Zero-quilômetro nas alturas e crédito difícil fazem carros ‘velhinhos’ ganharem mercado no Brasil

Participação nas vendas do segmento de usados dos modelos com mais de 10 anos passou de 36,3% em 2019 para 49% no ano passado

PUBLICIDADE

Publicidade
Foto do author Cleide Silva
Atualização:

Automóvel zero-quilômetro muito caro, juros altos e crédito escasso intensificaram um movimento que já vinha ocorrendo no mercado brasileiro: o aumento na procura por modelos usados. E, dentro desse segmento, cresce também o deslocamento da demanda para carros bem mais rodados, com mais de uma década de uso.

PUBLICIDADE

Essa mudança ganhou impulso nos últimos quatro anos. As vendas de carros usados com até dez anos (chamados de seminovos e jovens usados) caiu de 63,7% do total das vendas, em 2019, para 51% no ano passado. Já a participação dos carros acima de dez anos nesse mercado passou de 36,3% para 49% nesse período.

A faixa que mais perdeu consumidores foi a de carros com 4 a 7 anos, que caiu de 30,7% das vendas totais de usados para 19,8%. A que mais ganhou foi a de 11 a 15 anos, que saltou de 17,8%, em 2019, para 25,5% no ano passado, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave).

Nos primeiros três meses deste ano, automóveis acima de 13 anos correspondem a 21,8% das transferências de proprietários, que somaram 3,36 milhões de unidades, conforme dados da Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores (Fenauto).

Publicidade

“O que está ocorrendo prova que o poder aquisitivo dos consumidores caiu e que muitos não conseguem mais chegar ao carro novo e há também o deslocamento nas faixas dos usados”, diz o presidente da Fenabrave, José Andreta Junior.

Ele ressalta que automóveis mais velhos são menos seguros, poluem mais e muitas vezes são responsáveis por congestionamentos ao quebrarem no meio das vias públicas.

‘Bom negócio’

Adepto ao uso da motocicleta, o cinegrafista Thiago Francez, de 36 anos, decidiu comprar um automóvel há cerca de dois anos, após se casar. Sem condições de partir para um modelo mais novo, adquiriu um Fiat Uno Mille 1996 por R$ 6,5 mil. “Foi um bom negócio, o carro não dá muito problema”, diz ele, que mora em Campo Limpo Paulista, na Grande São Paulo.

Thiago Francez pagou R$ 6,5 mil no seu Uno Mille 1996 Foto: José Roberto Cordeiro Junior

Francez conta que conseguiu pagar o carro à vista, sem precisar parcelar ou recorrer a financiamento. Atualmente ele procura um modelo mais novo, de preferência com 10 anos de uso, na faixa de preço de R$ 22 mil. “Queremos um carro com um pouco mais de conforto, como ar condicionado e vidros elétricos”, diz.

Publicidade

A busca por carros com mais de 9 anos hoje representa 60% das consultas em nossa plataforma”

Flávio Passos, vice presidente de Autos e Comercial da OLX

Responsável pela intermediação de quase 20% de todos os negócios de carros usados feitos no País, a plataforma de vendas OLX confirma o movimento. “A busca por veículos com mais de nove anos vem crescendo bastante e hoje representa cerca de 60% das consultas na plataforma; antes era bem menos”, afirma Flávio Passos, vice-presidente de Autos e Comercial da OLX.

A migração, diz ele, primeiro ocorre do zero para o seminovo – movimento visto principalmente em 2021, quando houve falta generalizada de chips e as montadoras paralisaram a produção, o que resultou na falta de modelos novos nas lojas.

Em paralelo, houve a perda do poder aquisitivo da população e a busca também se movimentou para modelos mais velhos, “muito mais acessíveis”, na opinião de Passos.

Estudo do Data OLX Autos divulgado em fevereiro mostra que o preço médio dos veículos na faixa dos 14 anos registram valor médio de R$ 17,8 mil. Os dois carros zero mais baratos atualmente, o Renault Kwid e o Fiat Mobi custam, respectivamente, R$ 68,2 mil e R$ 69 mil.

Publicidade

Base maior

O superintendente de varejo do Banco BV, Jamil Ganan, diz que a instituição é uma das poucas, se não a única, que financia carros com até 25 anos de uso. “O grosso do financiamento, contudo, é na faixa dos 8 aos 14 anos”, informa.

O BV tem cerca de 5 milhões de clientes pessoas físicas e jurídicas e, segundo Ganan, registra índices de inadimplência abaixo da média do mercado, que costumava ficar na casa dos 2% e atualmente está em 5,4%.

Enilson Sales, presidente da Fenauto, pondera que a classificação da entidade para os usados vai dos modelos com até 3 anos (seminovos), de 4 a 7 anos (usados jovens), de 8 a 12 anos (usados maduros) e acima de 13 anos (velhinhos), ou seja, as três primeiras têm intervalos de três anos, enquanto a última parte de 13 anos “até o infinito”. “Ou seja, os velhinhos estão vendendo muito em volume, mas a base é maior do que dos demais.

Publicidade

Nas contas da Fenabrave, veículos com 16 a 20 anos tiveram a participação nas vendas ampliada de 8,5% em 2019 para 10,6% no ano passado. Já os acima dessa faixa passaram de 10% para 12,8%.

O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite, credita boa parte da queda das vendas de modelos novos aos juros altos e avalia que, em razão disso e da restrição dos bancos na concessão de crédito, o consumidor está buscando o mercado de usados e modelos e com 10 anos de uso.

Em sua opinião, esse movimento envelhece cada vez mais a frota, contribuindo com o aumento da emissão de poluentes num momento em que o País busca atender metas de descarbonização.

Esse é um dos temas que um grupo formado por Anfavea, Fenabrave e outras entidades do setor automotivo começaram a discutir com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) na intenção de convencer o governo a criar um novo programa para a volta do carro popular, hoje chamado de carro de entrada.

Publicidade

O mercado de veículos novos está estacionado na casa de 2 milhões de unidades há 8 anos e, atualmente, passa por uma crise de demanda, após de ter enfrentado nos últimos dois anos uma crise de oferta. Fábricas que antes paravam por falta de chips agora também cortam produção e dão férias coletivas aos trabalhadores porque estão com estoques altos e sem perspectivas de melhora nas vendas.

O setor vê na possibilidade de ressuscitar a produção de um modelo de baixo custo chances de recuperar vendas e de reduzir a ociosidade das fábricas, hoje de 40%. Como explica Andreta, da Fenabrave, a ideia é que todos os setores envolvidos contribuam com soluções para baixar preços. No caso do governo, seria com a redução de impostos.