Credores de empresas que entraram em recuperação judicial neste ano têm questionado supostos vícios e incoerências que extrapolam os benefícios da lei, o que compromete a credibilidade do processo no Brasil. Americanas, Oi, Light e Petrópolis ganharam os holofotes sob argumentos de excessos na interpretação da lei, enquanto OAS e PDG aparecem como potenciais casos de desvio patrimonial por meio da recuperação judicial. Esses problemas já vêm sendo levantados há algum tempo por especialistas.
No caso da Americanas, por exemplo, onde uma suposta fraude de R$ 20 bilhões é investigada, credores reclamam que o plano proposto pela varejista cria gatilhos para blindar acionistas e administradores de ações futuras na Justiça por atos que eventualmente tenham cometido contra o patrimônio da empresa. Os detentores de títulos emitidos no exterior por Americanas chegam a classificar o plano de “salvo-conduto para responsáveis por fraudes confessadas”. Esse compromisso é, de acordo com advogados consultados, ilegal.
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Já no caso da Light, o que mais chama atenção não só de credores, mas de advogados, é o fato de a empresa ter recorrido à recuperação judicial sendo uma concessionária, o que é vetado por lei. Para fazer uso do instrumento, os advogados da Light pediram a recuperação da holding - que não é vetada pela lei -, com extensão à Light Distribuidora e a Light Geradora.
“O endividamento estará em recuperação judicial e as concessionárias não estarão ferindo a lei, porque não estarão em recuperação, mas na recuperação judicial”, afirmou em conversa com o Estadão/Broadcast, na ocasião da entrega do pedido à Justiça do Rio, o sócio do Galdino & Coelho, Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados, Luiz Roberto Ayoub, um dos escritórios que assessoram juridicamente à companhia.
Em recente entrevista ao Estadão, o advogado Eduardo Munhoz, um dos grandes especialistas no assunto, já havia alertado para o risco de perda de credibilidade da instituição da recuperação judicial no Brasil.
“Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor. Ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo”, diz o advogado, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas no País.
Para ele, o processo começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência e sem informação. Isso acaba criando problema na relação com a instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial e em honorários estratosféricos.
O professor e secretário-geral do Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref), Daniel Carnio, diz que essa sequência de grandes casos de recuperação judicial é uma oportunidade para ajustar as regras e, por consequência, oferecer ao mercado parâmetros de risco econômico. “É importante que essas questões de fato apareçam, para que o Poder Judiciário e a doutrina comecem a lapidar essas situações”, diz.
Carnio afirma ainda que o direito é um “fenômeno social, sociológico, jurídico, econômico e, por fim, complexo” e sua leitura pode variar, especialmente durante crises, quando as empresas precisam de auxílio maior e a tendência é que se aplique a lei de forma mais flexível. “Mas o que gera a insegurança jurídica é a ausência de regras e espero que o Poder Judiciário se manifeste de maneira ágil em relação a esses temas, seja dizendo que pode, não pode ou meio termo”, acrescenta.
A Lei da Recuperação Judicial, criada em 2005, foi revisada em 2021 para trazer mais ferramentas e adequar à realidade do mercado e das empresas. “Os casos recentes têm causado o efeito contrário. Trazem insegurança, afetando o mercado e a economia”, diz a sócia do escritório TozziniFreire Flavia Cristina Andrade. Ela afirma que a jurisprudência está aplicando excessivamente o princípio de tudo ser feito em prol da continuidade da empresa, apesar de já constar na lei a solução.
Cautelar antecedente
Outro questionamento recorrente vem do uso de instrumentos judiciais para proteger a empresa antes mesmo do processo judicial, como é o caso da tutela antecipada. Ou seja, a empresa entra com um pedido na Justiça para evitar a execução de dívidas enquanto prepara os documentos para entrar com a recuperação judicial.
Isso ocorreu com a Americanas, o Grupo Petrópolis e a distribuidora de energia Light. Todas conseguiram proteção na Justiça contra a execução de créditos e também da suspensão de vencimentos antecipados, em compensações contratuais e na liberação de recebíveis, os quais não estão no arcabouço da lei. Essas são questões que teriam de ser tratadas no âmbito do processo de recuperação judicial.
