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Números da Americanas foram questionados por analistas em 2022; ex-CEO deu resposta confusa

Em teleconferência de resultados do 2º trimestre daquele ano, respostas de Miguel Gutierrez, hoje investigado pela PF sob suspeita de fraude, foram consideradas sem sentido; analistas e investigados não quiseram comentar episódio

Foto do author Talita Nascimento
Atualização:

Quando a fraude na Americanas começou a ruir em 2022, com a alta dos juros e o limite da concessão de crédito na modalidade de risco sacado atingindo seu ponto máximo, os números da companhia foram questionados por analistas. Na teleconferência de resultados do segundo trimestre daquele ano, realizada em agosto, duas perguntas com dúvidas sobre o balanço foram feitas: uma de Ruben Couto, do Santander, e outra de Danniela Eiger, da XP. O então CEO da empresa, Miguel Gutierrez, deu aos dois respostas confusas.

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Procurados, os analistas preferiram não comentar. A Americanas, que diz ser vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, também não quis falar sobre o episódio. A defesa de Miguel Gutierrez não respondeu até a publicação deste texto. Sobre o caso, seus advogados dizem que o executivo jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude.

Os pontos que geraram dúvidas sobre o balanço, na verdade, eram parte da suposta fraude, que já estava grande demais para ser completamente omitida.

Em 12 de agosto de 2022, Couto, do Santander, perguntou à diretoria da companhia: “Vemos uma evolução boa de margem Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização), crescimento de Ebitda também positivo no trimestre, mas a geração de caixa não acompanha tanto essa evolução. O que a gente pode esperar para frente em termos de melhoria de capital de giro e uma maior convergência desse crescimento de Ebitda em direção de caixa operacional?”.

A partir do 3º trimestre de 2022, o fato de que os estoques da Americanas cresciam e o prazo de pagamento aos fornecedores diminuía aumentou desconfiança sobre a gestão Foto: PEDRO KIRILOS / Estadão Conteúdo 

O que começou a incomodar analistas, segundo apurou o Estadão/Broadcast, foi que os estoques da empresa cresciam, e o prazo de pagamento aos fornecedores diminuía. Isso se acentuou, depois, no terceiro trimestre, com a preparação para a Black Friday. “Não é o esperado. Historicamente, quando a empresa compra mais, ela negocia melhores formas de pagamento”, disse um analista que estava naquela teleconferência e que pediu anonimato.

A resposta de Miguel Gutierrez a Ruben Couto foi considerada confusa por pessoas que acompanhavam a reunião. “Recebi mensagens de clientes dizendo: ‘Não faz sentido nenhum!’”, diz um analista.

Jargões

A resposta começou com jargões da área, como “estamos buscando entender a jornada única do cliente”. O ex-CEO disse que, com as novas lojas em novas cidades, a empresa buscava ter “impacto extraordinário na vida dessas cidades e das pessoas”. Só então entrou de fato no assunto de fornecedores.

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“A grande essência disso é que temos de vender mais do que a gente pagou. Então, isso quer dizer o seguinte: se a gente recebeu muito do fornecedor e não vendeu, na realidade, entra um valor no fornecedor e entra um valor no estoque. Essa conta, ela não melhora e não gera capital de giro, OK? Então, na realidade, nós temos de conseguir vender cada vez mais e cada vez ser mais eficiente nessa cadeia como um todo”, disse Gutierrez.

Ele argumentou que a empresa estava desacelerando sua operação de comércio eletrônico de estoque próprio e que, por isso, vendia menos, o que fazia com que os estoques aumentassem. “Hoje, nós temos um produto que tem sido muito procurado pelos fornecedores que, na realidade, é de antecipação dos recebíveis que ele tem conosco. Então, na realidade, essa é a linha em que há uma variação maior em relação ao nosso histórico, mas ela permanece ainda positiva na nossa visão, que é de financiamento”, afirmou.

A resposta não explicava o que havia sido perguntado. Pouco depois, Danniela, da XP, retomou o assunto: “Em relação à questão da geração de caixa, o mercado, muitas vezes, pergunta por que vocês destoam dos seus pares. Talvez seja uma estratégia diferente em termos de estoque, em termos de fornecedor, enfim. Então acho que seria legal vocês contextualizarem o porquê de vocês terem uma sazonalidade, talvez, diferente dos demais pares de marketplaces generalistas”.

