No ritmo de voo de galinha, o consumo de cimento mostra alguns sinais de recuperação no País, como no ano passado, quando as vendas cresceram 3,9%. Porém, o volume comercializado se mantém no mesmo nível de quatro anos atrás. O aumento da demanda apenas foi suficiente para compensar as perdas de 2022 e 2023. O montante vendido no mercado brasileiro (64,7 milhões de toneladas) ainda está distante do melhor ano da indústria, que foi 2014.
Voltar ao mesmo consumo de dez anos atrás (73 milhões de toneladas) é um grande desafio para o setor, admite Paulo Camillo Penna, presidente do SNIC, entidade que reúne a maioria das 23 companhias fabricantes do País. A compra de cimento pelo consumidor individual ou empresarial depende de muitos de fatores: expansão econômica contínua, geração de renda, financiamentos à compra de imóveis e crescimento da atividade imobiliária e de obras de infraestrutura.
Alguns executivos de cimenteiras consideram exagero dizer que o setor vive uma ‘década de estagnação’. Mas os fatos estão aí. Após 2015, com o fim do ciclo de grandes obras da Copa do Mundo (2014) e Olimpíada (2016), seguido da crise econômica, a demanda desabou 27,5% acumulado até 2018. A consequência foi o fechamento de 21 fábricas e paralisação de diversos fornos. Várias instalações ainda estão “hibernadas” devido à ociosidade de 31% na capacidade instalada do parque fabril. O mercado estacionou no nível de 2021 (65 milhões de toneladas).
As marcas da crise que a indústria enfrentou a partir de 2015 são visíveis. Três empresas entraram com pedidos de recuperação judicial desde 2021 ― Tupi, do Rio de Janeiro, Nassau (grupo João Santos), de Pernambuco, e há dois meses a InterCement (grupo Mover), de São Paulo. Também em dificuldades financeiras, outras quatro passaram ao controle de companhias estrangeiras e uma foi absorvida pela CSN, que também comprou os ativos da LafargeHolcim, porque decidiu deixar o setor no País.

Insumo essencial na indústria da construção imobiliária e de obras de infraestrutura, o cimento rema ao sabor dos altos e baixos da economia brasileira e de condições para aquisição de imóveis, de ampliação de programas de residências populares, como o Minha Casa, Minha Vida — no País o déficit habitacional continua acima de 6 milhões de unidades. Para completar, os investimentos em obras de infraestrutura no Brasil continuam baixos.
Penna, do SNIC, resume os pontos essenciais: endividamento e a inadimplência das famílias, nível de renda, juros no patamar atual de 15%, baixo volume de obras de infraestrutura e financiamentos a custos que caibam no orçamento das famílias na hora de financiar a compra de um imóvel.
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“Vemos, neste momento, um ano difícil pela frente. Os juros nos níveis atualmente criam uma competição desigual com aplicações em ativos financeiros oferecidos pelos bancos e até com os jogos online, as bets”, diz o executivo. Nesse cenário, informa que o SNIC projeta, por ora, alta de apenas 1% nas vendas deste ano.
A autoconstrução é o carro-chefe no consumo de cimento: absorveu 62% das vendas do produto no ano passado. “O consumo nesse segmento, para reformas das casas, ‘puxadinhos’ e novas moradias, depende de renda e baixo endividamento das famílias, de juro baixo. Os juros de 12% a 15% desestimulam a autoconstrução”, afirma Penna.

Uma grande aposta, as obras no setor de saneamento, que teve investimentos da iniciativa privada estimulados após o novo marco regulatório, ainda não surtiu o efeito esperado na demanda. Nessas obras, o cimento é usado principalmente na parte de tratamento de água e esgoto. Penna cita que a carteira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem cerca de R$ 80 bilhões para projetos em alguns Estados. Mas até isso se transformar em obras que vão consumir cimento e outros materiais, pode demorar alguns anos. De qualquer forma, será bem-vindo.
