Empresa brasileira de defesa vai investir R$ 3 bilhões em fábrica de mísseis

Produção, que ficará em São José dos Campos, atenderá dois dos principais projetos atuais de defesa do Brasil, e caso da empresa simboliza fortalezas e fraquezas do setor nacional

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Foto do author Carlos Eduardo Valim
Atualização:

A empresa do setor de defesa Siatt (Sistemas Integrados de Alto Teor Tecnológico) anunciou investimentos de R$ 3 bilhões para a montagem de uma fábrica de 7 mil metros quadrados, próxima à Rodovia Dutra, em São José dos Campos (SP), para a produção de armamentos de alta complexidade. A empresa, que teve um pouco menos de metade do seu capital comprado em setembro, por valor não revelado, pelo grupo Edge, estatal dos Emirados Árabes, opera atualmente dentro do Parque de Inovação Tecnológica de São José dos Campos e participa do desenvolvimento de dois mísseis nacionais.

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Um deles é o míssil naval Mansup (sigla para Míssil Antinavio Nacional de Superfície) e o outro é o MSS, utilizado em terra contra veículos blindados. Ambos estão entre os mais importantes projetos do setor no Brasil no momento, ao lado, por exemplo, do avião de cargas C-390 Millenium, da Embraer, que avançou com uma série de novos contratos no ano passado.

Apesar de ser uma empresa fundada apenas em 2015, a Siatt carrega esses projetos que remontam a décadas de desenvolvimento no setor de defesa nacional, e traz um expertise de longa data. Os fundadores da Siatt eram sócios da Mectron, que surgiu em 1991 e foi uma das principais companhias do setor e do polo tecnológico do Vale do Paraíba, antes de ser vendida para a Odebrecht em 2011. Além da Mectron e da Embraer, o setor de defesa e aeroespacial também conta, entre as suas maiores empresas, com a atuação da Avibras, sediada em São José dos Campos, que fez pedido de recuperação judicial em 2022.

“Por trás de cada projeto complexo do setor, existe uma geração de inteligência coletiva, e o trabalho de muitos especialistas”, diz o CEO e sócio-fundador da Siatt, Rogério Salvador, que chegou na quarta-feira, 17, de viagem dos Emirados Árabes Unidos, onde o investimento bilionário foi anunciado. Ele fez parte de uma visita de quatro dias a Abu Dhabi, junto com uma delegação constituída por representantes do governo do Estado de São Paulo e da Prefeitura de São José dos Campos. A agenda tinha como objetivo conhecer a sede do Grupo Edge, que é uma estatal de tecnologia avançada para o setor de defesa.

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O Mansup é carregado na corveta Barroso Foto: Marinha do Brasil

A Siatt havia firmado com a Marinha do Brasil, em 2019, o fornecimento de subsistemas do projeto de míssil Mansup. A empresa tem fornecido os sistemas de guiagem, navegação, controle e telemetria para o desenvolvimento desse míssil naval, que é uma espécie de versão nacional do francês Exocet (que ficou conhecido pelo seu uso na Guerra das Malvinas) e do americano Harpoon (utilizado na atual guerra entre Ucrânia e Rússia). Com a entrada de capital dos Emirados no projeto, a expectativa é de acontecerem mais encomendas para esse e outros projetos da Siatt.

Um exemplo disso foi a assinatura, em novembro, por parte das Forças Armadas dos Emirados Árabes Unidos, de uma carta de intenções para a compra de uma versão de alcance estendido do Mansup, além da versão de curto alcance, num contrato que pode movimentar US$ 300 milhões. “A versão atual com alcance maior é desenvolvida para atender às necessidades de combate marítimo moderno”, afirma Salvador. O número de unidades encomendadas de míssil é uma informação sigilosa, segundo os contratos da empresa com as forças armadas brasileira e do país árabe.

“A presença do Edge na Siatt, com certeza, facilita a abertura de mercados. A negociação governo a governo é mais simples, e além disso teremos mais acesso a linhas de financiamento para a operação e a garantias bancárias”, diz. “O mercado interno brasileiro não é suficiente para manter a indústria mobilizada. Para manter as operações, precisamos contar com encomendas externas, apesar de que antes de tudo precisamos da chancela do operador local, para encomendas que atendam ao próprio país.”

