A família Guinle foi por muitos e muitos anos sinônimo de poderio empresarial. Mas seu rosto mais conhecido se gabava de nunca ter trabalhado um dia sequer na vida. Era o playboy Jorginho Guinle. Morto em 2004, aos 88 anos, sem deixar dinheiro para os seus três herdeiros, ele morava em um apartamento do Copacabana Palace, hotel que já não era da família, mas para o qual ajudou a trazer fama mundial. O final de vida de bon vivant de Jorginho representou a fase final da trajetória empresarial da poderosa família que viveu durante todo o século II no Rio de Janeiro e ajudou a construir a mística da cidade.
Aparentemente, há pouca coisa em comum entre o Porto de Santos, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e o Copacabana Palace. Menos ainda com a paixão do brasileiro pelo futebol, o Fluminense, o reconhecimento internacional da música brasileira, o Palácio Laranjeiras, as boas relações entre o Brasil e os EUA durante a Segunda Guerra e até o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Mas tudo isso tem em sua origem o dedo da família Guinle.
Apesar de tal histórico empresarial e cultural, o mais famoso integrante do clã nas últimas décadas foi alguém que se notabilizou por evitar o trabalho. Jorginho alegava ser um playboy profissional. Bem-humorado e culto, além de dizer que não trabalhou nenhum dia de sua vida, também afirmava ter planejado morrer sem deixar nenhum tostão, mas que não previra viver além dos 70 anos. Por isso, teria ficado sem dinheiro no fim da vida.
Mas a deterioração dos negócios da família não dependeu só dele. A partir de 1972, quando a ditadura militar retirou dos Guinle a concessão do Porto de Santos, a família perdeu uma fonte de receita recorrente e, a partir daí, os negócios definharam e foram sendo vendidos um a um.
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“Jorginho cristalizou a fama de sofisticada da família, mas ele foi uma exceção. Os Guinle tinham fama de empreendedores que suavam a camisa”, diz o historiados Clóvis Bulcão, autor do livro Os Guinle (Ed. Intrínseca). As duas primeiras gerações construíram um império, que a terceira geração não conseguiu manter. “Faltou a eles talento empresarial, saber como olhar para futuro, como se relacionar com o poder, o que as primeiras gerações tiveram de sobra. Foram próximos do Império, da República Velha e de Getúlio Vargas.”
Se a decisão do governo militar, insuflado pelos jornais da época, foi surpreendente, o fato é que a família já deveria estar se preparando para o fim da concessão de 100 anos que tinham no Porto de Santos, diz o historiador. O negócio mais promissor era o bancário. Donos do Banco Boavista, eles não perceberam a tendência de consolidação que criou um mercado de seis grandes instituições financeiras.
O Boavista manteve-se como um banco regional, da elite carioca, e não se nacionalizou como Bradesco, Itaú, Unibanco e Banco Real antes da venda para o ABN Amro e depois para o Santander. O Boavista foi vendido em 1997, já em situação problemática.
Outro negócio que não chegou a evoluir foram os investimentos da família em energia elétrica, por conta da concorrência dura com a Light, que dominava a capital carioca. Ainda assim, a empresa dos Guinle deu origem ao sistema que opera até hoje em Niterói.
Origem empresarial
A história empresarial dos Guinle começa com Eduardo Palassin Guinle (1846-1912). A família tinha origem francesa e se estabeleceu no Uruguai, antes de participar de um êxodo de seus conterrâneos para o Rio Grande do Sul, por conta de tumultos no país. Nascido em Porto Alegre, Palassin Guinle se mudou para o Rio de Janeiro e, junto com o também gaúcho de origem francesa Candido Gaffrée, fundou em 1870 um armazém de sucesso.
Como a França era o país da moda, logo virou um local onde os ricos iam comprar produtos importados, e os tornou ricos. A evolução foi rápida. Em três décadas, o empresário se aproximou da realeza, se especializou em construção e assumiu o controle da criação do Porto de Santos, para construir uma fortuna colossal.
