A compra de imóveis no modelo multipropriedades tem atraído cada vez mais adeptos no Brasil. Esse formato, que permite o compartilhamento de um imóvel entre vários proprietários, cresceu quase 50% no País desde a pandemia. De acordo com um estudo da Caio Calfat Real Estate Consulting, o valor geral de vendas potencial, o chamado VGV, alcançou R$ 79 bilhões em 2024. As vendas já realizadas neste ano somaram R$ 44,9 bilhões, representando aumento de 27% em relação a 2023.
Segundo o presidente e fundador da Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil (Adit), Caio Calfat, a expectativa é de que o setor de multipropriedades continue em expansão nos próximos anos. “Os resultados mostram que estamos no caminho certo. Após a criação da lei (que regulamenta o setor), a elaboração do manual de boas práticas e a realização de 12 reuniões da AditShare com centenas de participantes, é muito gratificante ver esses números,” celebrou Calfat.
O primeiro investimento neste modelo foi lançado em 2012, em Caldas Novas, uma das maiores estâncias hidrotermais do mundo. A cidade, conhecida pelo grande parque aquático, tornou-se um polo para esse modelo no Brasil. “Eles foram visionários, ocuparam um espaço cativo que existia naquele destino”, diz Calfat.
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Após o sucesso de Caldas Novas, Olímpia, no interior de São Paulo, também começou a receber investimentos para atender o público do Thermas dos Laranjais, sendo hoje o local com maior crescimento no setor. “Nos últimos anos, a multipropriedade tem criado novos destinos, com resorts em regiões até então pouco conhecidas pelos turistas, o que é um grande feito.”
Um dos destaques do setor é a GAV Resorts, que tem um portfólio com 13 empreendimentos no Rio Grande do Sul, Pará, Goiás, Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. No total, a empresa tem 5.208 unidades, que somam R$ 7,38 bilhões em valor geral de vendas.
O CEO da empresa, Manoel Pereira, afirma que o segmento está apenas no início. Ele aposta que ainda há muito espaço para crescer, sobretudo entre a classe média, oferecendo serviços “classe A”. “Outro dia eu estava em um restaurante, conversando sobre meu negócio, e um garçom interrompeu a conversa comentando que era proprietário de uma fração de apartamento em Porto de Galinhas. Ele disse que nunca tinha sido atendido daquela forma. É um produto que atenderia um bilionário, e está chegando a todo tipo de cliente.”
Para Pereira, a proposta do modelo multipropriedade se encaixa na vida da “classe trabalhadora” não só pelo preço das participações nos imóveis. “Essa classe programa melhor sua vida financeira. Compra a multipropriedade com direito a duas semanas e maneja as férias para aproveitar esse tempo. A classe alta, normalmente, planeja menos, tem férias mais flexíveis, quer conhecer novos destinos. Mas temos clientes desse padrão, bilionários, por exemplo”.
Recém-lançado, o Amazon Parques e Resorts, localizada em Penha (SC), busca sua identidade na Floresta Amazônica. O projeto multipropriedade nasceu de uma parceria internacional e germinou no litoral catarinense, inaugurado em 2022. Próximo ao Beto Carreiro World, o resort quer atingir o público já consolidado do parque de diversões e das praias da região. “Esse aspecto amazônico, ligado à sustentabilidade, é nosso maior diferencial”, diz o diretor de Operações da Amazon Parques e Resorts, Marcio Piccoli.
Segundo ele, a empresa está fechando parceria com a RCI Resorts para permitir ao proprietário de uma fração do empreendimento colocar os seus dias não usados em um pool e trocar por dias em outros resorts em vários lugares do País. “Também queremos levar nosso grupo para fora do Brasil, atraindo turistas internacionais para Penha através desse modelo de pool”, explica o Diretor de Operações da Amazon Parques e Resorts, Marcio Piccoli.
O pool, citado por Piccoli, é uma forma de combinar multipropriedade com outra modalidade semelhante, de compartilhamento de tempo (time-sharing, em inglês). Neste modelo, a pessoa não é titular da propriedade, mas do direito de usá-la por um dado período. Com a combinação, seria possível dar a segurança do título de propriedade e, ao mesmo tempo, a flexibilidade de escolher novos destinos em diferentes lugares do mundo, ou de receber o dinheiro equivalente ao aluguel daqueles dias, sem ter de participar da negociação.
