Marco temporal pode afetar relações comerciais de indígenas com empresas, afirmam especialistas

Legislação brasileira determina que companhias precisam garantir escuta qualificada de cada povo ao buscar questões comerciais; entidades temem que conflitos se tornem regra

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Foto do author Luis Filipe Santos
Atualização:

Projetos que visam estabelecer relações comerciais entre empresas e povos indígenas podem ser impactados pela aprovação do marco temporal, que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), segundo especialistas ouvidos pelo Estadão.

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Quando desenvolvem projetos próprios para gerar renda, esses povos em muitos casos precisam buscar apoio no mercado para o desenho de propostas, validação do projeto, implementação, monitoramento e, ao fim, avaliação das iniciativas.

No Brasil, a construção de uma relação comercial saudável e positiva de empresas e ONGs com os povos indígenas precisa seguir as exigências da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Lei 13.123/2015, para que se busque consentimento prévio para os projetos.

O Brasil é signatário da convenção 169 da OIT, que trata dos direitos de povos indígenas. Entre eles, estão a autonomia e o controle de suas próprias instituições, das formas de vida e do desenvolvimento econômico, da propriedade sobre a terra e os recursos naturais.

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Já a lei 13.123/2015 garante que os povos originários e comunidades tradicionais sejam remunerados caso seus conhecimentos sobre o patrimônio genético sejam utilizados, além da repartição de benefícios para a conservação e uso sustentável da biodiversidade. Também exige a realização de consultas prévias para consentimento.

Entidades públicas como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério Público podem acompanhar os projetos para garantir que tudo atenda aos critérios legislativos.

Segundo o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), é fundamental observar se a relação comercial proposta não será um fator de desagregação, se os benefícios serão coletivos ou se a forma de sua partilha irá afrontar a organização social, política ou econômica daquela sociedade.

Indígenas tem marcado presença para o julgamento do Marco Temporal dentro e fora do STF Foto: Wilton Junior / Estadão

A pasta diz que os projetos devem vir das demandas dos próprios indígenas, para respeitar sua autodeterminação sobre as formas de etnodesenvolvimento. O órgão lembra ser preciso evitar o estabelecimento de relações baseadas em premissas coloniais, pressupondo-se que os conhecimentos ocidentais modernos têm maior valor que os saberes ancestrais.

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Os efeitos do marco temporal

Segundo especialistas, o marco temporal pode prejudicar a construção dessas relações, ao fazer com que os conflitos se tornem a regra. Ao Estadão, o MPI avalia ser necessário acabar com a permissividade em relação às violências e mortes contra pessoas povos indígenas.

Se aprovada, a tese pode causar ainda mais insegurança jurídica, ao prejudicar o direito de posse de locais que já foram reconhecidos ou estão em processo de reconhecimento. “(A aprovação) Pode incentivar ações de grilagem e violência, além de prejudicar os direitos conquistados dos povos indígenas brasileiros”, avalia Virgilio Viana, superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), organização com experiência nos contatos com comunidades indígenas.

A aprovação poderia até mesmo prejudicar o Brasil em negociações internacionais, segundo Luciana Sonck, sócia-fundadora da consultoria Tewá 225, também especializada no contato com povos.

Segundo ela, o País liberaria terras para a agricultura, sendo que há terras já disponíveis que não são plenamente utilizadas, e menospreza outras formas de fazer com que a floresta em pé seja rentável, como o mercado de carbono. “O Brasil está tateando esse mercado e pode perdê-lo, além dos bens da floresta. Pode ser um tiro no pé não apostar na bioeconomia”, comenta.

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Ela destaca que a aprovação ou rejeição da tese pode significar muito para o País que o Brasil quer ser. “Não será importante apernas para determinar a demarcação de terras, mas também é sobre modelo de desenvolvimento. Se quer entrar num mercado que dependa da floresta em pé ou se vai sustentar e dar tração ao modelo destrutivo que já tem”, conclui.