A área de infraestrutura é um grande consumidor de cimento, mas no Brasil ela entrou em declínio. Penna informa que, desde 2010, quando atingiu 25% do volume comercializado, vem caindo ano a ano. Atualmente, está na faixa de 12%. Em países desenvolvidos e outros em crescimento, obras de infraestrutura absorvem até 50%. “O consumo seria bem maior no País se tivesse mantido o ritmo de 15 anos atrás. Os programas para infraestrutura, como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), são relevantes, mas não ganham tração”, comenta.
Um ponto positivo, diz, foi a retomada do Minha Casa, Minha Vida. Puxou a demanda de cimento, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, onde se situaram 65% dos lançamentos de imóveis. Esse programa prevê financiar a construção de 2,3 milhões de residências de 2023 a 2026. No ano passado, foram erguidas 620 mil casas e apartamentos. A expectativa é esse número se repetir em 2025.
O consumo de cimento, em 2024, cresceu mais no Norte e Nordeste — respectivamente 10% e 7,5%. O Sudeste, responsável por quase metade de todas as vendas nacionais — registrou alta de 2,8%. O Sul conseguiu superar no segundo semestre os problemas das chuvas e alagamentos no Rio Grande do Sul e registrou 3,5%. No Centro-Oeste o aumento foi de 2,2%, mesmo com a força da produção de commodities agrícolas.
Crise força consolidação do setor
Vários fatores levaram a uma mudança no perfil da indústria após a explosão de consumo vista de 2008 em diante, até 2014. O grande ciclo de demanda atraiu novos investidores locais ao setor, muitos começando a operar já no final do boom de consumo. Exemplos: fabricantes de aço (CSN), de biscoitos (M. Dias Branco), de cerâmica (Elizabeth) e grupo da construção pesada (Queiroz Galvão) e retorno de quem já havia saído (os Brennand).
Na reconfiguração teve também o papel de cimenteiras estrangeiras, fazendo uma espécie de socorro financeiro a quem passou a enfrentar dificuldades de para se manter operando. Alguns venderam os negócios; outros buscaram associações. A portuguesa Secil (2015), a grega Titan (2016), a italiana Buzzi e a francesa Vicat (2018), assumiram ou compartilharam controle da Supremo, Apodi, Brennand e Ciplan.
Não parou por aí o movimento de consolidação do setor. Uma nova onda de aquisições ocorreu entre 2020 e 2022. A irlandesa CRH e a franco-suíça LafargeHolcim decidiram ir embora do País, gerando oportunidades para quem ambicionava crescer. A Buzzi adquiriu os ativos da CRH e a divisão de cimentos da CSN, de Benjamin Steinbruch, levou o grupo franco-suíço, que era o número 3 no ranking brasileiro. A venda foi selada, em 2022, por mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,7 bilhões, na cotação atual).
Um ano antes, em 2021, a CSN já havia adquirido a Cimento Elizabeth, dona de uma única fábrica na Paraíba, que tinha sido transferida ao fundo Farallon em troca de dívidas assumidas pelos investidores no negócio.
A crise não deixou ilesos grandes fabricantes: o grupo Votorantim teve de socorrer sua cimenteira em 2019 com R$ 3 bilhões, dinheiro obtido na venda da empresa de celulose Fibria para o grupo Suzano. A InterCement, que era vice-líder de mercado, deu partida ao processo de venda de ativos a partir de 2017 para equilibrar suas finanças, porém não teve o resultado esperado.
Durante o ciclo virtuoso de investimentos na produção de cimento do País surgiram mais de uma dezena de pequenas fabricantes, que respondem por 1,5 milhão a 2 milhões de toneladas nos dias atuais total de vendas nacionais. As micro produtoras atendem a um mercado específico, microrregional, em diversos Estados. Muitas vezes chegam a incomodar grandes cimenteiras.
Na onda de investimentos de 2008 em diante, houve maior interiorização da produção, com novas fábricas sendo montadas nas regiões Norte e Nordeste, bem como no Centro-Oeste, refletindo a dinâmica econômica de alguns polos de exploração de commodities agrícolas.