A Ferrovia Centro Atlântica, antigo trecho da extinta estatal Rede Ferroviária Federal passado à iniciativa privada em 1996, quer ser uma empresa geradora de lucro, fato que não conseguiu até hoje nos seus 28 anos de concessão. A intenção da companhia é virar a página de anos seguidos de balanços no vermelho. A FCA vem discutindo sua renovação desde 2016, em idas e vindas, de um contrato que vence em dois anos. A assinatura para um novo período de 30 anos, numa perspectiva otimista, deve ser feita em um ano.
Até lá, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que faz a regulação do setor ferroviário do País, vai coletar todas as recomendações oriundas das audiências públicas realizadas em seis cidades, pedir informações adicionais à FCA e preparar um documento que será encaminhado ao Tribunal de Contas da União (TCU) para análise do processo. O TCU vai fazer a análise a partir de 2025 para depois emitir o parecer final. Esse ritual poderá demandar um bom tempo até a assinatura do novo contrato de concessão.
Para obter a renovação, a empresa propôs, no projeto apresentado à ANTT, fazer investimentos de R$ 24 bilhões na modernização, recapacitação e sinalização da ferrovia e ampliar a frota de locomotivas e vagões. Outros R$ 5 bilhões serão pagos pela outorga, ressarcimento da devolução à União de trechos inoperantes (mais de 2,1 mil km) e realização de cerca de 80 obras diversas em 35 cidades onde passam os trilhos da FCA. Do valor total, segundo a empresa, cerca de metade deve ser desembolsada em 10 a 12 anos.
A FCA tem 7.860 km de extensão e atravessa 7 Estados mais o Distrito Federal, indo de São Paulo a Sergipe, passado por Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia e Goiás. É controlada pela holding VLI Multimodal S.A. que também opera Ferrovia Norte-Sul, que se conecta à Estrada de Ferro Carajás e chega aos portos do Maranhão. A VLI tem cinco acionistas: o fundo canadense Brookfield, com 36,5%, a Vale, com quase 30%, a japonesa Mitsui, com 10%, o fundo FI-FGTS e BNDESPar, braço de investimentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Fábio Marchiori, que está na VLI há quatro anos e meio, e atualmente é presidente interino e também é diretor financeiro, disse em entrevista ao Estadão que se trata de uma renovação bastante complexa. “Como a FCA tem vários trechos e todos com diferentes desempenhos e um desbalanço financeiro grande, essa renovação tem exigido muita negociação”, afirma o executivo. Ele informa, por exemplo, que desde 1996 a concessionária já pagou à União cerca de R$ 17 bilhões (corrigidos) pelo direito de operar e ainda tem R$ 900 milhões a serem pagos, em parcelas trimestrais, até 2026. Segundo o executivo, nos últimos 13 anos foram investidos cerca de R$ 20 bilhões na FCA, envolvendo a malha, material rodante, terminais de captação e de movimentação de cargas nos portos.
O desempenho operacional e financeiro, no ano passado, registrou prejuízo de R$ 907 milhões, sendo quase R$ 600 milhões de perdas operacionais. Em 2022, o prejuízo foi bem maior - R$ 2,54 bilhões. A receita líquida alcançada pela empresa em 2023 foi de R$ 3,49 bilhões, com crescimento de 14% ante o ano anterior. O valor representa 38% do total consolidado pela VLI. Ao fim do primeiro semestre deste ano, a FCA tinha uma dívida líquida de R$ 924 milhões e alavancagem financeira inferior a 1 vez na relação com lucro operacional (Ebitda).
Marchiori observa que a FCA não é uma ferrovia com operação dedicada a transportar cargas dos acionistas. É totalmente voltada a cargas de terceiros, levadas aos portos em Santos, em seu terminal Tiplam, situado em Cubatão, e de Vitória. Para isso, usa o direito de passagem em ferrovias da MRS Logística e da Vitória a Minas.
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Cada corredor tem sua especialização: no Tiplam são movimentados mais grãos (soja e milho), açúcar e fertilizantes; em Vitória, no complexo portuário de Tubarão, mais produtos siderúrgicos (aço, carvão e coque) e minério. “Somos uma ferrovia diferenciada, que não encosta no mar. Ela chega aos portos pelos trilhos de outras concessionárias”.
Soja, insumos para fertilizantes, açúcar, minério de ferro e calcário são as cinco principais cargas transportadas pela FCA em seus trilhos em ordem de volume. As demais são milho, farelo de soja, derivados de petróleo, aço, carvão e coque, bauxita e coque verde de petróleo (insumo para fornos de cimenteiras).
“Temos feito intensas negociações com a agência e o governo para a renovação, mostrando que cada trecho tem as especificações de malha, material rodante e cargas que são transportadas”, diz o executivo. O governo e a agência, diz, estão cientes que os investimentos a serem realizados têm de ser condizentes com a receita gerada. “O interesse da VLI é continuar operando a ferrovia, mas numa nova realidade, de equilíbrio financeiro”, afirma.