Na Americanas, bancos como Bradesco, Santander e BTG apresentaram uma série de objeções ao processo de recuperação. Em um dos questionamentos apresentados à Justiça, advogados questionam, por exemplo, o compromisso de não litigar a empresa, e dizem que esse ponto precisa ser amplamente debatido. “A cláusula de não litigar não pode, ainda, impor renúncia/desistência aos credores do direito de discutir o valor e a classificação (inclusive a extraconcursalidade) de seus créditos no âmbito da Recuperação Judicial”.
Em relação às objeções dos bancos, a Americanas divulgou um comunicado ao mercado em julho mencionando não estar surpresa, “uma vez que é algo comum em processos de recuperação judicial e necessário do ponto de vista formal para evitar que o plano seja aceito tacitamente”.
No caso da Light, foram suspensos vencimentos de empresas controladas. “A discussão é se a ação cautelar antecedente é compatível ou não com o sistema da recuperação judicial”, diz Carnio. Segundo especialistas, isso desequilibra o princípio de equilíbrio dos ônus da recuperação judicial, protegendo os devedores sem contrapartida aos credores. “O sistema da recuperação judicial é uma divisão equilibrada do ônus da recuperação em prol de um resultado social e econômico para todos”, acrescenta.
Nesse ponto, a ação cautelar se misturou ao sistema pré-insolvência empresarial, que veio na reforma da lei de recuperação judicial de 2020. Carnio, que participou dessa reforma, diz que a ideia do sistema pré-insolvência é que a empresa inicie uma mediação em câmara privada ou pública com os credores e depois peça ao juiz a suspensão das execuções por 60 dias. “O pressuposto do deferimento é já estar em andamento uma conciliação”, afirma ele. Segundo o especialista, esse instrumento tem, na verdade, por objetivo evitar à recuperação judicial.
Oi
A segunda recuperação judicial da Oi, neste ano, também foi alvo de contestações. Os bancos credores argumentaram que a primeira recuperação não poderia ter sido encerrada porque ainda não havia transitado em julgado, contando com recursos pendentes. A Oi refutou essa tese alegando que a sentença de encerramento do primeiro processo já havia sido expedido e os recursos em andamento não tinham efeito suspensivo.
Outro argumento dos credores contra a Oi é que ainda não havia passado o prazo necessário para um novo pedido de recuperação. Pela lei, são cinco anos, a se contar da homologação do plano junto aos credores. No caso da Oi, um primeiro plano foi homologado em 2018, mas houve um aditivo que alterou o original, em 2020. Na visão dos bancos, esse seria o ponto de largada para contagem do prazo - tese que a companhia de telecomunicações também rechaçou.
A Justiça, entretanto, admitiu a nova recuperação da Oi. A juíza Fernanda Viana, da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, admitiu que um novo pedido de recuperação é algo raro, mas legalmente possível, e deu como exemplo o caso da Coesa Engenharia (a antiga empreiteira OAS). “A lei 11.101/2005 (Lei de Recuperações e Falências) não limita o número de pedidos de recuperação judicial, e, com isso, andou bem o legislador, pois crises econômica e financeira podem existir em várias ocasiões e por motivos diversos”, afirmou.
O Ministério Público do Rio de Janeiro também emitiu um parecer favorável ao deferimento a novo pedido de recuperação da Oi.
PDG e Coesa
As controvérsias jurídicas envolvem até mesmo casos de recuperação judicial já encerrados, como o da PDG Realty. Acionistas minoritários acusam executivos e assessores que lideram o processo de recuperação de terem tirado vantagem das suas posições para comprar dívidas da empresa “a preço de banana” e depois convertê-las em ações, obtendo um lucro milionário e assumindo o controle do grupo - o que a direção da empresa nega.
A Coesa teve falência decretada após o Tribunal de Justiça de São Paulo entender que houve desvio de patrimônio, mas a decisão foi suspensa.
A Coesa é fruto de uma reestruturação societária feita na OAS, a qual deu origem também a Metha. A OAS esteve em recuperação judicial entre 2015 e 2020 e a Coesa recorreu novamente ao instrumento em 2021. Vários créditos da primeira recuperação judicial foram inseridos no segundo processo. O juiz acatou o pedido de falência considerando que houve fraude societária, uma vez que os ativos de valor ficaram na Metha.
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