As grandes empresas brasileiras, como o grupo Cosan, têm verdadeiros exércitos para atuar em seu departamento tributário, tamanho o impacto do pagamento de impostos para os seus resultados e tal é a complexidade do sistema brasileiro. A reforma tributária em tramitação no Congresso promete simplificar isso, e tem potencial de destravar investimentos, mas precisa evitar cair em algumas armadilhas, como as de estabelecer muitas alíquotas de exceção, ou jogar mais o peso tributário em cima de poucas organizações, alerta o CEO da Cosan e membro do conselho de administração da Vale, Luis Henrique Guimarães.
“As pessoas esquecem que o mesmo dinheiro que vai para o imposto é o que iria para investimentos. Não existem dois bolsos”, diz o executivo. “O objetivo será aumentar a arrecadação via crescimento do país ou via taxando mais quem já paga?”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Qual a importância de a reforma tributária sair?
O nosso sistema precisa mudar. Ele é caótico. Traz um custo e uma complexidade gigantesca. A incerteza é enorme. É só ver os casos de decisões judiciárias e cobranças retroativas. Isso cria uma geração de passivos nos balanços, tanto para a União quanto para as empresas. É uma enormidade o que existe de créditos tributários não aproveitados, o que se consome de balanços por que as empresas precisam registrar fianças, seguro-garantia e depósitos judiciais, que são recursos financeiros que não podem ser utilizados para investimentos. Assim, a economia opera com um grau de ineficiência o qual é pouco falado.
A estrutura de impostos brasileira implica custo operacional alto para as empresas lidarem?
O custo de acompanhamento de todas as questões tributárias é muito grande. As regras mudam no meio do caminho. São reinterpretadas muitas vezes no Judiciário. Passam por quinhentas instâncias e muitas vezes, mesmo dentro da mesma vara de Justiça, o entendimento muda. Mas não quero criticar os juízes com isso. Coitados deles. Não existe um tribunal específico para questões tributárias. Há para questões trabalhistas, mas não para o sistema tributário. Imagina o que é para alguém julgar um caso complexo de ágio, sem ser especialista no assunto.
Que outros benefícios a simplificação traria, além de diminuir essa ineficiência e baixar os custos de operação?
Como o sistema é difícil e complexo, existe uma sonegação gigantesca. O Bernard Appy (secretário extraordinário da reforma tributária) comenta isso e já fizemos várias contas aqui do hiato entre a arrecadação teórica e real, e seria algo entre 21% e 24%. No nosso segmento de combustíveis, há cerca de R$ 26 bilhões de sonegação fiscal anual, de impostos federais e estaduais, segundo estudo da Fundação Getulio Vargas. Então, ficamos discutindo risco fiscal e se criam impostos novos, enquanto temos R$ 26 bilhões não coletados. E isso acontece numa categoria fácil de ser cobrada. Não é como em cerveja, com um milhão de bares, espalhados pelo País. No nosso setor, são cerca de 40 mil postos de combustíveis, 30 distribuidoras e 100 produtores de etanol. Em tese, assim, seria fácil arrecadar e acompanhar a cobrança automática.
O modelo que a reforma está tomando agrada?
Sabemos que a reforma tem de ser a reforma possível. Mas, como tudo na vida, não adianta fazer alguma coisa que não vá trazer melhorias. A reforma não pode continuar deixando quem é sério e organizado pagar por quem não é, que é um grande problema do Brasil. Desse jeito, a conta vai crescendo e chega uma hora que não dá para ter negócio. Cada vez tem mais gente não pagando e quem paga vai acabar pagando mais. O final deste filme é horroroso.
Como seria possível ela não melhorar a situação atual?
O grande risco dessa reforma é criar tanta exceção que a alíquota comum ficará tão alta a ponto de desincentivar quem trabalha seriamente. Não dá para ficar criando exceção a torto e a direito. Assim, quem ficar fora da exceção vai precisar pagar mais 30% de IVA (Imposto sobre Valor Adicionado). O pensamento por trás da reforma é bacana. O IVA é uma solução já testada em muitos países. Só não podemos começar a dar o nosso jeitinho brasileiro. O risco é que a gente troque cinco tributos por três absolutamente iguais. A grande base dessa reforma deve ser a simplicidade.