Minas a Bahia: uma pedra no meio do caminho
No processo de renovação, a FCA tem uma pedra no meio do caminho que circundam as serras de Minas Gerais até a Bahia, num trajeto de 2 mil km. O trecho entre a cidade mineira Corinto e a baiana Campo Formoso é considerado a parte mais problemática da ferrovia, devido a sua baixa densidade de carga. Atualmente, são apenas quatro clientes. Um deles, a mineradora de ferro Bamin, na Bahia, está com a produção paralisa desde o final de 2023, sem utilizar a ferrovia. Magnesita, Ferbasa (que extrai e processa cromo) e Dow são as demais. A Dow já informou a FCA que terá outra alternativa logística a partir de 2025.
Por essa situação, o trecho muitas vezes foi apontado como potencial para uma devolução da FCA ao final da concessão, em 2026. Marchiori nega que exista esse plano na empresa. Ele diz que a questão é definir, com o órgão regulador, investimentos na via e em material rodante conforme as projeções de cargas a serem transportadas no futuro.
O executivo é otimista quanto ao futuro da FCA. “O modal ferroviário ganha espaço no Brasil e novas cargas deverão surgir. Apesar de estar operacional, a empresa e, principalmente esse trecho, não tem hoje equilíbrio financeiro com o volume transportado”, destaca.
Mas ele garante que não haverá descontinuidade operacional do corredor Minas-Bahia, mantendo atendimento aos clientes. Ele vê algumas soluções que poderão ser feitas para mantê-lo operacional de forma lucrativa. Uma delas é a cisão desse trecho, que passaria a ter operação independente. Pode ser com a própria FCA, mas somente após ter o reequilíbrio financeiro.
Outra alternativa, aponta o executivo, é oferecê-lo para terceiros, por meio de “chamamento público”, sob a coordenação da ANTT. Um terceiro caminho, aponta, com base no modelo previsto no Plano Nacional de Ferrovias, fazer a compensação do investimento de outra ferrovia. “Um exemplo é a construção de parte da Fico pela Vale”, afirma. No caso, esse trecho receberia os recursos.
A Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), com 888 km de extensão entre os Estados de Goiás e Mato Grosso, tem quase metade do trajeto (383 km) em construção pela Vale. Conhecido como “investimento cruzado”, foi uma forma de a mineradora compensar a renovação da Estrada de Ferro Vitória a Minas, que nasce na capital capixaba e vai até Belo Horizonte.
No estudo apresentado à ANTT pela FCA, a empresa propôs investimentos de R$ 3,5 bilhões no processo de renovação, por mais 30 anos, relativo ao corredor Minas-Bahia. Esse valor está baseado na densidade de carga atual somada com potenciais cargas que possam surgir no futuro. “A questão é equilibrar investimento necessário com a demanda para a operação da ferrovia ser rentável”, destaca Marchiori.
Maior competitividade e aumento da carga
Aproveitando a renovação do contrato, a FCA está propondo devolver trechos e ramais não operacionais, que somam 2.132 km de trilhos. “São 11 subtrechos onde os clientes simplesmente desapareceram ao longo dos anos”, diz o presidente da VLI. A indenização aos cofres da União, por isso, está avaliada em R$ 3,6 bilhões. Se efetivada a devolução, a FCA reduziria sua malha para 5.470 km.
Boa parte dos R$ 5 bilhões, incluída nesse valor a indenização, será paga em obras, como a construção de um ramal ferroviário de 2,5 km ligando a ferrovia ao porto de Aratu, na Bahia. Foram propostas também 80 obras - para resolução de conflitos urbanos -, como viadutos, pontes e passagens de nível, em 35 municípios onde passam os trilhos da FCA. Segundo o executivo, vão beneficiar cerca de 5 milhões de pessoas.
A estimativa da empresa é que os investimentos de R$ 24 bilhões na malha e em material rodante previstos na renovação antecipada, grande parte do montante no corredor Sudeste - de Goiás a Santos -, vão permitir aumentar em 46% o volume de carga transportada pela FCA no novo ciclo da concessão, que começaria em 2026. No ano passado, a ferrovia transportou 41 milhões de toneladas úteis, com destaque para grãos (50%), produtos siderúrgicos e industriais, açúcar e fertilizantes.
O grupo VLI, que abrange a FCA, o corredor da Norte-Sul (com contrato até 2037) e outras atividades, como operações de carregamento e descarga de vagões nos portos, registrou receita líquida R$ 9,1 bilhões no ano passado e teve lucro líquido recorrente de R$ 916 milhões. A empresa gerou um fluxo de caixa nas operações de R$ 4,9 bilhões e investiu R$ 2,5 bilhões, conforme demonstrações em seu balanço. Com base no resultado de janeiro a junho, a receita de 2024 poderá superar a marca de R$ 10 bilhões.
O negócio da VLI, ressalta Machiori, é oferecer serviços multimodais integrados - ferrovia, transporte rodoviário de terceiros que abastece áreas de captação de cargas e terminais e prestação de serviços nos portos em que atua. “A FCA é suportada financeiramente por todo esse ecossistema das coligadas da VLI. Por isso, toda essa negociação de renovação é complexa, trabalhosa e sofisticada”, diz.
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