Com 121 anos de atuação como uma trading de commodities agrícolas e processadora de alimentos, a ADM (Archer Daniels Midland), dona de um faturamento de US$ 101 bilhões em 2022, é uma das gigantes que ajudaram a expandir o comércio exterior que alimenta a população do planeta. Pelas últimas duas décadas, a executiva brasileira Letícia Gonçalves tem acompanhado essa história de perto, atuando na sede da empresa nos EUA. De Chicago, cidade onde também se localiza a principal bolsa de valores de commodities do mundo, ela falou com o Estadão, sobre o futuro da empresa e da alimentação.
Toda a tradição da ADM deve ser colocada à prova pelos próximos anos, quando o mundo enfrentará o desafio de alimentar mais pessoas com maiores doses de proteína, sem, no entanto, exaurir os recursos naturais e prejudicar o meio ambiente.
Para ajudar a dar conta dessa tarefa, Gonçalves acredita que as pessoas estão mais dispostas a consumir proteínas alternativas, sendo que a ADM já está se preparando para essa nova demanda. Pesquisas da empresa dão conta que 87% dos consumidores globais demonstram interesse em experimentar produtos feitos à base de plantas, a partir de proteína vegetal. Além disso, 74% querem experimentar produtos feitos com fontes híbridas de proteína. Por exemplo, um alimento que misture porcentagens de proteína animal, vegetal e até de carne criada em laboratório.
Um desafio, no entanto, está em tornar esse alimentos mais acessíveis para os países em desenvolvimento. “O foco será resolver o problema de acesso a esses alimentos, com uma abordagem bem customizada. Existem muitas nuances regionais para a necessidade dos consumidores”, afirma a executiva, que mesmo depois de décadas morando fora do Brasil mantém a fluência na língua portuguesa, ainda que com algum sotaque americano e ocasionalmente precise recorrer a termos em inglês.
Segundo a pesquisa da ADM, 40% dos consumidores globais de plantas dizem que consumiriam mais proteínas de origem vegetal se os preços fossem semelhantes aos de origem animal. Esse número sobe para 51%, quando se trata de consumidores brasileiros. Tal tendência vai permitir desenvolver um mercado global de proteínas alternativas de US$ 100 bilhões até 2030. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Como uma empresa criada em 1902 se prepara para o futuro da alimentação?
É um momento fascinante do setor de alimentos. A ADM é uma empresa muito antiga. Começou com originação de grãos, trading e merchandising dentro do agribusiness, mas evoluiu muito nos últimos dez anos, desde a aquisição da Wild Flavors (empresa de ingredientes naturais, em 2014). Agora, está realmente focada nas principais necessidades para garantir a segurança alimentar no planeta. Será importante trazer comida para uma população crescente, mais preocupada com saúde e bem-estar, além da sustentabilidade. Hoje, não podemos só pensar no que é o melhor para a população em termos de alimentos, mas precisamos fazer isso de forma sustentável para o meio ambiente.
Os consumidores já entendem isso, então?
Uma área de forte crescimento dentro da minha divisão na ADM é a de proteínas alternativas. Isso por que mais da metade dos consumidores hoje se consideram “flexitarianos. Eles estão de olho em diversificar as fontes de proteínas que consomem. As pessoas continuam comendo carne animal, mas estão buscando outras coisas, à base de legumes e plantas, e outras culturas e tecnologias que vão vir, como fermentação de precisão e a carne de laboratório. O mundo vai precisar de mais proteína. Não só por cauda do crescimento da população, mas também pela quantidade de proteína na dieta das pessoas. O mundo vai ter a necessidade de um ecossistema de proteínas alternativas.
Como isso vai movimentar os negócios em alimentação?
A gente acredita que esse mercado de proteína alternativa vai continuar crescendo e trazer uma oportunidade, até 2030, de US$ 100 bilhões a serem explorados anualmente. Ainda seria uma pequena parte frente ao mercado global de proteína. O mercado de carne animal será de US$ 1,5 trilhão. É um setor gigante, mas, do ponto de vista de negócios, há uma grande oportunidade para inovações. Quem começou este mercado foram os vegetarianos, mas ele está virando um mercado mais mainstream.
Esse mercado será importante também para um país em desenvolvimento como o Brasil?
Os brasileiros também estão preocupados em mudar a dieta. Nossas pesquisas apontam que 82% dos brasileiros buscam melhorar a quantidade de proteína na alimentação, e 87% deles querem experimentar proteína feita à base da plantas. A gente está acompanhando isso, e mostrando como podemos atender a esta necessidade, e também trazendo produtos com o conceito de proteína híbrida, que mistura carne animal, vegetal e criada em laboratório. Sabemos que 74% dos consumidores estariam interessados em comer proteínas híbridas.
Uma dificuldade, no entanto, não são os preços mais altos dessas proteínas alternativas?
O foco será resolver o problema de acesso a esses alimentos, e com uma abordagem bem customizada. Existem muitas nuances regionais para a necessidade dos consumidores. Há aqueles que querem pagar o preço premium por um produto melhor, e existem os que não querem, principalmente, nos mercados emergentes, onde a população não tem uma renda muito alta. Precisamos trazer produtos dentro de um preço bem viável para o consumidor. Inclusive, temos as nossas fábricas de produção de ingredientes bem regionalizadas. No Brasil mesmo, há uma em Campo Grande, onde produzimos proteína. Temos também um centro de inovação em Hortolândia (SP), onde fazemos o desenvolvimento de produtos. Trabalhamos de forma muito regionalizada, para resolver os problemas locais.
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Então, a carne de laboratório, produzida por células, vai ser uma realidade de mercado?
Essas tecnologias novas começam numa escala pequena, mas trazem um potencial alto de chegar numa economia de escala. Começa com uma taxa de inserção no produto final e vai aumentando. É uma coisa que a ADM faz, ajudando diversas empresas a desenvolver um novo mercado, firmando parcerias com empresas de tecnologia. Trazemos justamente o know how de tecnologia para dar escala de produção, porque a gente tem muita experiência em manufatura. Ajudamos as empresas a entenderem como fazer um produto sair da fase de testes em laboratório, para virar um produto-piloto, para então chegar à escala comercial e atingir a massa crítica de mercado. É uma evolução natural. Os consumidores vão começar a testar. Nem todo mundo vai querer testar de cara, e depois o consumo vai aumentando. Então, vamos alinhando a oferta e a demanda.
Ser uma tradicional trading de commodities ajuda?
O que ADM tem de positivo é que podemos ser parceiros de ponta a ponta do mercado. Não temos só a originação dos grãos, o que inclui trazer novas tecnologias na semente. Um dos nossos projetos é já aumentar a quantidade de proteína na semente da soja, trazendo o melhor sabor a partir daí. A gente consegue trabalhar a cadeia de valor inteira, da semente até a carne de laboratório.
Além da carne, há uma evolução prevista para outros alimentos?
Falamos muito de substituir a carne animal, mas este mercado está se diversificando em muitas outras categorias. Em lácteos, já existe muito leite à base vegetal: leite de soja, de côco, de amêndoas. Mas agora essa tendência está chegando mais a queijos, iogurtes e cream cheese. Então, os laticínios alternativos também crescem muito. Outro mercado que está se ampliando bastante é o que chamamos de nutrição especializada, para o qual vamos ter produtos à base vegetal para controlar peso e para nutrição esportiva. Existem muitas categorias de alimentos alternativos se expandindo, não só a carne. Estamos trabalhando em todas elas.
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