'Não sei como estar perto de Trump ajudou Bolsonaro ou o Brasil', diz criador do termo Brics

Para o economista britânico Jim O'Neill, mais importante para o grupo de países do que as eleições nos Estados Unidos é o uso prático de uma vacina contra o coronavírus

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Foto do author Célia Froufe

BRASÍLIA - O Brasil deveria ser mais maduro, desenvolver políticas que ajudem o País de forma duradoura, e não camuflar sua posição se colocando ao lado de outras nações, na avaliação do criador do acrônimo Brics, o britânico Jim O'Neill. “Não está claro para mim, de forma alguma, como estar supostamente próximo a Trump ajudou Bolsonaro ou o Brasil”, disse em entrevista ao Estadão/Broadcast sobre a eleição americana, no dia 3 de novembro, citando os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e o brasileiro, Jair Bolsonaro.

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O'Neill criou a sigla que reúne países emergentes de grandes territórios e populações (Brasil, Rússia, Índia e China - a seu contragosto, a África do Sul posteriormente foi incluída no grupo) quando trabalhava para o banco Goldman Sachs, há quase 20 anos. 

Atualmente, preside a think tank Chatam House e tem atuação em várias outras áreas, como a busca da melhora da educação para desprivilegiados por meio da UK Educational Charity, melhora da atividade no Norte da Inglaterra pela North Powerhouse e está envolvido na luta contra a resistência antimicrobiana (AMR), além de continuar a ser o consultor global para o ex-primeiro-ministro britânico David Cameron.

O economista britânico Jim O'Neill, que criou o termo Brics. Foto: Benjamin Beavan/Reuters

Para ele, o resultado da eleição americana pode ser importante para o Brics e o restante do mundo por causa da diferença da postura em relação ao globo entre os candidatos, mas o embate com a China ocorrerá independentemente de quem for o vitorioso nas urnas. O’Neill avalia que, ironicamente, o afastamento de Trump das questões globais acabou ampliando o papel do país asiático no cenário mundial. 

Porém, mais importante do que as eleições para os membros do Brics, o uso prático de uma vacina contra o coronavírus será fundamental para o grupo - em especial Brasil e Índia. O economista não acredita, no entanto, que o discurso em voga, de diminuição da dependência da China, possa ser algo de fácil resolução. “É um grande teatro político falar sobre o fim da China nas cadeias de fornecimento, pois a questão é muito mais tênue e complicada”, avaliou. Leia a seguir a entrevista.

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O senhor vê algum tipo de virada para os países emergentes - especialmente os do Brics - em função do resultado da eleição americana no mês que vem?

Eu provavelmente deveria dizer “não sei” a todas as perguntas (risos).... Neste caso, é mais difícil manter a avaliação tradicional de que os republicanos são bons para o mercado e os Democratas, não. E isso ocorre por causa das peculiaridades de Trump. Ele tem sido tão disruptivo em relação à governança normal dos Estados Unidos, que é difícil classificá-lo ou tentar antever as consequências da eleição. Por causa da sua posição negativa em relação ao engajamento global sob vários aspectos e a sua posição sobre a China, acho que uma vitória de (Joe) Biden poderia ser considerada uma boa nova para o mundo ou, mais especificamente, como o seu engajamento no mundo poderia ser bom para a economia global. A reeleição de Trump não seria tão positiva. Mas, claro, nada mais é igual e, se os democratas forem mais expansivos na política fiscal, poderemos ter um fim mais cedo das políticas de afrouxamento monetário, que são geralmente mais negativas para os mercados emergentes por causa do aumento das taxas de juros americanas e o fortalecimento do dólar. Então, eu não tenho certeza...

De forma mais ingênua, dado o que aconteceu com o mundo por causa da covid-19, muito mais importante a meu ver é se e quando teremos vacinas. Isso é especialmente verdadeiro para o Brics, até porque dois deles, o Brasil e a Índia, tiveram problemas com o controle de infecções. Assim, uma vacina seria crucial para esses países em particular e, claro, para todo o mundo. Estou otimista em relação a podermos ter mais de uma vacina no mercado antes que o próximo presidente dos Estados Unidos tome posse (marcada para 20 de janeiro). Por isso acredito que isso é mais importante e um fator bullish (de alta) para o mercado.

Quais seriam os principais pontos a favor do grupo com a vitória de Trump ou de Biden?

Ainda acho que, especialmente para o primeiro semestre de 2021, a chegada de uma vacina será mais importante e mais clara do que saber se será Trump ou Biden quem vencerá. Mas tem um ponto que eu que enfatizar: independentemente de quem vença, os Estados Unido vão continuar desafiando a China e, para complicar a situação para além da questão da eleição americana, suspeito que Biden poderia ser mais eficaz sobre a China do que Trump, porque a ausência de Trump na arena internacional tem permitido à China se apresentar muitas vezes no palco mundial, especialmente em relação a assuntos globais, como mudança climática e livre-comércio. Biden deve representar um desafio maior, já que deve tentar usar os aliados ocidentais por meio de mais grupos internacionais convencionais.

