixam de recolher em impostos graças ao benefício. Se não declararem ou se errarem na conta, há previsão de multa. Qual sua avaliação? Algumas delas nem sabem que usufruem de benefícios.
Isso é uma das consequências desse tal sistema tributário caótico em que a gente vive; porque, às vezes, vem uma lei que não tem absolutamente nada a ver e que cria um benefício para, por exemplo, agulhas, e que é autoaplicável. Ou seja: o contribuinte, o responsável tributário ali, ele abate da base dele e pronto. Mas, agora, é uma posição muito pessoal minha: eu não gosto do sistema da administração tributária baseado no enforcement, que é na multa, na punição. Os exemplos das administrações tributárias do mundo já demonstraram que não é assim que se aumenta a conformidade tributária. É muito mais numa coisa de colaboração. O dia que o secretário da Receita apresentou esse problema para o ministro… olha, eu nunca tinha imaginado que era assim.
O que surpreendeu?
Ter benefício para determinados produtos que o contribuinte autodeclara no seu próprio balanço e que a Receita não sabe quais são. E tem milhares de benefícios assim. Eles até sabem quais são, mas o custo desse controle é muito alto. Então, a ideia é: “vem cá e me conta o que que você tem”. E eu entendo que você tem de ter uma multinha para trazer essas pessoas; mas tem de ter uma facilidade, um serviço de qualidade e tudo mais. Agora, essa multa… a minha preocupação é isso gerar litígio, contencioso.
Os advogados estão dizendo que vai...
Vamos dizer que a empresa apresentou (o benefício a que tem direito), deu certo. Se não apresentou, a Receita descobriu, vai lá e multa. Mas e se a empresa apresentou e o valor está errado? Mas aí a empresa está num sistema de colaboração. A chance de isso cair… juridicamente não é ilegal, não é inconstitucional; só não acho que seja o melhor estímulo para a conformidade tributária.
Tem efeito em termos de arrecadação?
Pouco provável. A Emenda Constitucional 109 (a PEC Emergencial), aprovada no meio do governo Bolsonaro, em 2021, tem um dispositivo que o governo tinha de reduzir os benefícios fiscais que estão no Demonstrativo de Gasto Tributário até 2028 para 2% do PIB. O governo apresentou naquela época um relatório do que se tinha de benefícios e você vê lá grandes benefícios: a Zona Franca de Manaus, o Simples – que foram blindados, principalmente agora com a reforma – e outros benefícios, como a dedução de saúde e educação para a classe média (no Imposto de Renda). Então, tem essa determinação na emenda constitucional, mas tem tem muitos benefícios que não estão nem neste cálculo, segundo análise da Receita que o secretário (Robinson) Barreirinhas fez.
Então, essa reavaliação da Fazenda sobre gastos tributários é para seguir a determinação da emenda constitucional?
É também para seguir essa determinação. O ministro tem dito muitas vezes que quer trazer os benefícios tributários para a luz do dia, quer fazer um debate franco sobre quem precisa do benefício.
Mas, no final, essa revisão terá um resultado prático de aumentar a arrecadação, não?
Mas não neste ano. Numa hipótese politicamente inviável, por exemplo, de se acabar com a dedução educacional no Imposto de Renda da pessoa física: o custo político disso seria imenso, mas vamos dizer que passasse. Não tem impacto nenhum neste ano, só no ano que vem. Essa medida não tem impacto arrecadatório neste ano, ela tem o impacto de organizar o sistema tributário de benefícios ao longo dos anos.
Na Fazenda, há expectativa de que o Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf) seja um ponto central na arrecadação do segundo semestre. Essa expectativa vem de transações (novas negociações para a cobrança de dívidas)? Ou de julgamentos?
Não é de transações, é de julgamentos no Carf. O Higino (Carlos Higino Ribeiro de Alencar, presidente do Carf) criou mais turmas, redistribuiu as competências. Nós vamos ter posse de procuradores em junho, vou colocar oito procuradores no Carf. A gente quer aumentar a tração operacional do Carf.
Como assim?
O Carf não mexe no auto de infração, o Carf decide se o auto de infração é válido e, por exemplo, estipula que a multa é 20% a menos. Quem liquida o julgado é a Receita. Então, o processo sai do Carf vai para a delegacia da Receita do domicílio do contribuinte. Essa delegacia diz: “ok, o seu auto de infração era de R$ 1 milhão, por exemplo; estou tirando 20% de multa, agora você me deve R$ 800 mil e tem 90 dias para pagar, senão a gente inscreve em dívida ativa”. A gente tem prazos legais a cumprir. Então, tudo o que o Carf julgou nesse primeiro semestre está descendo para a cobrança administrativa na Receita ou para a inscrição em dívida. Por isso, vamos começar a arrecadar no segundo semestre, além do impacto ágil que estamos botando – tanto o Higino no Carf, o Barreirinhas na Receita e eu aqui na Procuradoria para fazer esse “fast track”.
O que é isso?
O Carf votou e disse que é hígido o auto de infração, então liquida. É um processo delicado você liquidar um auto de infração de bilhões. Então a Receita faz isso e nós cobramos.
Quanto tempo leva?
Depende. A liquidação leva até seis meses, mas muitas coisas conseguimos fazer em 30 dias.
Teve influência a mudança no voto de qualidade do Carf (que devolveu à Receita o voto de minerva no conselho) nessa expectativa de maior arrecadação?
Nenhuma.
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