A resposta, mais uma vez, foi confusa. Gutierrez citou o aumento de vendas da Black Friday e uma suposta readequação que viria depois e mencionou mais uma vez a antecipação de recebíveis a fornecedores como fortaleza.

“Achei que eu não havia entendido por estar distraído, mas recebi mensagem de outro analista perguntando se tinha feito algum sentido para mim”, diz outro analista que acompanhava a reunião.

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Queima de caixa

Esse profissional que acompanhou a teleconferência afirma que sempre houve um incômodo em relação à queima de caixa da empresa. E que era curioso como, na pandemia, o ativo não despontou como os demais e, quando o varejo digital derreteu na Bolsa, a Americanas acompanhou a queda.

Os relatórios de bancos à época, apesar de não traduzirem completamente a confusão dos analistas com as linhas de capital de giro e prazos a fornecedores, mostravam alguns problemas. A palavra “queima de caixa” era frequente em vários bancos que escreviam sobre a companhia, apesar de não haver alertas mais claros de venda para o papel por falta de informações convincentes.

No relatório do terceiro trimestre de 2022, o Santander classificou o balanço como fraco e citou “deterioração dos números operacionais, maiores despesas financeiras devido à maior alavancagem (taxa Selic) e queda trimestral de 18 dias no financiamento de fornecedores (aumento de estoque antes do quarto trimestre de 2022, mais redução de 7 dias nos prazos de fornecedores)”. O relatório apontava que esse descasamento causou um grande consumo de caixa de R$ 2,1 bilhões no terceiro trimestre daquele ano.

Bastidor

No relato da Polícia Federal sobre a delação de Marcelo Nunes, ex-diretor da companhia, é possível entender o que acontecia por trás das conversas com o mercado.

Em 2020, a diretoria tentou parar o esquema de fraudes nas Verbas de Propaganda Cooperadas (VPC), que inflavam o balanço da empresa. Isso porque, com a pandemia, o negócio digital teve bom desempenho. No entanto, ao deixar de inflar o balanço, a B2W (braço digital que era listado separadamente da Lojas Americanas na época) cresceu menos que as concorrentes. Assim, a demanda pela fraude voltou a existir.

Já em 2022, quando a euforia do e-commerce passou, a alta dos juros e o limite do risco sacado fizeram a fraude se tornar grande demais para ficar escondida. Nunes narra que, na medida em que se faziam operações fictícias que não geravam caixa (por meio da fraude no VPC) para preservar o caixa, era necessário aumentar as operações de risco sacado.

Nas operações do tipo, a empresa contrai dívidas com o banco para o pagamento de fornecedores. A dívida, porém, não era informada corretamente pela companhia em seu balanço. A varejista usava isso como uma maneira artificial de gerar caixa para a operação deficitária da empresa, segundo as investigações.

Assim, “o time da tesouraria ia pedindo limite para os bancos, e se dava uma dinâmica de aumento de limite ou aumento de prazo, e isso ocorreu ao longo dos anos, até que chegou no momento em que os bancos não estavam mais dando limite, ou seja, bateu no teto do risco sacado”, disse Nunes à PF.

Hoje, com a apuração em curso, fica claro como os números alteravam os resultados. Enquanto o balanço do primeiro trimestre de 2021 mostrava um lucro de R$ 129,4 milhões, na verdade, a empresa tinha prejuízo de R$ 209 milhões.

Já em janeiro de 2023, com a chegada de Sergio Rial à companhia, uma reunião estourou o problema. “Nessa reunião todo mundo ficou mudo, e a bomba caiu para o colaborador, e pediram para ele explicar, e ali o colaborador ficou sem reação, mas acabou falando do risco sacado”, afirmou Nunes.

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Sobre as investigações, a Americanas tem afirmado que “reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes”. A empresa diz ainda acreditar na Justiça e que “aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos”.

A defesa de Miguel Gutierrez afirma, em nota sobre as acusações contra o executivo no caso Americanas, que o ex-CEO “jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que vem colaborando com as autoridades, prestando os esclarecimentos devidos nos foros próprios”.

O Estadão busca contato com a defesa de Marcelo Nunes. O espaço está aberto para manifestação dos investigados.

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