BRASÍLIA – A mudança nos pisos mínimos de gastos com Saúde e Educação, hoje vinculados à arrecadação do governo, não é suficiente para resolver os problemas do Orçamento público e bancar os recursos necessários em outras áreas nos próximos anos, de acordo com números do Tesouro Nacional. A principal causa é o crescimento das despesas obrigatórias, como salários, aposentadorias e benefícios assistenciais, que continuam pressionando o arcabouço fiscal.
Além disso, especialistas consultados pelo Estadão apontam que uma diminuição do piso da Saúde aumentaria a participação das emendas parlamentares no orçamento do setor, elevando ainda mais o poder das indicações políticas nos recursos e causando uma distorção no financiamento dos serviços públicos entre as regiões do Brasil (leia mais abaixo).
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Em março, o Tesouro divulgou um relatório mostrando que uma mudança nos pisos de Saúde e Educação poderia tirar até R$ 133 bilhões dessas duas áreas em 2033, abrindo espaço para outros gastos. Em resposta a um requerimento de informação da liderança do PSOL na Câmara, ao qual o Estadão teve acesso, o órgão divulgou os cálculos que levaram a essa projeção.
Os números mostram que, mesmo com o espaço aberto, faltaria dinheiro para bancar o custeio da máquina pública e os investimentos federais nas outras áreas (fora Saúde e Educação) a partir de 2029. A falta de dinheiro é verificada na aplicação das três regras diferentes estudadas pela equipe econômica para a evolução dos pisos: limite de despesas do arcabouço, de no máximo 2,5% acima da inflação; crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) per capita; e crescimento populacional.
Atualmente, os gastos mínimos com Saúde e Educação são calculados de acordo com a arrecadação de impostos federais (15% da Receita Corrente Líquida para a Saúde e 18% da Receita Líquida de Impostos para a Educação) e crescem mais que os limites do arcabouço fiscal, de 2,5% acima da inflação, pressionado a nova âncora das contas públicas. Conforme o Estadão mostrou, os pisos vão deixar outras áreas sem recursos até 2028, incluindo habitação, Auxílio Gás, Defesa Civil e custeio dos órgãos federais.
Em resposta à reportagem, o Tesouro Nacional afirmou que a simulação foi realizada com parâmetros macroeconômicos de janeiro deste ano e que não refletem necessariamente as escolhas políticas nem as bases fixadas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, encaminhado em abril. Além disso, a destinação final das despesas supera a alçada do governo, pois depende também das emendas parlamentares, disse o órgão.
Se nada for feito, as outras despesas discricionárias (não obrigatórias) ficariam com R$ 41,8 bilhões em 2029. Em 2030, o resultado seria negativo e faltariam R$ 14,8 bilhões. O recurso necessário para manter a máquina federal funcionando e não entrar em colapso é calculado em no mínimo R$ 76,9 bilhões para as demais despesas não obrigatórias (tirando Saúde e Educação), de acordo com regra fixada no novo arcabouço fiscal.
Se os pisos forem corrigidos conforme o mesmo limite de despesa do arcabouço, de até 2,5% de crescimento real, as outras despesas discricionárias teriam um espaço maior, de R$ 52,4 bilhões em 2029 e R$ 11,2 bilhões em 2030, ainda abaixo do necessário. Ou seja: mesmo com a mudança, faltaria dinheiro para pagar as despesas com conta de luz dos órgãos federais, sem falar de investimentos em rodovias e Defesa Civil, por exemplo. No cenário mais drástico, que é corrigir os pisos conforme o crescimento populacional, faltariam recursos suficientes para cobrir as outras despesas a partir de 2030.
Segundo o pesquisador Camillo Bassi, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o principal problema da rigidez orçamentária que pressiona as contas públicas é o alto volume de gastos obrigatórios. Hoje, eles superam 90% do Orçamento. Mesmo que os pisos fossem mexidos, explica ele, os compromissos obrigatórios do governo federal com Saúde e Educação continuariam existindo. Por isso, nem mesmo uma flexibilização pela Desvinculação de Receitas da União (DRU) resolveria o problema.
“No caso da complementação da União do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), por exemplo, é impossível atrelar os gastos a um indicador diferente, como o teto do arcabouço ou a inflação. Independentemente do indicador, essa é uma despesa blindada de regramento em termos de crescimento porque é um gasto exógeno”, diz o especialista. Até 2026, a União terá de contribuir com uma complementação equivalente a 23% do Fundeb para Estados e municípios.
O Ministério do Planejamento e Orçamento afirmou à reportagem que “a dinâmica prevista para o conjunto de despesas da União é desafiadora”. A pasta ressaltou que novas medidas de revisão de gastos serão anunciadas em momento oportuno e que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2025 está em elaboração e será devidamente detalhado até 31 de agosto.
Emendas tomariam conta do orçamento da Saúde se piso fosse revisto
Atualmente, as emendas parlamentares consomem 40% das despesas não obrigatórias das ações e serviços públicos de saúde, como custeio de postos de saúde, hospitais, exames e cirurgias. Uma mudança no piso constitucional da Saúde faria que com as emendas ocupassem mais da metade desse orçamento, de acordo com especialistas consultados pelo Estadão.
As emendas individuais, aquelas indicadas por cada deputado e senador, são atreladas à receita e metade deve ir obrigatoriamente para a Saúde. Mexer no piso diminuiria o orçamento total da área, mas não as emendas, fazendo com que a participação dessas indicações aumentassem. Além disso, cada vez mais outros tipos de recursos carimbados pelo Congresso capturam uma parcela maior do dinheiro do setor, como foi o caso do orçamento secreto e agora das emendas de comissão.
“Sem o piso, as emendas parlamentares vão ocupar todo o gasto discricionário do ministério e implodir o planejamento sanitário”, diz Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Gastar melhor em Saúde e Educação passa pela efetiva aderência dos seus recursos vinculados aos respectivos planos setoriais.”
Estudo do Ipea publicado na semana passada mostra que, entre 2014 e 2022, a participação das emendas aumentou de 3,2% para 9,8% no orçamento do Ministério da Saúde, incluindo todos os gastos obrigatórios e não obrigatórios, e trouxeram problemas para o financiamento do setor — pois não se pautam nas regiões que mais precisam dos recursos, mas nas escolhas livres dos congressistas por critérios políticos.
Segundo o texto, o governo deve perder cada vez mais o poder de estimular as políticas prioritárias diante do aumento do espaço das emendas parlamentares no Orçamento federal da área. O dinheiro alocado pelos parlamentares acaba priorizando municípios pequenos, sem condições de gastar o dinheiro e atender a população e a atenção básica, sem dar conta das necessidades envolvendo alta e média complexidade.
“Hoje, existem localidades que recebem muitos recursos em detrimento de outras. Com o cobertor curto, isso acaba gerando mais desigualdade no sistema”, afirma Fabiola Sulpino Vieira, especialista em políticas públicas e gestão governamental do Ipea e uma das autoras do estudo.
“Ao enviar um volume grande de recursos para município pequeno, esse município tem atenção primária. Dinheiro de emenda não pode ser usado para pagar despesa de pessoal e o principal item de despesa na atenção primária é pessoal — são médicos, enfermeiros e agentes de saúde. Esse recurso vai ser usado para quê?”, questiona.
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