Tido como a principal saída para a descarbonização do transporte aéreo e com grande potencial de exploração no Brasil, o combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) tem, por ora, pouquíssimos projetos em desenvolvimento no Brasil. O mais avançado é o da Brasil BioFuels (BBF), empresa hoje focada na produção de biodiesel, mas que prevê começar a fabricar SAF no Brasil em 2026, após investir R$ 2,2 bilhões em uma biorrefinaria em Manaus e R$ 2,5 bilhões no plantio de palma de óleo, sua matéria-prima. A BBF já firmou contrato com a Vibra, que terá exclusividade para distribuir o combustível de aviação durante cinco anos.
Criada em 2008, a companhia começou explorando óleo de palma em São João da Baliza (RR) para a produção de biodiesel. Com o biocombustível, gera energia elétrica em usinas termoelétricas. Hoje, tem 25 usinas em operação, 13 em implementação, atende 140 mil clientes e fatura R$ 1 bilhão por ano. Esse último número deve saltar para cerca de R$ 5 bilhões quando a empresa começar a produzir SAF, prevê o presidente da BBF, Milton Steagall.
A refinaria de SAF, que também produzirá diesel verde (HVO), está em fase de desenvolvimento do projeto executivo. Steagall espera que ela comece a operar a tempo de atender o futuro aumento da demanda pelo combustível - as companhias aéreas terão de reduzir suas emissões a partir de 2027, o que deve gerar uma forte procura por SAF.
O SAF pode ser fabricado a partir de óleos vegetais (de cana-de-açúcar, milho ou palma, por exemplo), gorduras animais (como o sebo bovino) e até óleo de cozinha usado. Ele emite de 60% a 80% menos carbono do que o querosene de aviação (QAV), e o Brasil é apontado como um dos países com grande potencial para produzir o combustível porque tem as matérias-primas necessárias, além da expertise desenvolvida na indústria do etanol.
Apesar desse potencial do País, não é à toa que são poucos os projetos de SAF em desenvolvimento por aqui. Empresas têm apontado que necessitam de uma regulamentação que garanta segurança jurídica para fazer os investimentos de bilhões de reais. O Projeto de Lei do Combustível do Futuro já deu algumas diretrizes, mas ainda é preciso saber, por exemplo, quais impostos e alíquotas recairão sobre o produto e se ele será usado em todos os aeroportos do país.
Steagall, no entanto, diz não ver problema em começar os investimentos antes de a regulamentação sair. “A palma demora quatro anos para crescer. Então, a gente não perde nada começando a fazer o investimento agora. O governo não vai demorar quatro anos para fazer o arcabouço jurídico.” O empresário afirma também que foi importante começar a desenvolver o projeto antes dos concorrentes para conseguir definir as questões de engenharia e tecnologia a tempo.
Enquanto espera a regulamentação, a BBF expande sua área plantada de palma. Hoje, são 75,6 mil hectares em Rondônia e no Pará, em cinco polos de produção. Mais cem mil hectares deverão ser adicionados até 2026. Em um dos polos paraenses, no entanto, a empresa enfrenta talvez o maior desafio para atingir seus objetivos: um conflito fundiário com populações originárias.
Algumas das áreas em que a companhia planta na cidade de Tomé-Açu (a quase 200 km de Belém) são alvo de disputa com comunidades quilombolas e indígenas. Segundo a promotora Ione Nakamura, do Ministério Público do Pará, parte dessas áreas são consideradas públicas - dado que não há um histórico de documentação - e reivindicadas pelas populações tradicionais.
“Se eu compro uma terra, tenho de verificar quem comprou ela antes de quem até o primeiro proprietário, que a comprou do Estado. Se lá atrás houve algum problema, todos que a compraram depois compraram um documento viciado, com problema fundiário”, explica Ione. “A BBF comprou áreas, mas, quando se analisa a cadeia, algumas têm problema de origem”, acrescenta.
A promotora destaca que esse problema é crônico na região e não acontece apenas com a BBF. “Terras adquiridas pela BBF estão inseridas em glebas públicas federais. E também existe o pleito de ampliação do território indígena (em sobreposição a área da BBF) requerida pela etnia Tembé perante a Funai.” Duas associações quilombolas também pleiteiam o reconhecimento de seus territórios na região.
A companhia, porém, afirma que, de acordo com ofícios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), não existe sobreposição de suas terras com territórios indígenas e quilombolas. Procurada, a Funai não se pronunciou. O Incra informou estar levantando dados para poder confirmar se há ou não sobreposição de “áreas da BBF com as do território pleiteados pelas comunidades quilombolas”.