Com a nova fábrica, a expectativa da Siatt é dobrar o seu quadro de funcionários, para 200 pessoas, e com isso também estimular a criação de cerca de 600 empregos indiretos.

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Projetos recuperados

O projeto do Mansup remete a 2011, quando foi encomendado a um consórcio envolvendo as empresas Avibras, Mectron, Omnisys e Atech. A Mectron foi vendida, no mesmo ano, para o grupo Odebrecht (atual Novonor), que constituiu uma divisão de defesa, a Odebrecht Defesa e Tecnologia. Naquela época, o setor passava por uma onda de otimismo, com o avanço de projetos de grande porte, como os do avião militar de carga da Embraer.

Projeto de míssil naval Mansup Foto: Divulgação Siatt

No entanto, com os escândalos de corrupção da holding baiana investigados pela Operação Lava Jato e suas dificuldades financeiras posteriores, a divisão de defesa da Odebrecht foi abandonado. A Siatt foi, então, criada em 2015 para dar sequência aos projetos que a antiga Mectron deixou para trás e evitar a perda do conhecimento e tecnologia desenvolvidas pela empresa. “Por trás de cada projeto complexo do setor, existe uma geração de inteligência coletiva, e o trabalho de muitos especialistas, para se ter sucesso no desafio”, diz Salvador.

O CEO da Siatt era um dos sócios da Mectron, ao lado de quatro outros empresários, que se uniram mais uma vez para fundar a nova empresa. Com a derrocada da divisão especializada da Odebrecht e o fim de operação da Mectron, eles conseguiram recuperar os ativos de propriedade intelectual, equipamentos, laboratórios e estoques, além de recompor as equipes, da empresa anterior.

Rogério Salvador, CEO da Siatt Foto: Divulgação Siatt

“O caso da Siatt é emblemático. Ela representa um esforço hercúleo, não apenas de desenvolver o projeto, por parte de pesquisadores e investidores, mas também de manter competência tecnológica no Brasil, algo que não se aprende do dia para a noite”, diz o professor especializado no setor de defesa e aeroespacial Marcos Barbieri, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O Edge traz as duas coisas com que estamos com deficiência por aqui, recursos financeiros e encomendas. Isso simboliza um problema da indústria brasileira. O investimento na Siatt foi um ótimo negócio para o grupo.”

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Além do Mansup, outro projeto herdado do passado é do MSS-1.2, míssil empregado contra veículos blindados. Essa categoria ganhou especial destaque nos últimos tempos, com os conflitos na Ucrânia, que luta para conter os avanços terrestres de veículos russos. Um lote piloto foi entregue entre 2013 e 2014 pela Mectron para o Exército Brasileiro e ao Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil. Agora, uma versão atualizada desses mísseis está em fase de pré-produção e no último estágio de avaliação técnica por parte do Exército Brasileiro.

No setor de defesa, um país deixar uma de suas empresas de mais alta tecnologia ser vendida para outro país, mesmo quando se trata de uma participação minoritária, costuma ser visto quase com reservas. Mas, na falta de encomendas regulares, a parceria com o Edge capitalizou o negócio e tornou viável para a operação continuar criando sistemas sofisticados, e permitindo a criação de empregos qualificados no País.

O Brasil investe em torno de 1,2% do seu PIB em defesa, número considerado baixo. “O Brasil tem competência no setor, mas não vem conseguindo transformar competência em geração de riqueza, lucro, empregos e exportações”, afirma Barbieri. “É preciso, pelo lado da demanda, ter volume, regularidade e previsibilidade. E, pela oferta, é necessário ter uma estrutura empresarial com a questão financeira e empresarial do tamanho adequada ao segmento de atuação.”

Em novembro, um consórcio formado pela Siatt e a BEN, empresa encarregada pelas obras de infraestrutura, ganhou concorrência para o fornecimento da primeira fase da tecnologia de comunicação do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (Sisgaaz). Ele visa a proteger a costa brasileira, com monitoramento das áreas marítimas. As empresas vão desenvolver capacidades de inteligência artificial, integração de dados e tecnologia de radar, além de um laboratório. A primeira torre de monitoramento deve ser instalada em Ilha Grande (RJ).

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