No mundo esotérico das altas finanças, há um código de conduta secular, marcado pela discrição nos negócios e nas relações com o poder, que não é escrito, mas costuma ser seguido à risca pela banca. É raro, raríssimo, ver um banqueiro pontificando fora de seus domínios contra o tratamento que os bancos recebem dos políticos e das autoridades.
Nas últimas semanas, porém, os principais banqueiros do País romperam a tradição e ganharam os holofotes, ao criticar o que consideram como “assimetria regulatória” entre os bancos e as fintechs, como são chamadas as startups que proliferaram no sistema financeiro nos últimos anos e conquistaram trincheiras importantes do mercado, com operações totalmente digitais, sem cobrança de tarifas e com atendimento ágil à clientela.
“A arena competitiva mudou drasticamente com as fintechs e pseudo fintechs. Essa competição é saudável, mas é preciso que ela seja em igualdade de condições”, afirmou Milton Maluhy Filho, presidente do Itaú Unibanco, em evento sobre tecnologia bancária realizado pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), no fim de junho. “Se o regulador fomentar assimetrias, lógico que tem desvantagem competitiva. Não temos problema com concorrência, desde que seja todo mundo tratado de maneira igual, conforme o risco que oferece”, disse o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Junior, no encontro. “É preciso um marco regulatório que permita a evolução desse processo competitivo, plural, mas em bases muito mais homogêneas”, acrescentou o presidente do Santander, Sergio Rial.
Condições favoráveis
Embora as críticas sejam dirigidas às fintechs de forma geral, os bancões não estão muito preocupados com as centenas de pequenos empreendimentos que precisam de um capital mínimo de R$ 1 milhão para receber autorização do Banco Central (BC) para operar como instituição de pagamento, sociedade de crédito direto (SCD) ou sociedade de empréstimos entre pessoas (SEP), as portas de entrada do sistema. Eles também não estão preocupados com as empresas que atuam por meio de parcerias com os bancos e nem precisam de licença do BC.
As queixas têm como alvo meia dúzia de fintechs que, segundo eles, conquistou uma musculatura expressiva, apesar do pouco tempo de existência, mas continua a desfrutar dos benefícios reservados aos novos negócios do setor. Isso lhes garante, na avaliação dos grandes bancos, condições mais favoráveis na disputa pela clientela e representa uma espécie de “intervenção estatal” no mercado.
As vantagens das fintechs, de acordo com os gigantes do sistema, incluem a possibilidade de operar sem ter de se constituir formalmente como banco, o que as favorece do ponto de vista tributário e as libera de diversas exigências feitas pelo BC, como o recolhimento compulsório sobre os depósitos, que se reflete negativamente na oferta de crédito e nos juros. A questão tributária ganhou tal relevância na agenda que foi tema de uma reunião do presidente da Febraban, Isaac Sidney, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, na semana passada, em Brasília.
Segundo informações “vazadas” para a imprensa, a proposta da Febraban é que o governo aproveite a reforma tributária para igualar as alíquotas dos tributos das fintechs e dos bancos, o que, na prática, deverá representar um aumento significativo de impostos para as startups financeiras. Hoje, elas pagam no máximo 34% de Imposto de Renda e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), como as demais empresas, enquanto os bancos pagam cerca de 45% e até o fim deste ano pagarão em torno de 50%, conforme decisão recente do Congresso, para compensar a redução de tributos sobre o gás de cozinha e o óleo diesel.
Conversas reservadas
Além da vantagem tributária e de não recolher o compulsório, as fintechs têm, de acordo com os bancos, mais liberdade de alocação de capital e gozam de benefícios na área trabalhista. Seus funcionários não são considerados bancários e podem trabalhar oito horas por dia, enquanto os trabalhadores dos bancos são enquadrados na categoria e têm jornada de seis horas diárias – as adicionais devem ser pagas como horas extras. Mesmo quem atua na área de sistemas e em outras atividades não diretamente ligadas ao negócio dos bancos, tem de ser categorizado como bancário, com impacto direto na folha de pagamento.
Apesar de não mencionarem nomes, os grandes bancos miram em fintechs como Nubank, Stone, Ebanx e Neon, que são autorizadas pelo BC a operar como instituições de pagamento, mas expandiram seus tentáculos por diferentes segmentos e hoje integram a seleta lista de unicórnios brasileiros – categoria reservada às startups cujo valor de mercado é superior (ou bem superior, conforme o caso) a US$ 1 bilhão (R$ 5,2 bilhões).
Em conversas reservadas, alguns executivos dos bancos tradicionais incluem no grupo a XP, o C6 Bank, o ModalMais e o Inter, mas eles já foram autorizados a operar como banco ou estão ligados a um banco desde o princípio. A XP, que conquistou uma fatia relevante dos negócios na área de investimentos, já atua como corretora de valores há anos e tem licença do BC para funcionar como banco múltiplo desde 2018, sob as mesmas regras que os demais bancos do mercado.
