ENVIADA ESPECIAL A CAMAÇARI (BA) E IRACEMÁPOLIS (SP) - Na recepção de um hotel em Camaçari (na Bahia), dois chineses fazem check-in com o auxílio do celular. Funcionários de uma empresa fornecedora de “robôs logísticos” – como empilhadeiras automáticas – para a montadora BYD, eles usam um aplicativo de tradução para conversar com a recepcionista.
Desde que a montadora chinesa iniciou suas obras na cidade de 300,4 mil habitantes da região metropolitana de Salvador, no primeiro semestre deste ano, o fluxo de chineses nos estabelecimentos comerciais é crescente – apesar de não ser uma novidade. Polo industrial, Camaçari já está acostumada, segundo os moradores, com estrangeiros que vêm visitar as fábricas, inclusive chineses. O município, por exemplo, é sede de uma planta da também chinesa Sinoma, que fabrica pás eólicas. O volume maior de orientais pelas ruas, no entanto, é novidade de 2024.
O Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil, Montagem e Manutenção Industrial de Camaçari e Região (Sindticcc) calcula que mil operários trabalham hoje nas obras da fábrica de carros elétricos da BYD, sendo 500 deles orientais. De acordo com a montadora, os chineses foram contratados por empresas terceirizadas por terem “expertise na construção desse tipo de fábrica que tem diversas características únicas de tecnologia”. Questionada pela reportagem, a empresa não informou quantos estrangeiros trabalham na obra.
A presença de trabalhadores chineses nas cidades brasileiras é uma das faces mais visíveis de uma transformação da indústria automotiva. Com custo inferior, tecnologia elétrica e um mercado dando sinais de saturação, a China vem inundando o mundo todo com seus carros, e as montadoras tradicionais perdendo competitividade.
Os mercados americano e europeu, no entanto, criaram restrições comerciais para os veículos chineses, e o país de Xi Jinping viu o Brasil como alternativa. É um destino com alta demanda por veículos e capacidade de se tornar base exportadora para toda a América do Sul.
“Os chineses começaram exportando pequenos volumes de carros elétricos para o Brasil, que passou a aceitar o produto. Automaticamente, deu-se a decisão de que o Brasil será a porta para a ocidentalização dos veículos chineses”, diz o consultor Ricardo Roa, sócio da consultoria KPMG e especialista no setor automotivo.
Além da fábrica da BYD em Camaçari, o Brasil também receberá uma planta da GWM. A montadora está adaptando uma antiga fábrica da Mercedes-Benz em Iracemápolis (a 165 quilômetros de São Paulo) para produzir carros eletrificados. A GAC, quinta maior montadora chinesa, afirma que investirá US$ 1 bilhão até 2029 para produzir no Brasil. Ela não revela quando iniciará a fabricação, mas, segundo fontes do setor automotivo, tem entre suas opções a compra da planta da Toyota em Indaiatuba (SP), que será desativada até 2026. A Neta Auto também estaria de olho na fábrica da japonesa, e a Omoda/Jaecoo (O&J) negocia um local para montagem de CKDs (conjunto de peças que vem pronto da China e são agregados aqui, com pouco ou nada de componente local) em 2025.
Na Bahia, a presença de chineses também deve crescer na construção civil, com as obras da ponte de 12,4 km entre Salvador e a ilha de Itaparica por um consórcio chinês. O governo de Jerônimo Rodrigues (PT) retomou as conversas com as companhias após ameaçar romper o contrato, no início deste ano, devido a custos adicionais que elevariam o preço da obra, orçada inicialmente em R$ 13 bilhões.
Enquanto não movimentam Salvador, os chineses mudam o cenário de Camaçari. Por lá, já há alguns bairros famosos por concentrar os orientais, como o Inocoop. A partir das 6h, eles ocupam as ruas da vizinhança enquanto esperam o transporte que os levam para a fábrica da BYD. O mesmo acontece entre 17h e 18h30, quando retornam da planta.
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Alguns deles frequentam a academia do shopping no fim do dia. Mas, com a barreira do idioma, o contato entre brasileiros e chineses é pequeno, contam os moradores da cidade. Trabalhadores da Sinoma, porém, dizem se comunicar “um pouco” pelos aplicativos de tradução. “Eles são gente boa”, diz um funcionário que pediu para não ser identificado. “São umas máquinas para trabalhar”, acrescenta outro.
