A crise no mercado global de alto luxo não afetou o consumidor brasileiro. Apesar da desaceleração do setor em grandes mercados como Estados Unidos, Europa e China, o Brasil segue na contramão, com um aumento no interesse por bens exclusivos e de alto valor.
Essa tendência se reflete na expansão de espaços em shopping centers dedicados a grifes de luxo e nos lançamentos de produtos. O principal indicativo, no entanto, é a chegada de novas marcas ao Brasil, como a boutique japonesa Comme Des Garçons, a californiana que combina moda esportiva e de lazer Alo Yoga, a grife espanhola Loewe e a de fragrâncias Le Labo Fragrances. Além disso, mesmo lojas icônicas já consolidadas no País, como Tiffany & Co, Balenciaga e Zegna, tem investido na ampliação de suas lojas e na inauguração de novas unidades.
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Esse movimento também é confirmado por pesquisas que analisam os números do setor. Um estudo da consultoria Bain, em parceria com a Fondazione Altagamma – associação dos fabricantes italianos de bens de luxo –, estimou no final do ano passado que o mercado global de luxo deve registrar uma queda de até 3% em 2024, considerando a correção cambial, fechando o período com uma movimentação de € 1,48 trilhão (R$ 9,18 trilhões). Essa seria a primeira retração do setor desde a crise financeira de 2009. No entanto, o mesmo estudo apontou que a América Latina, com destaque para Brasil e México, segue em crescimento, tendência que deve se manter em 2025.
Brasil na contramão
A queda global seria ainda maior se não fosse a expansão dos serviços de luxo. O consumo mundial com hospitalidade de luxo subiu 4%, no ano passado, e com alimentação gourmet e restaurantes finos, 8%. Por outro lado, a queda nas vendas de bens pessoais de luxo foi de 2%, para € 363 bilhões (R$ 2,2 trilhões). No Brasil, segundo consultores especializados no segmento, isso não aconteceu, e mesmo esse mercado de itens refinados cresceu no ano passado.

“Existe uma tendência mundial já há algum tempo de maior consumo em experiências, para aproveitar a vida e cuidar da saúde, em vez da posse de bens. No Brasil, isso também acontece, os serviços de luxo crescem mais, mas a compra de bens também cresce”, afirma o consultor Gabriele Zuccarelli, o sócio da Bain especialista em varejo de luxo. “O Brasil ainda tem um mercado incipiente, menos maduro e com tendência a crescer. O consumo interno também se beneficia do câmbio em alta, que fez as pessoas viajarem menos.”
Nos últimos dados consolidados do segmento no Brasil, a Bain contabilizou um mercado que movimentou R$ 74 bilhões no ano de 2022, com uma expectativa de atingir os R$ 133 bilhões, em 2030. O público potencial consumidor de luxo tinha subido de 730 mil pessoas, em 2014, para 1,3 milhão, em 2022, dobrando a fortuna disponível para essa classe mais favorecida, para US$ 720 bilhões (R$ 4 trilhões).

Para 2030, a consultoria estima que haverá 1,5 milhão de brasileiros acumulando US$ 1,1 trilhão (R$ 6,3 trilhões), uma vez que as riquezas devem crescer três vezes mais rapidamente do que o número de indivíduos muito ricos.
Para a consultoria especializada em luxo MCF Consultoria, do especialista no segmento Carlos Ferreirinha, a expansão de vendas no Brasil, no ano passado, ficou em torno de 12%.
“Os resultados vêm mantendo forte ritmo de crescimento em todas as regiões do País e com destaque para alguns setores, principalmente, o imobiliário de alto padrão”, diz Ferreirinha. São muitos os fatores para a expansão. Mas destaco o crescimento da renda concentrada, que tem sido forte e expressivo nos últimos anos. Há mais dinheiro disponível e o crescimento da riqueza de certa forma segue positivo.”
Essa contraposição do Brasil frente ao restante do mundo pode ser vista nas notícias sobre as grandes grifes do setor. Em dezembro do ano passado, duas décadas após abrir a sua primeira loja no Brasil, no shopping Iguatemi São Paulo, a joalheria nova-iorquina Tiffany inaugurou no mesmo local a sua primeira unidade flagship da América Latina. Antes localizada na vitrine do shopping, a marca agora ocupa um espaço central de mais de 400 metros quadrados, em dois andares.