Já o C6, que surgiu como fintech e hoje tem o americano JP Morgan como sócio, com uma participação de 40% que lhe custou cerca de US$ 2 bilhões (R$ 10,4 bilhões), recebeu licença do BC para atuar como banco no início de 2019. Também está inserido, portanto, no mesmo ambiente regulatório dos bancões. Outras instituições, como ModalMais e Inter, já nasceram ligadas a bancos que operam sob o mesmo guarda-chuva regulatório dos gigantes do sistema.
Regulação proporcional
Para os grandes bancos, o exemplo mais emblemático, entre as fintechs que se agigantaram, mas ainda não se constituíram como banco e continuam a se beneficiar da condição de startups, é o Nubank. Estrela maior dos empreendimentos criados após a flexibilização das normas do BC para instituições de pagamentos e de crédito, em 2013 e 2018, respectivamente, o Nubank tem, hoje, cerca de 40 milhões de clientes no País e uma fatia de 8% do mercado de cartões, além de financeira e corretora próprias.
No total, o Nubank já recebeu quase US$ 2,2 bilhões (R$ 11,3 bilhões) em aportes de investidores, o equivalente a cerca de um terço de todos os investimentos realizados em fintechs nos últimos dez anos no País, segundo a Distrito, empresa de análise e de dados de startups. Só o megainvestidor americano Warren Buffett fez um aporte de US$ 500 milhões (R$ 2,6 bilhões) na instituição, por meio da Berkshire Hathaway, a sua holding de investimentos. Seu valor de mercado, calculado com base nos aportes mais recentes, já alcança US$ 30 bilhões (R$ 156 bilhões). Supera o da XP (US$ 23 bilhões) e o do Banco do Brasil (US$ 20,6 bilhões) e chega perto dos valores de mercado do Santander (US$ 33,6 bilhões) e do BTG Pactual (US$ 36,4 bilhões).
Procurado pelo Estadão para comentar as reclamações dos bancos contra as “assimetrias regulatórias” das fintechs, o Nubank enviou uma nota por e-mail, por meio de sua assessoria de imprensa, com a sua posição sobre a questão. “O Nubank considera fundamental o debate sobre a regulação proporcional do setor”, diz a nota, em referência às normas que estabelecem exigências diferentes para as instituições, conforme o porte e os riscos que ofereçam. “Mas vê com atenção a comparação de conglomerados bancários que representam quase 30% do PIB do País com instituições de pagamento com ativos que representam menos de 1% do PIB.”
De acordo com a nota, o Nubank “não possui vantagens” sobre os grandes bancos e recebe “um tratamento adequado”, que leva em conta a complexidade, o tamanho e os riscos envolvidos na operação. Está sujeito também, afirma a nota, às mesmas obrigações de prevenção à lavagem de dinheiro, segurança cibernética e ouvidoria. “É sobre proporcionalidade que deveríamos falar e não sobre assimetrias.”
‘Coexistência saudável’
O advogado Bruno Magrani, presidente da Zetta, entidade criada há três meses pelo próprio Nubank, pela Mercado Pago e pelo Google, para representar as fintechs e as empresas de tecnologia que oferecem serviços financeiros digitais, bate na mesma tecla. “Os grandes bancos reclamam das regras do compulsório, mas as instituições de pagamentos, ao contrário dos bancos, podem usar exatamente zero dos recursos depositados nas contas dos clientes.”Na avaliação de Magrani, isso equivale a um compulsório de 100%, porque as instituições de pagamento têm de aplicar todos os dias os salddos existentes nas contas em títulos indexados à Selic, a taxa básica de juro.
Já as SCD, segundo ele, não podem alavancar as operações de crédito sobre o capital, como os bancos, e só podem emprestar o capital próprio. As SPE, por sua vez, não podem nem usar o capital próprio para a concessão de empréstimos e têm de atuar apenas como intermediárias entre os investidores, que fornecem os recursos para as operações, e os clientes. Isso tudo limita muito a capacidade das instituições de expandir suas carteiras.
Entre as próprias fintechs, porém, há uma percepção de que as que se tornarem mais corpulentas serão reenquadradas pelo BC em categorias que têm de cumprir mais exigências para operar, como já prevê a regulação em vigor. “O próprio sucesso das fintechs vai direcioná-las para um ambiente regulatório igual ao dos bancos”, diz Jean Martin Sigrist Junior, presidente da Neon, que atua como instituição de pagamentos e já recebeu US$ 426,3 milhões (R$ 2,2 bilhões) em aportes de investidores.
Ele afirma que as fintechs que não se formalizaram como instituições de pagamento ou de crédito têm de transitar as suas transações por meio de algum banco e precisam estar em conformidade com as mesmas normas que a instituição tem de respeitar. “Os bancos podem ver as fintechs como canais de distribuição e de uso eficiente de seus balanços. Pode haver uma coexistência saudável para o sistema e muito saudável para os clientes.”
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