A morte não põe fim a todas as incertezas. O falecimento, em 20 de setembro, de Liliane Bettencourt, uma herdeira francesa de 94 anos, cheia de charme e glamour, deixou os investidores com muitas dúvidas sobre o futuro da L’Oréal, maior empresa de cosméticos do mundo. Bettencourt detinha o controle da companhia que seu pai, um inventor de tinturas para cabelos, fundou em 1909, e cujo valor de mercado hoje beira os € 100 bilhões (US$ 117 bilhões).
A morte da socialite e empresária não tem muitas consequências imediatas. Portadora do mal de Alzheimer, Bettencourt havia sido considerada juridicamente incapaz. A decisão se seguiu a um escândalo que veio a público em 2010, quando foram divulgadas gravações clandestinas feitas por seu mordomo, registrando diálogos em que políticos, advogados e amigos astuciosamente convenciam a bilionária a lhes fazer doações polpudas. O ex-presidente da França Nicolas Sarkozy até hoje sofre com o caso. No ano passado, segundo ele, seus adversários requentaram as acusações sobre sua participação no “sórdido caso Bettencourt” para impedi-lo de voltar à política (Sarkozy foi inocentado pela Justiça francesa em 2013).
Uma enfermeira de Bettencourt disse que a casa da empresária era um “ninho de cobras”, com funcionários e outras pessoas se digladiando para se apropriar de nacos de seu patrimônio. As coisas se acalmaram nos últimos seis anos, depois que a filha de Bettencourt assumiu o controle dos ativos da família, entre os quais figura a participação acionária de 33% na L’Oréal. Em 21 de setembro, a família emitiu um comunicado, reafirmando seu “compromisso e lealdade para com a L’Oréal” e seu diretor executivo, Jean-Paul Agon.
Isso sugere que não deve haver grandes mudanças na empresa, que é considerada um fleuron (um florão) da cena corporativa francesa. Sob o comando de Agon, as coisas estão realmente florescendo: as ações da L’Oréal praticamente dobraram de valor nos últimos cinco anos. Em 2016, os lucros operacionais foram de robustos € 4,5 bilhões, sobre um faturamento de € 26 bilhões. Este ano, espera-se que os lucros atinjam a margem recorde de 18% das vendas.
Para os investidores, uma dúvida sobressai às demais: as relações da empresa com a Nestlé vão mudar? A maior fabricante de alimentos do mundo detém uma participação de 23,2% na L’Oréal, resultado de um negócio que Bettencourt fechou nos anos 70, com o intuito de proteger a empresa da família de eventuais investidas estatizantes dos socialistas franceses. Fala-se muito que a multinacional suíça, que já reduziu sua participação no passado, talvez queira se desfazer do investimento de uma vez por todas. Mas não são menos insistentes os boatos de que a Nestlé pode estar disposta a assumir o controle da L’Oréal. O acerto firmado por Bettencourt só permite que uma das partes aumente sua fatia seis meses após a morte da empresária.
As especulações suscitadas pelo falecimento de Bettencourt coincidiram com novidades na Nestlé, cujo CEO, Ulf Mark Schneider, foi empossado em janeiro deste ano e em 26 de setembro falou pela primeira vez a investidores sobre seus planos. Faz tempo que os acionistas se queixam de que a fabricante do Nescafé, do KitKat e da ração para pets Purina está embolorada e vem perdendo participação de mercado para concorrentes mais viçosas. A pressão aumentou em junho, quando o fundo de hedge ativista Third Point anunciou ter adquirido uma fatia de US$ 3,5 bilhões na gigante suíça.
Schneider estabeleceu como meta assegurar uma margem de lucro entre 17,5% e 18,5% até 2020, acelerando as recompras de ações e impulsionando as vendas de produtos (em sua maioria contendo cafeína) que vem tendo grande aceitação entre os consumidores. Os ativistas queriam ouvir exatamente esse tipo de coisa, mas esperavam também que o executivo anunciasse a venda da fatia na L’Oréal, uma vez que, a seu ver, a fabricante de cosméticos não tem lugar na estratégia da Nestlé. Schneider se negou peremptoriamente a fazer isso, alegando que a participação acionária na L’Oréal é um investimento “fabuloso”, tendo gerado retornos anuais de 12%, em média, nos últimos 42 anos.
Por sua vez, é pouco provável que a compra da L’Oréal pela Nestlé suscitasse resistências políticas. Com seu posicionamento francamente pró-Europa, o atual presidente da França, Emmanuel Macron, teria dificuldades para se opor a uma aquisição puramente europeia. E há outros conglomerados interessados em explorar os cuidados com a beleza. A Unilever está mudando seu portfólio de produtos, reduzindo a participação no segmento de alimentos para privilegiar artigos de crescimento acelerado, como xampus e cremes de beleza. Em 25 de setembro, a gigante anglo-holandesa anunciou a aquisição da Carver Korea, uma fabricante de cosméticos sul-coreana, por € 2,27 bilhões.
Para a Nestlé, porém, assumir o controle da L’Oréal seria financeiramente proibitivo. Sem contar que a decisão dependeria da concordância dos Bettencourt, que não dão mostras de que pretendam se desfazer da empresa. A própria L’Oréal talvez cogite fazer movimento inverso, comprando a fatia da Nestlé. A aquisição poderia ser financiada com a venda da participação acionária de € 10 bilhões que a empresa tem na Sanofi, maior laboratório farmacêutico da França. O efeito dominó da dissolução da parceria entre a Nestlé e a L’Oréal pode gerar ainda mais incertezas à frente.
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