Na próxima semana, acontece a inauguração de sua cafeteria Blue Box Café, que funcionará temporariamente no local. Tanto o café como a nova loja seguem o padrão da sede em Manhattan. Inspirada na matriz de Nova York, surgida em 1837, a loja foi adaptada para o gosto local, com elementos regionais e obras de artistas nacionais como Humberto Campana, para se conectar de forma mais profunda com o público do País.
Segundo o CEO da Tiffany, Anthony Ledru, o Brasil está entre os dez maiores mercados de luxo do mundo, reflexo do crescimento no consumo de produtos de alto padrão no pós-pandemia. Para a marca, essa tendência representa uma oportunidade estratégica, enquanto, para o consumidor brasileiro, o movimento confirma um desejo crescente por experiências e produtos exclusivos. “Estaremos entre as três primeiras, se não a marca de luxo número um do País. Essa é a nossa ambição”, diz Ledru.
Expansão para o Centro-Oeste
Ainda no primeiro semestre do ano, a Tiffany terá a sua segunda unidade no Centro-Oeste, que será aberta no Flamboyant Shopping, em Goiânia, num símbolo da expansão do luxo pelo território nacional em busca das novas fortunas do agronegócio. O shopping tem projeto de adicionar aproximadamente 25 mil metros quadrados de área bruta locável (ABL), o que irá permitir a abertura de cerca de 50 novas lojas.
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A joalheria já havia chegado à região com um espaço no shopping Iguatemi Brasília, que também se encontra em expansão. Em outubro do ano passado, o grupo de shoppings de luxo Iguatemi fez o lançamento comercial do projeto na capital federal. A previsão é de abertura de 90 lojas, num espaço adicional de 15,5 mil metros quadrados de ABL, atingindo 50 mil metros quadrados. Os investimentos estão estimados em R$ 236 milhões. Segundo a diretora de mix e varejo da Iguatemi, Satomi Nanba, metade da ampliação será ocupada por marcas estreantes em Brasília.
“Nos últimos dois anos, houve um crescimento expressivo de vendas, e não só de lojas e novas marcas. No pós-pandemia, o brasileiro aprendeu a comprar luxo dentro do Brasil. O crescimento não acontece só por uma questão de câmbio”, diz a executiva.
Ajudaram para esse momento, de fato, o isolamento social da pandemia e a posterior disparada do dólar frente ao real que encareceu as viagens e tornou menos vantajoso fazer o turismo de compra. Mas, para Satomi, as marcas internacionais também aprenderam a trabalhar melhor com o cliente nacional. “O brasileiro gosta de ser mimado. Quando ele viaja, não é recebido com água e cafezinho, pela vendedora que sabe o seu nome e que envia semanalmente por mensagem os lançamentos da marca que estão chegando”, afirma.

Além disso, outra vantagem das compras no Exterior também perdeu força. “Antes, as diferenças de preços dos produtos eram muito maiores no Brasil”, diz Satomi. Segundo a MCF Consultoria, a média de preço em relação aos EUA foi superior em quase 10% e, frente à Europa, em torno de 25%.
Concorrente do grupo Iguatemi nos espaços de alto luxo, a JHSF registra há quatro anos vendas acima de 10% em seus shopping centers. No terceiro trimestre de 2024, houve um aumento de 25,3% nas vendas dos lojistas, comparadas com o mesmo período do ano anterior, impulsionado pelo aumento de consumo das lojas e pelas expansões inauguradas em 2023. A taxa de ocupação atingiu 97,5%.
Segundo a empresa, um dos destaques da expansão recente está no segmento de alta joalheria. Nos shoppings da JHSF, há lojas flagships das marcas Cartier, Bulgari e Van Cleef & Arpels. E o Shopping Cidade Jardim vende, com exclusividade no Brasil, a linha de alta perfumaria e joias da Louis Vuitton.
Exclusividade atrai o brasileiro
Além das aberturas de lojas e expansão de vendas, produtos exclusivos têm sido apresentados para o consumidor brasileiro. Na terça-feira, 25, a tradicional maison parisiense de perfumaria e cosmética Guerlain, fundada em 1828 e que hoje pertence ao grupo LVMH, vai mostrar em São Paulo um perfume que também traz características de obra de arte, numa indicação do aumento de importância do mercado local. O Bee Bottle Prestige By Shourouk Rhaiem, criado pela designer francesa que assina a obra, terá apenas uma unidade vendida no País, por R$ 101 mil, adornada com cristais Swarovski.
“O Brasil ainda é um mercado pequeno, quando comparado à Europa e à China, mas em ascensão”, afirma a diretora da Guerlain no País, Vivi Koyama. “A Guerlain tem esta categoria estratégica, muito premium, de perfumes que custam de R$ 2,5 mil até um patamar de R$ 100 mil reais a R$ 150 mil, feitos com grandes artesãos e com peças numeradas. Estamos no Brasil há pouco mais de 12 anos, mas até 2022 estávamos trabalhando de forma mais mainstream, com vendas nas lojas da rede Sephora, mas um dos principais passos recentes da marca está em trabalhar com itens de mais exclusividade.”

