BRASÍLIA – O governo fez uma nova mudança na regra de incidência do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), um tributo municipal e do Distrito Federal que é pago pelo comprador do bem. A alteração consta no segundo projeto de lei complementar da reforma tributária, já enviado ao Congresso, e vem gerando uma série de críticas por parte de tributaristas.
Os advogados alegam que a nova redação do texto ainda prevê a antecipação da cobrança do imposto, indo na contramão de decisões judiciais já consolidadas. Por isso, avaliam, seria um retrocesso, já que abre caminho para novos questionamentos.
Como mostrou o Estadão, a pedido dos prefeitos, o Ministério da Fazenda antecipou o momento da cobrança do ITBI, que hoje ocorre na efetiva transferência da propriedade. Pelo Código Civil, isso só ocorre após o registro no cartório de imóveis, com a alteração na matrícula do bem.
A minuta do projeto, que saiu da Fazenda e foi encaminhada à Casa Civil, abria a possibilidade de as prefeituras realizarem essa cobrança em dois momentos anteriores à transferência: na assinatura da escritura, que é um contrato público de compra e venda – o qual é feito na presença de um tabelião – ou na cessão dos direitos de aquisição do imóvel – que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa vende o direito à compra de um imóvel que ainda está sendo construído.
Essa segunda hipótese, bastante criticada pelos tributaristas, foi retirada do texto antes do envio aos parlamentares. Ainda assim, a avaliação dos advogados é de que o projeto segue com alto risco de judicialização, uma vez que iria na contramão do que diz o Código Civil e do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em julgamento realizado em fevereiro de 2021, o STF firmou entendimento de que o fato gerador da cobrança do ITBI ocorre apenas a partir da transferência da propriedade imobiliária, efetivada mediante o registro em cartório. A Corte, porém, acolheu recurso do município de São Paulo e agora vai reexaminar o tema. Atualmente, a legislação paulistana abre a possibilidade para que o pagamento ocorra no momento da escritura ou na cessão dos direitos.
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Não à toa, o pedido para a inclusão desse trecho no projeto de lei da reforma foi liderado pela capital paulista, segundo apurou a reportagem. O objetivo, portanto, seria transportar a lei de São Paulo para a esfera federal.
“É uma tentativa de consolidar uma situação já questionada e rechaçada pelos tribunais. Ou seja, tenta-se dar um drible nos entendimentos jurídicos sobre o tema por meio da lei complementar”, afirma o pesquisador do Insper e tributarista do Mannrich e Vasconcelos Advogados, Breno Vasconcelos.
Ele pondera, porém, que não se pode modificar conceitos de direito civil por regra tributária e que, para isso, seria necessário alterar a Constituição e toda a lógica do Código Civil, que exige o registro do título para a transmissão da propriedade.
Daniel Cardoso Gomes, sócio do Amatuzzi Advogados e especialista na área de direito imobiliário, avalia que o projeto deixa o cenário relativo ao ITBI ainda mais confuso, abrindo uma grande margem para judicialização. “O projeto está caracterizando o fato gerador (da cobrança do imposto) antes de o fato efetivamente ocorrer”, alerta.
“É um baita retrocesso. Todas essas discussões vão renascer”, diz Gomes. Ele também pontua que o texto abre margem para questionar se a cobrança poderia ocorrer na mera celebração de um compromisso de compra e venda entre pessoas físicas, por exemplo. Isso porque o texto afirma que ela poderá ser realizada no momento da “celebração do direito real sobre bem imóvel”.
Hugo Alves Câmara, do Bichara Advogados, avalia que o governo perdeu a oportunidade de deixar claro o que o Supremo havia determinado em 2021. “Ou seja, a norma nasce propensa a ser judicializada”, reforça.
Esse risco jurídico já havia sido apontado em parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). No documento, como mostrou o Estadão, o órgão destacou os pronunciamentos do STF apontando a impossibilidade de se cobrar o ITBI após a mera formalização da compra e venda, sob pena de se considerar constituído o crédito antes da ocorrência do fato.
Para o secretário-executivo da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Gilberto Perre, a exclusão pelo governo de parte do artigo do ITBI não altera substancialmente o que já estava definido na minuta. Ou seja, no seu entendimento, a redação atual ainda prevê que o imposto incidirá no ato de assinatura da escritura pública, ou equivalente, de compra e venda do imóvel.
“A supressão não altera, porque o segundo inciso (que foi retirado) está contido no primeiro, que foi mantido”, afirma Perre. Ele diz que, do ponto de vista da FNP, a medida é importante porque há casos de compra e venda de imóveis sem que haja o registro da matrícula em cartório, e o registro não tem prazo para ocorrer.
“O fato gerador é a transmissão onerosa de direito real sobre imóvel, e a transmissão se inicia com a escritura e termina com o registro”, diz. A ideia, segundo ele, é a lei complementar deixar claro que o município pode escolher a escritura pública como o momento de ocorrência da cobrança.
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