Além desse conflito fundiário, o MP do Pará aponta que deveria ter sido feito um estudo de impacto ambiental na área questionada e criada uma zona de amortecimento entre a fazenda da BBF e o território indígena. Há também preocupação com o futuro das comunidades devido ao empobrecimento da vegetação na região por causa da monocultura de palma e do uso de agrotóxicos que podem contaminar os igarapés. Todos esses problemas, porém, são anteriores a aquisição das terras pela BBF.
O clima na região é de tensão e, segundo fontes ouvidas pela reportagem, ambos os lados estão exaltados. Em agosto, poucos dias antes de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegar a Belém para participar da Cúpula da Amazônia, quatro indígenas foram baleados. A versão da BBF é que a empresa foi invadida e que fogo foi ateado em seus veículos. Os indígenas, por sua vez, dizem que estavam ocupando um território que entendem ser deles.
“Eles (os indígenas) foram baleados por segurança da empresa dentro da empresa. Eles estavam invadindo, furtando, pondo fogo nos veículos, atacando patrimônio da empresa. É a mesma coisa que uma casa aqui no Jardins (bairro de São Paulo), em que vai entrar uma pessoa e o segurança da casa reage à invasão. É uma questão de ação e reação”, diz o presidente da BBF.
O empresário afirma ainda que a relação com as comunidades tradicionais das áreas onde a BBF atua “sempre foi boa”. “O problema são aqueles que se infiltram nas comunidades e agem de forma diferente.” Na avaliação de Steagall, para o conflito ser resolvido, o Estado precisa ampliar a presença na localidade.
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O presidente da BBF ainda pode enfrentar outra resistência para colocar seu ambicioso projeto em pé. O óleo de palma é um dos insumos mais controversos de combustível sustentável. Ele é considerado um dos mais poluentes, dado que desmatamentos costumam ocorrer previamente às plantações de árvores, sobretudo em florestas do sudeste asiático.
A companhia aérea KLM, por exemplo, já comunicou ao mercado que não usará SAF de óleo de palma. Na União Europeia, havia a intenção de acabar com o uso de combustíveis à base do produto até 2030. Após Indonésia, Malásia e Tailândia afirmarem que retaliariam o grupo europeu se a medida fosse adotada, as conversas apontam para uma regulamentação que permita o óleo quando for comprovado que sua produção não está ligada ao desmatamento.
Para Steagall, sem a palma ou a soja (outra possível importante fonte de SAF no Brasil), não deverá haver matéria-prima suficiente para produzir o combustível no volume que será necessário futuramente. “São os dois óleos mais produzidos no mundo. Sobra o que para esses caras?”, questiona.
Steagall afirma que essa posição da União Europeia foi tomada com base na realidade do sudeste asiático, onde estão os maiores produtores de óleo de palma do mundo e onde o desmatamento era regra no segmento. Para ele, quando o Brasil tiver uma produção relevante do óleo e provar que tem uma cadeia sustentável, poderá ser criada uma legislação específica para o País.
Hoje no Brasil, há uma lei de 2010, encaminhada ao Congresso pelo então presidente Lula, que permite o cultivo de dendê apenas em áreas que foram degradadas antes de 2008, o que, ao menos na teoria, impede desmatamentos. Antes de a lei ser implementada, um estudo da Embrapa mostrou que o nordeste paraense teria condições climáticas favoráveis para o plantio do dendê. A promotora do Pará, no entanto, destaca que não foi analisada, à época, a questão sócio-étnica-cultural da região.
Cacau e milho
Enquanto essas questões não são resolvidas, Steagall avança em mais um projeto no Norte do País e promete tornar sua empresa a maior produtora de cacau do mundo. Com um investimento de R$ 1,9 bilhão que deverá ser iniciado em 2025, a BBF deve produzir 45 mil toneladas de cacau por ano a partir de 2030.
A lógica por trás do projeto é aproveitar terrenos que a companhia tem comprado para cultivar palma mas que têm algumas zonas que foram desmatadas depois de 2008 e, portanto, não servem para a produção de óleo de dendê. “O cacau é uma planta nativa da Amazônia e entra como recomposição de reserva legal. Então você faz o quê? Um sistema agroflorestal”, diz Steagall. Também na região norte, a empresa está com uma iniciativa de R$ 1 bilhão para a produção de etanol de milho.
Apesar dos conflitos com os quais tem lidado, o empresário diz não ver risco para desenvolver todos esses projetos no meio da Amazônia - floresta para a qual onde o mundo todo tem se voltado nos últimos anos. “A gente está em cinco Estados no Norte do País e não tem problema em lugar nenhum tirando Tomé-Açu. Na região Norte, as pessoas têm uma disposição para trabalhar, para receber o investidor, para ajudar a desenvolver, porque todo mundo quer um emprego. Todo mundo sabe que uma empresa traz desenvolvimento, que uma terra vazia não gera nada”, diz o empresário. A BBF gera 6 mil empregos diretos e 18 mil indiretos na região.
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