Apenas a simplicidade já resolve o problema?
Existem cinco coisas muito importantes nessa reforma que precisam ser mantidas até o fim: simplicidade do sistema, com transparência e previsibilidade para o investimento; redução da guerra fiscal; segurança jurídica para diminuir a litigiosidade; não pode haver o aumento da carga tributária em relação ao PIB; e precisa trazer redução da sonegação.
O que mais agrada na modelagem da reforma?
Na Cosan, gostamos muito da incidência passar a acontecer no destino. É uma evolução importante. É muito importante também que exista uma boa vontade geral de lidar com algumas categorias de impacto mais relevante. Por exemplo, em combustível. Nele, a monofasia é fundamental. Se você for tentar cobrar de todos os elos da cadeia, a reforma não vai acontecer. Outros setores também são assim. No de bebidas mesmo, não vai dar para tentar cobrar de um milhão de botequins. O IVA precisa ser pensado dessa maneira, porque senão você entra naquela velha história da substituição tributária, que já foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF), para a definição de alíquota.
Quais são os pontos de preocupação no encaminhamento do projeto no Congresso?
Uma boa parte da reforma vai ser definida em lei complementar. E aí pode acontecer muita coisa. Existe um conceito na reforma, mas como ele vai acontecer? Deveria ter um esforço grande para simplificar, e não deixar os Estados poder legislar. Isso é um desafio para o pacto federativo. Mas os Estados não devem poder criar impostos específicos para alguns produtos. Isso é um perigo. O princípio da reforma tributária justamente está em ser uma coisa nacional. Você quer a redução da guerra fiscal, e a redução dos incentivos tributários. Se você abre a porteira aqui, a espinha dorsal da reforma estará sendo quebrada. Também será preciso definir os créditos do PIS/Cofins e como ficam os do ICMS. Temos hoje R$ 800 bilhões de créditos só de impostos federais nas empresas no Brasil. Se contarmos os estaduais, passam de R$ 1 trilhão. Imagina ter de explicar para o acionista que a empresa tem um monte de crédito tributário que não consegue acessar.
A transição do sistema antigo para o novo pode preocupar?
De fato, não se pode virar a chave no dia seguinte. Mas como vamos manter as obrigações? Teremos de contratar dois auditores, um para o sistema antigo outro para o novo? Vamos ter duas contabilidades? Uma sacada que pode ser fundamental e que seria legal se acontecesse é o que estão chamando de split automático de pagamento. Imagina comprar um celular na loja, e o preço do produto lá ser R$ 150, com IVA de R$ 15. Quando a compra foi feita, o pagamento já passaria pelo sistema de pagamento nacional e os R$ 15 já seriam separados e enviados diretamente para o órgão arrecadador. Se funcionar assim, seria um gol de placa, porque acabaria com 99% da sonegação, e o tal hiato de arrecadação real de 24% cairia, permitindo alíquotas menores. A sofisticação do mercado financeiro do país, que tem até o PIX, permite um sistema assim. O Banco Central está trabalhando nisso.
Falando em alíquotas, o imposto seletivo pode afetar o setor de combustíveis fósseis?
O imposto seletivo tem uma definição ampla, não é? Ele é explicado como aquele que vai incidir sobre a produção, comercialização ou importação de bens ou serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente nos termos da lei. Como isso vai ser definido? Como ele se confunde no mercado de carbono? O mercado de carbono já traz o preço implícito do carbono para quem afeta o meio ambiente.
Qual é o risco de o governo taxar em excesso o setor?
As pessoas esquecem que o mesmo dinheiro que vai para o imposto é o que iria para investimentos. Não existem dois bolsos. O objetivo será aumentar a arrecadação via crescimento do País ou via taxação maior de quem já paga? A primeira alternativa aconteceu em vários dos nossos vizinhos na América do Sul. Se você criou um imposto de exportação de soja ou de petróleo, é tudo uma maravilha no começo, e a arrecadação aumenta. Mas a base a ser tributada vai erodindo. O ideal é que a base cresça, que se cobre um porcentual menor e poder receber mais com isso. Não o contrário, de ter uma base pequena com alíquota maior. Afinal, isso incentivaria ao empresário sair do sistema.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.