“O Brasil não tinha um porto, apenas atividade portuária, em locais como Santos e Rio de Janeiro. Atracavam barquinhos a remo, para levar e descarregar mercadorias em trapiches super-rudimentares”, diz Bulcão. A Coroa tinha um plano antigo de criar um verdadeiro porto em Santos, mas havia grandes dificuldades tecnológicas, que não foram superadas nas duas primeiras tentativas do País.
Havia um lodaçal em Santos e apenas os Guinle conseguiram construir no local, com tecnologia e capital adequados. Depois de vencer esses desafios, superaram outros que vieram nas décadas seguintes, como a Crise de 1929 e a Segunda Guerra. As receitas com Santos e as boas relações com o poder permitiram que continuassem expandindo.
Quando Getúlio Vargas resolveu criar o Plano Siderúrgico Nacional, encarregou Guilherme Guinle, um dos sete filhos de Eduardo Palassin, de tocar o projeto. Ele havia herdado do pai a gestão do Porto de Santos, e então seria responsável por construir o complexo da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda (RJ).
Foi Guilherme também o fundador do Banco Boavista. A sede da instituição foi desenhada por um jovem e promissor arquiteto chamado Oscar Niemeyer e abrigou a primeira exposição do que viria a ser o MAM-RJ.
Impacto cultural
Outros irmãos também tiveram sucesso empresarial ou impacto cultural. Octávio, o mais jovem dos cinco filhos homens, fundou o Copacabana Palace, que, apesar de ser o hotel mais icônico do país, era considerado um negócio menor da família. Hoje, é o legado mais relacionado à família. Arnaldo foi patrono do Fluminense e trouxe ao Brasil a Copa América de 1919. Na época, os esportes mais populares eram o turfe e o remo. Mas, com a vitória de 1 a 0 da seleção brasileira, com gol de Arthur Friedenreich, na final contra o Uruguai, no Estádio das Laranjeiras, o futebol virou uma febre nacional.
Arnaldo também bancou a viagem de Pixinguinha e o seu grupo, Os Oito Batutas, para a Europa em 1922. Foi a introdução da música popular brasileira ao mundo. Já Carlos, pai de Jorginho, criou a Granja Comary, hoje local de treinos da seleção brasileira, mas que nasceu para ser uma fazenda modelo. Certa vez, nos anos 1950, um jogo de futebol no local com membros da família contou com o presidente Vargas como juiz.
Carlos também bancou as duas primeiras viagens do compositor Heitor Villa-Lobos a Paris. “Os Guinle sabiam que era importante promover a cultura brasileira lá fora. Eles tinham uma visão completa de país, que envolvia arquitetura, esporte e música”, diz Bulcão.
Até mesmo Jorginho, o playboy que namorou algumas das principais musas da era de ouro de Hollywood, teve influência significativa para a cultura brasileira. Por um lado, foi companheiro de farra de Errol Flynn, astro de filmes de aventuras, e de Bruce Cabot, a ponto de uma vez terem saído os três com Lana Turner, Veronica Lake e Linda Darnell, três grandes estrelas dos anos 1940. Por outro, entre uma noitada e outra, teve um importante papel diplomático. Recebeu a missão de Nelson Rockefeller que ajudou a convencer o governo Vargas a se aproximar dos aliados na Segunda Guerra.
Ajudou em roteiros de Hollywood sobre o Brasil, na época da política de boa vizinhança. Foi amigo do megaempresário e produtor de cinema Howard Hughes. E até recebeu, na mansão do pai, no Botafogo - onde hoje fica o Centro Cultural Argentina -, o presidente Franklin D. Roosevelt e a Princesa Elizabeth. Ajudou até a estabelecer a fama internacional do carnaval carioca, na era Vargas, ao convidar atrizes famosas para a ocasião, que se hospedavam, obviamente, no Copacabana Palace.
Agora, a mística da família pode estar sendo reescrita com a holding de comércio exterior Timbro, criada por Jorge Guinle, da quarta geração, e pelo sócio Bruno Russo. O grupo ganhou fôlego após a pandemia e prevê faturar este ano R$ 12 bilhões, tornando-se a segunda maior do setor no País. É um novo capítulo que começa.
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