Essa estratégia resultou na abertura de um e-commerce próprio, em agosto de 2023, que permite vender diretamente, como numa butique online, produtos para um nicho superexclusivo de clientes.
No ano passado, a maison também inaugurou no País seu primeiro spa da América do Sul. Localizado no hotel Rosewood São Paulo e chamado Asaya SPA by Guerlain, oferece tratamentos de beleza, cuidados com a pele e terapias regenerativas, além de ser atualmente o único ponto de venda físico da marca no Brasil para a sua coleção de alta perfumaria.
Essa combinação de serviços com produtos é uma das inovações das grifes globais para enfrentar mudanças no padrão de consumo. Uma vez que os clientes buscam mais experiências, a solução para muitas grifes têm sido combinar a venda de produtos com espaços exclusivos de serviços.
Decepção global
Enquanto o número de clientes de alto luxo cresceu no Brasil, a tendência global é inversa. A consultoria Bain identificou um decréscimo de 50 milhões de consumidores de luxo no mundo, de 2022 para 2024, para 350 milhões de pessoas.
O menor interesse da geração Z por artigos de luxo é considerado um dos fatores para isso. Mas há outros pontos. Por exemplo, as grifes adotaram, nesta década, a estratégia de ampliar o preço dos seus artigos, como forma de selecionar mais os clientes e aumentar a sensação de exclusividade, ao mesmo tempo que ampliam os seus lucros. Mas, para muitos especialistas internacionais, os clientes não tiveram a percepção de que a qualidade e a inovação das marcas tenham acompanhado o acréscimo dos preços.

A classe mais favorecida também passou a priorizar outras formas de sinalizar prosperidade. Entre elas, estão privacidade, tempo de lazer e viagens para locais de mais difícil acesso. Até mesmo uma moda mais discreta, simbolizada pelas roupas de cores sóbrias usadas pelo personagem da herdeira Shiv, da série Succession, já serviu como justificativa para o menor interesse por gastos com bens de alto luxo.
Desaceleração global
Para piorar, o desaquecimento da economia chinesa, mercado que foi o grande motivador do crescimento das grifes no novo milênio, afetou em cheio as vendas. A crise imobiliária do país asiático causou maior contenção de gastos dos consumidores locais, somada a uma “culpa de consumo” incentivada pelo governo do Partido Comunista Chinês, nos últimos anos.
Como consequência de tudo isso, apenas um terço das marcas de luxo devem ter fechado 2024 com crescimento, segundo a Bain, em comparação com dois terços no ano anterior e 95% delas entre 2021 e 2022.
Tal cenário levou a grandes nomes do luxo, como a LVMH (dona da Dior e da Louis Vuitton), a Burberry e a Kering (proprietária da YSL e da Gucci), não atingiram as metas de faturamento em 2024. Um símbolo do momento foi a perda da LVMH do título de empresa mais valiosa da Europa, quando foi superada em 2023 pela farmacêutica norueguesa Novo Nordisk, fabricante do Ozempic. No ano passado, a holding francesa relatou ter tido o seu pior desempenho financeiro em 15 anos.
A exceção foi a Hermès, que registrou forte crescimento, em grande parte, devido ao sucesso de sua bolsa Birkin, que acumula longas listas de espera que levam anos para ser comprada.
O valor das ações dos grandes grupos caíram, no ano passado. O valor da Kering despencou 39,4%, da Burberry caiu 30%, da LVMH, 13% e da Moncler, 7,8%. Dessa forma, o valor acumulado de mercado das dez empresas de luxo de maior porte, que havia se aproximado do US$ 1 trilhão, em 2023, caiu mais de US$ 100 milhões.
O mercado brasileiro pode não ter porte suficiente para reverter essa tendência sozinho. Mas, junto com o restante da América Latina, a Índia, o Sudeste Asiático e a África, deve adicionar mais de 50 milhões de consumidores de luxo emergentes até 2030, o mesmo número de pessoas que o mercado global perdeu em 2024. / COLABOROU LUCAS AGRELA