Outro grupo em expansão é o Hot Beach Olímpia. Parte do Grupo Ferrasa, tem 3 hotéis, um parque termal, um resort de multipropriedades, e já começou uma nova construção, o Hot Beach You, com 800 apartamentos, para até 26 mil multiproprietários (considerada a menor fração, que dá direito a uma semana por ano) e valor geral de vendas estimado em R$ 1,2 bilhão, segundo dados da própria empresa.
O diretor de multipropriedade do Hot Beach, Rafael Alburquerque, contou que entrar nesse segmento foi desafiador. “Era um negócio que o grupo não conhecia, fomos aprendendo ao longo do tempo. Vislumbramos esse crescimento lá atrás e vimos que fazia sentido. Você impulsiona o caixa, porque o número de compradores é maior. Mas ao longo do tempo, sentimos várias dificuldades. Não existiam grandes bancos e investidores naquela época que oferecessem financiamento. Alguns fundos de investimento começaram a oferecer esse crédito só depois, sobretudo após a pandemia”.
Esse amadurecimento também mudou algumas das estratégias de negócio. Albuquerque relata que, no início, havia uma máxima, de que o produto multipropriedade seria acessível para todas as classes, “mas não é bem assim”.
“O ganho médio da família brasileira, hoje, não permite colocar o lazer como prioridade. De forma geral, a multipropriedade é uma venda de impacto, durante o veraneio, captando clientes entre turistas e oferecendo prêmios. Além disso, por ser um preço mais baixo, atrai um comprador menos cuidadoso. Isso levou a um número muito alto de desistências. Hoje, temos um procedimento bem mais delimitado para garantir que o cliente vá ficar”, explicou, ressaltando que cada venda cancelada significa um prejuízo para a empresa.
Esse alerta não é só da Hot Beach. Segundo o estudo elaborado por Caio Calfat, o porcentual de cancelamento médio das compras foi de 41,7% em 2024 ante 34,8% em 2023. “Isso é uma grande preocupação. O formato da venda das multipropriedades é, normalmente, mais agressivo que outros produtos, e isso pode estimular vendedores a não explicarem corretamente o que está sendo vendido. Por isso, elaboramos o Manual de Melhores Práticas para Multipropriedades Turísticas”, comentou Calfat.
O Escritório Bordinassi Advocacia, especializado em direito imobiliário e situado em Londrina (PR), atende muitos desses cancelamentos. A sócia do escritório Maria Eugênia Bordinassi revelou que foi necessário criar um setor específico para lidar com essas demandas, com cerca de cinco solicitações chegando por dia.
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“Atendemos muitas pessoas que compraram e perceberam que manter esse valor para uma casa de férias não compensa. Florianópolis, Balneário Piçarras e Penha são lugares turísticos. As pessoas vão passar férias e adquirem esse produto. No momento da venda, pela persuasão, elas não entendem que ficam vinculadas a esse imóvel, que o uso é limitado por tempo, que não estará à disposição sempre. Às vezes, acabam nem lendo o contrato na hora da venda”, relatou.
Para a advogada, o que ocorre não pode ser chamado de golpe, porque o cliente assina o contrato por vontade própria, mas de “venda abusiva” e “emocional”. “Em vários casos que atendemos, os vendedores usaram informações da vida do cliente, que ele comentou durante a apresentação do produto, para induzir a compra. O profissional usa isso a favor da empresa”.
Questionado se o grupo está preocupado com o nível de cancelamentos, Marcos Pereira, da GAV, responde que se trata de uma dor de crescimento, esperado em um mercado “em amadurecimento”. “Nos empreendimentos mais consolidados, esse porcentual cai para a faixa de 20% ao ano. Além disso, a maioria dos cancelamentos são nos primeiros 7 dias, o que significa uma não-venda, porque o valor é devolvido integralmente. Se descontar essas não-vendas, o nível é bem inferior ao que o estudo da Calfat aponta”, argumenta o empresário.
Outro problema associado a essa venda “agressiva” é quando, contrariando as melhores práticas estabelecidas pelo segmento, as empresas ou corretoras vendem a multipropriedade como forma de investimento financeiro.
“A multipropriedade não é um produto de investimento, mas para uso do comprador. A Adit condena que isso não seja colocado abertamente para o comprador”, assevera Calfat.
Gerente da consultoria Mapie, que assina junto a Calfat o estudo “Hábitos de Viagens de Lazer do Multiproprietário Brasileiro”, Carolina Sass de Haro é contundente sobre essa estratégia de venda. “Eu acho que colocar isso como investimento é uma temeridade para a indústria, e pode prejudicar pessoas sérias que estão vendendo um produto de qualidade para férias”.
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