Solange Borges, dona do restaurante Culinária de Terreiro, conta que alguns chineses se tornaram seus clientes, consumindo principalmente cerveja. “Todo dia, a gente vê alguns deles aqui. Eles experimentam de tudo”, diz ela, que está otimista com um possível aumento das vendas decorrente da chegada dos estrangeiros.
“A fábrica ainda nem está funcionando e já tem gente vindo aqui. Imagine quando ela estiver operando”, acrescenta Borges. Segundo ela, os chineses começaram a frequentar o restaurante há uns três meses, sempre no período da noite.
Por meio de aplicativo de tradução, a reportagem tentou conversar com três grupos de chineses em diferentes dias. Todos fizeram sinal de “não” com a mão e saíram andando rapidamente.
Em Camaçari, os chineses vivem em casas e apartamentos. Em uma casa de três andares no bairro Inocoop, moram ao menos 20 deles. Donos de sorveterias e bares da região afirmam que, ali, eles consomem muito pouco. Apenas cigarros são mais demandados pelos estrangeiros.
Em Iracemápolis, apesar de a presença chinesa ser menor – ao redor de 80, segundo a GWM –, comerciantes contam estar se adaptando aos hábitos de compras dos estrangeiros. Além de cigarros e chocolates, os supermercados têm vendido mais carne de porco, legumes, verduras e frutas.
“O movimento não chegou a aumentar, mas percebemos que o mix de produtos tem diferença. Alguns produtos que a gente quase não trabalhava agora têm demanda, como comida oriental mesmo”, diz Luiz Henrique Camargo, sócio da rede de supermercados Camargo.
Tanto em Camaçari como em Iracemápolis, os trabalhadores chineses moram próximos uns aos outros. Na cidade baiana, donos de imobiliárias contam que lhes foi pedido casas vizinhas para os executivos em condomínios fechados. No município paulista, eles ocupam o prédio mais alto do centro da cidade.
Condições de trabalho
Em Camaçari, no entanto, as condições de trabalho de parte dos trabalhadores chineses são precárias, de acordo com uma reportagem publicada pela Agência Pública no fim de novembro. A matéria aponta que os operários chineses terceirizados que atuam nas obras da BYD são vítimas de agressões físicas, não trabalham com equipamentos de proteção individual e vivem em alojamentos aglomerados e mal iluminados. Em nota, a BYD afirmou exigir que as “prestadoras de serviços responsáveis pelas obras atuem na correção com urgência”. “Estamos acompanhando as melhorias de perto e priorizando o bem-estar de todos”.
Procurado pelo Estadão para falar sobre o assunto, o coordenador-geral do Sindticcc, Antonio Ubirajara, disse ter começado a receber denúncias de más condições de trabalho em abril. Segundo ele, os dirigentes do sindicato foram, à época, à fábrica e detectaram algumas irregularidades, como a localização do refeitório próxima ao ambiente de trabalho – o que foi regularizado, diz Ubirajara.
“Fomos pegos de surpresa pelas novas denúncias (feitas no fim de novembro). Agora, estamos aguardando as investigações do Ministério Público do Trabalho.”
Após as denúncias, novos problemas surgiram. No dia primeiro de dezembro, um trabalhador sofreu um acidente e teve o dedo amputado. No dia dois, outro sofreu uma fratura exposta e, no dia 5, um terceiro sofreu um corte leve. O Ministério Público abriu um inquérito para apurar qual a condição no canteiro de obras da BYD, incluindo contratos e vistos de trabalho.
As denúncias elevaram uma certa desconfiança que há em Camaçari em relação aos chineses. Em 2012, a JAC Motors fez uma cerimônia na cidade para colocar a pedra fundamental do que viria a ser sua fábrica no Brasil. A planta nunca foi inaugurada.
Um ex-funcionário da Ford (montadora que teve fábrica na cidade até 2021), que pediu para não ter o nome revelado, afirmou que não tentará uma vaga na fábrica chinesa por considerar a cultura muito distante da que se acostumou em seus 20 anos na montadora americana. “Os orientais são menos flexíveis. Na época da Ford, não era fácil, mas o sindicato entrava lá sempre que queria, fiscalizava tudo. Agora, vai ser mais difícil.”
Entre os funcionários da Sinoma, os comentários são de que o ritmo chinês é muito mais acelerado do que o que se tinha na Ford. “A Ford era uma mãe”, diz um deles.
Questionados sobre as expectativas com a chegada da BYD, eles afirmam achar positiva a possibilidade de haver mais empregos na cidade, mas acrescentam não ser fácil aguentar o ritmo chinês.
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