Na contramão do cultivo tradicional, cerrado atrai empreendedores que atuam na regeneração do solo

De fazendas que eliminaram agrotóxicos com ganho de produtividade à produção de café neutro em carbono, negócios sustentáveis crescem no bioma

PUBLICIDADE

Publicidade
Por 33° Curso Estadão de Jornalismo

Proprietária de uma fazenda de 5 mil hectares na região central de Tocantins, Aline Kehrle adotou métodos ecológicos na criação de gado no coração do cerrado, segundo bioma mais devastado do Brasil. “No começo, éramos tachados de malucos”, lembra. “Mas contra fatos não há argumentos: nossa fazenda já usa práticas regenerativas há dez anos.” Aline não é a única a ir na contramão do agronegócio tradicional na região centro-oeste. Outros empreendedores estão apostando em negócios sustentáveis com regeneração do solo.

PUBLICIDADE

A pesquisadora Martha Bambini, da Embrapa Agricultura Digital, diz que a preocupação ambiental é um tema cada vez mais recorrente no campo. “Estão surgindo startups com o propósito de proporcionar e manter práticas mais sustentáveis, e a tendência é de que esse tipo de negócio cresça”, diz. Em geral, são técnicas inovadoras de manejo e gerenciamento que harmonizam com o meio ambiente, respeitando os animais, o ecossistema e a comunidade.

Uma das técnicas sustentáveis utilizadas nas propriedades da Agropecuária Kehrle é o sistema de manejo de pastagem. Esse recurso imita o comportamento natural de rebanhos selvagens e, com isso, os agricultores usam a própria boiada como ferramenta de recuperação de pastagem e solo. “A diferença do convencional para o regenerativo é que nós deixamos de ser donos para fazer parte. Passamos a ser um elo dentro da produção, e não um mero explorador do animal”, explica Aline, que assumiu a fazenda em 2014, com a morte de seu avô. Fundada em 1985, até então a propriedade só utilizava os métodos tradicionais da agropecuária.

Cadeia produtiva da macaúba,uma das principais fontes de óleos vegetais sustentáveis Foto: FIP Macaúba/INOCAS

Ao contribuir para a renovação da pastagem, o manejo do gado mantém o solo mais conservado e produtivo, evitando o desmatamento de novas áreas para plantio. No primeiro semestre de 2023, o cerrado teve um aumento de 21% de áreas desmatadas em comparação ao ano anterior, segundo dados do Deter divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Publicidade

Esse cenário favorece empresas como a Biome4all, que utiliza a biociência para orientar produtores rurais na transição do modelo de cultivo tradicional para a agricultura regenerativa. Cofundador e CEO da startup, o administrador de empresas Leonardo Mendes utiliza tecnologia para fazer um diagnóstico a partir dos componentes do solo, e então orienta o plantio e técnicas ideais para melhor aproveitamento do terreno.

Isso otimiza o aproveitamento territorial, aumenta a produtividade e permite safras contínuas de alimentos ao longo de todo o calendário, diz Mendes. “Já não é mais uma questão só porque é legal, bonito e o mundo quer. É porque de fato tem muito benefício”, afirma o empreendedor.

Negócio sustentável e saudável

O agrônomo Adriano Cruvinel adotava métodos da agricultura tradicional até comprovar o que diz o CEO da Biome4all. Proprietário da Fazenda Bom Jardim Lagoano, localizada em Rio Verde, numa área dominada pelo cerrado no sudoeste de Goiás, ele substituiu os agrotóxicos nas lavouras de milho e soja há sete anos e obteve um aumento de 13,2% na produtividade da safra de soja 2022/2023 em comparação à última safra colhida com métodos tradicionais, em 2014/2015.

Os resultados vieram de técnicas mais baratas e sustentáveis, como a aplicação de microrganismos isolados e multiplicados em laboratório para combater pragas em substituição aos agrotóxicos. Nos últimos seis anos, ele afirma que a fazenda deixou de aplicar mais de 68 mil litros de agrotóxicos, com benefícios que vão além da redução de custos.

Publicidade

“Não temos mais a exposição dos nossos colaboradores a esses agrotóxicos e também não temos a aplicação desses produtos em nosso solo. Conseguimos ver as melhorias a olho nu dentro das lavouras”, conta o produtor. A fazenda também deixou de utilizar adubos químicos e passou a aplicar remineralizadores, que contribuem para a restauração de nutrientes do solo.

Em Patos de Minas, interior de Minas Gerais, a inovação veio de uma startup que integra lavouras e pecuária de forma sustentável com renovação do solo. Fundada em 2015, a Innovative Oil and Carbon Solution (Inocas) desenvolveu um sistema silvipastoril com plantio de árvores de macaúba no mesmo terreno utilizado para criação de gado. Palmeira bastante comum no cerrado, a macaúba melhora a qualidade da terra devido ao aumento da cobertura vegetal da área. De quebra, ainda produz um óleo de alta qualidade a partir do processamento dos frutos da árvore.

Para começar, a startup teve o impulso da Climate Ventures, plataforma de Bons Negócios Pelo Clima que acelera empreendimentos regenerativos e de baixo carbono focados em reverter a mudança climática, conectando startups ao mercado e investidores. O modelo de negócio da Inocas remunera o dono da terra pelo uso do solo com a receita obtida da comercialização do óleo de macaúba. Além da receita extra, o produtor se beneficia da recuperação do solo.

Filho de agricultores locais que fizeram parceria com a Inocas, André Ferreira comemora o resultado: a propriedade de 50 hectares tem hoje mais de 10 mil palmeiras plantadas. “Fizemos literalmente o movimento reverso. Quando compramos nossa propriedade, era uma área totalmente degradada”, lembra. Mas a razão da existência da Inocas é o seu impacto, diz o diretor executivo Johannes Zimpel. “Ver que estamos conseguindo contribuir para reduzir o desmatamento, gerar impacto social e ambiental positivo e ainda gerar renda para pequenos produtores é satisfatório”, afirma o CEO.

Publicidade

Francisco Sérgio de Assis, presidente da monteCCer, em meio ao cafezal Foto: monteCCer / Divulgação

Café carbono zero

PUBLICIDADE

Em Monte Carmelo, a 150 quilômetros de Patos de Minas, uma cooperativa de cafeicultores mineiros produz 400 mil sacas de 60 quilos por ano do primeiro café de carbono neutro do Brasil. São 150 fazendas de café localizadas no cerrado mineiro que usam práticas padronizadas para controle de emissão de gases, uso de defensivos, fertilizantes nitrogenados e recursos hídricos baseados em diretrizes do guia de boas práticas da Rainforest Alliance, selo de certificação de produtos que contribuem para um futuro melhor para as pessoas e o planeta.

Para chegar ao café neutro em carbono, a Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado de Monte Carmelo (MonteCCer) investiu no alinhamento de todas as etapas da produção. “É preciso racionalizar o uso de defensivos químicos que controlam pragas e doenças, o uso de combustíveis fósseis, cuidar da biodiversidade e das nascentes”, explica Régis Salles, superintendente da MonteCCer. Agora, o objetivo da cooperativa é replicar a iniciativa em outras regiões do cerrado, em parceria com o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé) e um grupo de exportadores unidos no Projeto Carbono. (Amanda Botelho, Daniel Brito, Luiza Nobre e Victoria Lacerda)

 
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.