Com a inadimplência batendo novos recordes e pressionando a carteira de crédito de grandes bancos, varejistas e fintechs, o volume de contas já vencidas que devem ser vendidas a casas especializadas – o chamado “crédito podre” – poderá terminar o ano com cerca de de R$ 75 bilhões. É um valor recorde, segundo especialistas na área. Essas empresas, que compram um grande volume de “calotes” com descontos, buscam a recuperação de crédito, por meio de negociações com o devedor, propondo novas condições e prazos de pagamento.
Uma das razões para o forte aumento dos calotes neste ano foi a rápida subida do juro básico no Brasil, hoje no patamar de 13,75% ao ano. Isso encareceu o crédito e corroeu a renda. No Brasil, 78,9% das famílias têm dividas vencidas, segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) atualmente. Fora isso, um aumento da competição do mercado de crédito fez muitas pessoas pegarem empréstimos em mais de uma instituição, mesmo estando negativados.
Esse mercado de compra e venda de dívidas vencidas vem se desenvolvendo no Brasil a passos largos nos últimos anos. Os bancos e outros agentes que dão crédito vendem suas carteiras de dívidas já vencidas, com baixa chance de recuperação (ou seja, pagamento). Essas carteiras são adquiridas por firmas especializadas por um gordo desconto em relação a seus valores reais. A partir daí, elas buscam negociações com os devedores.
Segundo Marcela Gaiato, diretora da Recovery, recuperadora de crédito do Itaú Unibanco, o aumento do volume do mercado tradicionalmente sobe no fim do ano, momento em que os bancos tentam “limpar” o balanço, repassando adiante o crédito vencido há mais tempo, já provisionado e dado como prejuízo.
Também estamos observando empresas de novos setores vendendo suas carteiras
Marcela Gaiato, diretora da Recovery
A executiva da Recovery lembra que, até outubro, o volume do segmento era de R$ 45 bilhões – já acima dos R$ 40 bilhões de todo o ano passado. “Também estamos observando empresas de novos setores vendendo suas carteiras”, diz. Dentre esses entrantes estão fintechs, varejistas e empresas de consumo, como as de gás e luz. Isso, segundo ela, é demonstração de mais maturidade deste setor, com as companhias passando seus débitos de difícil renegociação para negócios especializados.
O presidente da Return (recuperadora de crédito do Santander), Lauro Leite, frisa que o ano fechará com cerca de R$ 75 bilhões de dívidas vencidas transacionadas, um valor recorde. Pelas regras do Banco Central (BC), o banco precisa provisionar um calote quando o atraso atinge 180 dias e deve lançá-lo como prejuízo em seu balanço quando bate os 360 dias. É nesse momento que começa o repasse desses débitos.
O executivo do Santander afirma que houve ainda um lote de R$ 15 bilhões de dívidas que chegaram a buscar um comprador, mas não foram vendidas. Segundo ele, a exigência de um alto desconto oferecido não agradou o vendedor, que resolveu “segurar” a dívida por enquanto.
Mesmo com mais players vendendo suas carteiras, os bancos tradicionais são os grandes responsáveis por movimentar esse mercado. Por ter o crédito como o negócio chave, essa é a explicação para que hoje todos os grandes bancos tenham suas empresas de recuperação de crédito.
Desconto
A equação matemática para se dar valor a “calotes” é complexa. Além do prazo dessa dívida, há uma série de outras variáveis, como idade, região de residência e contexto macroeconômico, como juros, nível de emprego e inflação, levados em conta.
Em 2022, houve uma certa mudança no perfil das dívidas repassadas a terceiros, com empresas e bancos se livrando de débitos a partir já de 180 dias. Segundo Gaiato, da Recovery, os vendedores de crédito estão fazendo lotes maiores para a venda, com a meta de reduzir o desconto pedido pelo vendedor.
Saiba mais
‘Respingos’
O ciclo de alta dos calotes entre as pessoas físicas já começa a chegar no mundo corporativo, respingando primeiro nas varejistas, que são as primeiras a sentir o baque econômico, aponta Alexandre Cruz, sócio da gestora Jive, pioneira do mercado de compra de crédito inadimplido no Brasil. “A inadimplência sempre começa na pessoa física”, aponta.
Essas carteiras de crédito dado a empresas já começou a chegar ao mercado. “Já temos um volume 50% maior no segundo semestre em relação ao primeiro. É uma situação delicada, mas não caótica.”
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