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O senhor acredita que a influência chinesa no mundo recentemente poderia ter sido diferente nos últimos tempos se Trump não tivesse sido o presidente?

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Como eu disse, estranhamente a ascensão da China no palco internacional pode ter sido auxiliada pela posição peculiar e errática de Trump. Isso certamente colocou o país em uma posição mais avançada em questões internacionais de forma muito mais crível por causa da posição antiglobal de Trump, especialmente em relação à mudança climática. E em função do desempenho muito fraco dos Estados Unidos na prevenção da covid-19 e do sucesso peculiarmente forte da China, o aumento relativo do país asiático na economia global se acelerou. Ao final de 2021, a China estará 10% maior do que no fim de 2019. Os Estados Unidos devem estar um pouco menores. Como resultado, apesar de a imagem da China ter sido diminuída por Trump, isso não ocorreu na prática. Além disso, devido a essas pressões, ironicamente encorajou a China a estimular mais sua economia doméstica, o que, em termos de engajamento do país com o mundo, tem mostrado sinais de ter sido algo útil. Veja os dados comerciais de setembro divulgados recentemente, que mostraram um aumento muito grande das importações.

O presidente Bolsonaro sempre destaca a proximidade com os EUA e os benefícios para o País justamente pela relação com Trump. Isso é uma realidade ou apenas um discurso político? E se Biden vencer, o Brasil estará mais fadado a um papel insignificante no mundo?

A meu ver, o Brasil deve fazer as coisas para se ajudar e não camuflar sua posição, escolhendo lados com outros países. Em última análise, esses relacionamentos não oferecem benefícios duráveis, principalmente em relação a fazer políticas corretas dentro de casa. Não está claro para mim de forma alguma como estar supostamente próximo a Trump ajudou Bolsonaro ou o Brasil. O Brasil precisa ser mais maduro e seguir políticas econômicas que reduzam sua dependência excessiva dos preços e da indústria de commodities.

Voltando à China, fala-se muito sobre a mudança das cadeias de valor global após a pandemia por causa da evidência bem conhecida e agora comprovada da dependência mundial de matérias-primas do país. O senhor acredita que nos próximos anos os demais integrantes do Brics poderão ocupar parte dessa intenção das empresas de não ficarem mais tão dependentes do país asiático? 

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Tenho opiniões mistas sobre isso. De um lado, o papel da China como a principal fonte de produtos globais baratos já tinha se enfraquecido porque o país deixou de ser tão barato com o aumento dos salários e da sua moeda, o yuan. (A produção de) alguns itens já mudou para o Vietnã, outras partes do sudeste da Ásia e outros países. Dito isso, a China tem sido extremamente bem sucedida na exportação de EPI (equipamentos de proteção individual) durante a pandemia. Outra fonte da minha avaliação ambígua é a de que, no fim das contas, os consumidores tentarão adquirir, seja qual for sua preferência e gosto, de fontes que são as mais desejáveis e acessíveis. É um grande teatro político falar sobre o fim da China nas cadeias de fornecimento, pois a questão é muito mais tênue e complicada. Por fim, se a China continuar a economizar muito e a exportar capital, isso significa que indiretamente vão ocorrer superávits comerciais e mais exportações para o mundo. As evidências sugerem que isso mudou muito desde 2008 e continuou até a crise do superávit das contas correntes do país quase desaparecerem. Assim, o que acontecerá com a poupança doméstica e o investimento da China indiretamente terá mais consequência para o papel do país nas exportações e importações do mundo.

O senhor tem dito nos últimos anos que o Brics poderia ter usado sua projeção global para realmente fazer a diferença no mundo, e não o fez. O senhor ainda tem essa esperança ou segue desapontado?

Estou persistentemente desapontado. Não consigo pensar em um único acordo efetivo de peso entre os países do Brics que os tenha levado a buscar uma iniciativa que tenha tido uma consequência importante, especialmente em termos de apoiar outras economias ou mesmo o seu desempenho coletivo.

As finanças verdes têm sido apontadas como uma importante saída econômica pós-covid. Essa área ou outra poderia ser uma forma de assumir a liderança?

Há muitas áreas das finanças verdes e toda a questão das mudanças climáticas em que (o Brics) poderia ter feito e ainda deveria fazer coisas. Também acho que suas vulnerabilidades a doenças infecciosas poderiam se transformar em muitas iniciativas para cooperar em políticas de investimentos em sistemas de saúde, especialmente no que se refere à resistência da tuberculose. Mas há inúmeras outras áreas de atuação conjunta.

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