As diretrizes para as relações comerciais

O primeiro ponto para uma empresa que visa estabelecer relações comerciais com povos indígenas é conhecer a cultura específica com a qual se planeja estabelecer laços. O Brasil tem 305 etnias e 274 línguas indígenas, segundo o IBGE. Assim, buscar aprovação para comércio ou outros tipos de projetos envolve conhecer o idioma para poder comunicar do que se trata o projeto.

Virgilio Viana, da Fundação Amazônia Sustentável, cita como exemplo um projeto realizado durante a pandemia de covid-19. “Desenvolvemos um programa para capacitar agentes indígenas de saúde. E para isso, tivemos que traduzir o manual para a língua Baniwa”, menciona.

Para construir os projetos, ir até às comunidades é fundamental, em vez de só conversar com poucos indivíduos e permitir que a decisão final seja tomada em salas ocupadas por executivos.

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“Ganha-se tempo e qualidade nas negociações quando os encontros acontecem na própria comunidade, onde os moradores se sentem mais à vontade para expressar francamente seus interesses e demandas”, avalia Luiz Brasi, coordenador da Rede Origens Brasil no Imaflora, organização que visa estimular a bioeconomia na Amazônia.

Ao mesmo tempo, é preciso que, para haver consentimento verdadeiro, a possibilidade da rejeição precisa também existir. É necessário construir mecanismos para garantir a participação de toda a comunidade, principalmente mulheres e jovens.

“Os povos indígenas são muito assediados, em negociações de microescala. Sem consentimento geral, podem ficar vulneráveis à manipulação por interesses que não condizem com a preservação da floresta ou mesmo do próprio povo”, comenta Luciana Sonck, da Tewá 225. Segundo ela, muitas vezes são ouvidas apenas duas ou três lideranças, e a questão é então levada para as empresas.

Outro ponto é que o tempo das comunidades e da floresta não é o mesmo das empresas. Podem ser necessárias várias consultas ao longo de meses ou anos para que a comunidade considere que uma decisão pode ser tomada, e é necessário respeitar esse período. Da mesma forma, a produção de itens da bioeconomia não funcionam no mesmo ritmo que monoculturas, podendo ocorrer grandes variações de um ano para outro, assim como no período em que as safras ocorrem.

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Outros benefícios que podem vir a ser gerados são o engajamento de jovens na comunidade, a manutenção de práticas tradicionais de manejo e a visibilidade para os povos. Também podem expandir o conhecimento das comunidades sobre práticas comerciais contemporâneas e assim aumentar seu poder de barganha em outras negociações futuras.

O que é o marco temporal

A tese do marco temporal prevê que os povos poderão reivindicar como suas apenas as terras que ocupavam na data da promulgação da atual Constituição (5 de outubro de 1988), o que é defendido principalmente por entidades do agronegócio. Os indígenas argumentam que o marco desconsidera que podem ter sido expulsos dos locais que ocupavam antes desse dia.

Nos últimos anos, crimes como garimpo ilegal e grilagem de terras indígenas cresceram, levando a crises humanitárias como a que atingiu os Yanomami. O temor de quem é contrário à tese do marco temporal é que a situação se agrave ainda mais, acabando com demarcações de terras já realizadas ou com processo em andamento, e colocando comunidades e povos em risco.

Segundo o MPI, o marco reduz sensivelmente e até inviabiliza o exercício da posse plena dos territórios indígenas por parte de seus povos, o que impediria que eles realizassem o usufruto e a gestão dos territórios.

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“O marco temporal abre espaço para que outros interesses, sobretudo econômicos, orientem o uso e a gestão de terras indígenas, favorecendo atores não-indígenas que visam explorar essas áreas para aferição de lucro em benefício de pequenos grupos de setores privados. Isso confronta a autonomia e a autodeterminação indígena. Os povos originários perderiam o direito de ser ouvidos, consultados e respeitados em suas decisões sobre a gestão de seus territórios”, afirmou a pasta.

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