BRASÍLIA – O mais novo programa de socorro a Estados endividados, sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na terça-feira, 14, libera os governos estaduais para gastar mais e reduzir os juros das dívidas com a União, pressionando ainda mais as contas e o endividamento do governo federal.
Os Estados terão até 31 de dezembro deste ano para aderir ao novo regime, batizado de Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag).
Economistas ouvidos pelo Estadão classificam a proposta como uma “bomba fiscal” em função do prejuízo que o governo federal deverá ter ao reduzir a dívida a ser paga pelos Estados e do risco de, lá na frente, a União ter de socorrer novamente os governos que não colocam suas contas em dia.
Por outro lado, dispositivos da nova lei podem reduzir o “estrago” e o potencial negativo para as contas públicas. Entre esses pontos estão a possibilidade de Estados repassarem à União o que têm para receber de concessões, royalties e impostos não pagos inscritos em dívida ativa – o que pode levar o governo federal a parar de se endividar para pagar a Previdência Social (leia mais abaixo) – e a proibição de governos estaduais sem dinheiro em caixa ampliarem benefícios tributários.
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Redução de juros e aumento de gastos
Estados que possuem dívidas com a União poderão reduzir os juros desses encargos e, em troca, realizar investimentos em educação. O cerne do projeto foi sancionado pelo presidente Lula. Os juros poderão cair de 4% acima da inflação para zero – ou seja, só a correção inflacionária, sem juro real –, a depender da situação das contas dos entes regionais.
Com a União recebendo menos recursos, o endividamento sobe. Os Estados que aderirem ao programa deverão depositar anualmente um valor no Fundo de Equalização Federativa, que beneficiará todos os Estados – inclusive aqueles que estão com as finanças em dia.
Em contrapartida, os governos estaduais deverão adotar um teto para o crescimento dos gastos. O limite será corrigido pela inflação mais um valor que vai de 0% a 70% da variação real (acima da inflação) da receita, mesmo porcentual do arcabouço fiscal do governo federal.
Na prática, o limite de gastos é flexível e permite que Estados endividados aumentem despesas. A regra também é mais frouxa em comparação ao regime atual de renegociação de dívidas, que corrige as despesas apenas pela inflação.
“No geral, a lei é muito ruim. A União passa a subsidiar os Estados, uma vez que os juros da dívida vão a zero. Isso abre espaço fiscal para os Estados ampliarem seus déficits – o que, aliás, é estimulado pelo projeto, que determina gastos em diversas áreas como educação profissional ou infraestrutura”, diz o economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes.
Vetos a acúmulo de benefícios e uso de fundo da reforma tributária
O presidente Lula vetou alguns dispositivos que, de acordo com a equipe econômica, seriam ainda mais prejudiciais para as contas públicas. Um deles barrou a possibilidade de Estados que são beneficiados pelo regime de recuperação atual (Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais) acumularem os benefícios anteriores ao migrarem para o novo programa.
Lula também vetou a possibilidade de o Rio Grande do Sul, atingido por fortes enchentes em 2024, acumular os benefícios do programa atual, aproveitar o adiamento da dívida por conta da calamidade e ainda ingressar no Propag sem precisar aportar recursos no Fundo de equalização fiscal.
Os vetos foram criticados pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. “Os vetos trazem um prejuízo inaceitável para o povo gaúcho, gerando uma perda de cerca de R$ 5 bilhões dos valores que deveriam ficar aqui para investimentos na reconstrução após as enchentes”, disse Leite, que defendeu a derrubada dos vetos no Congresso.
O governo também barrou a possibilidade de Estados repassarem para a União os valores que iriam receber do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), criado na reforma tributária, para abater a dívida. Se a troca fosse autorizada, o objetivo do fundo, que é diminuir desigualdades regionais, seria deturpado.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o programa vai muito além do que os governadores pediram. O chefe da pasta também declarou que é possível compensar os impactos para a União no futuro por meio dos investimentos que os Estados farão. “É preciso notar que o esforço que o governo federal fez foi bem grande para corrigir os problemas e, se eu fosse um governador, mesmo da oposição, eu daria um telefonema agradecendo.”
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, também criticou os vetos. “O governo federal quer que os estados paguem a conta de sua gastança”, publicou em sua conta no X. “Enquanto os Estados lutam para equilibrar contas, o Planalto mantém 39 ministérios, viagens faraônicas, gastos supérfluos no Alvorada e um cartão corporativo sem transparência. Até quando o contribuinte vai bancar essa desordem?”
Estados poderão oferecer estatais para a União e abater dívida
Contrariando a orientação inicial da equipe econômica, Lula sancionou a possibilidade de os Estados oferecerem estatais para a União em troca do abatimento. Minas Gerais, por exemplo, quer entregar empresas para a União em troca da negociação, incluindo a Cemig, companhia de energia do Estado.
A medida impacta no resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida), pois haveria uma substituição por uma receita financeira – no caso, o pagamento da dívida dos Estados com a União – por ativo que não é financeiro – uma estatal, aumentando endividamento.
A proposta foi validada a pedido do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). “No final das contas, temos uma solução efetiva para o pagamento das dívidas, que preserva servidores públicos e o interesse de Estados federados. E permite que haja, por parte desses Estados, a retomada de investimentos de interesse da população”, disse Pacheco, em nota.
“Essa permuta diminui o fluxo da receita financeira, levando a dívida ou a crescer de modo mais rápido ou a cair de modo mais vagaroso. Vai demandar um esforço fiscal adicional”, diz o economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Camillo Bassi. Para ele, o que pode amenizar o problema é o repasse de dividendos das empresas para a União, que passaria a controlar as estatais e a receber os resultados.
Para a economista e ex-secretária de Fazenda de Goiás Selene Peres Peres Nunes, os Estados precisavam de um novo indexador para os juros, pois a dívida ficou insustentável mesmo com grande esforço fiscal. O programa, porém, segundo ela, ficou com um desenho ruim ao trocar juros por um aumento de despesas com o discurso de investimentos em educação.
“A solução equivocada escalou quando interesses eleitorais levaram representantes do Legislativo a proporem uma série de benesses adicionais que, em alguns Estados, chegaram a triplicar a vantagem inicial. Ocorre que esse não é um jogo de soma zero. Tudo que os Estados ganham, a União perde”, afirmou Selene.
Créditos repassados por Estados podem pressionar déficit da União
Os Estados também poderão repassar para a União valores que têm a receber de concessões, royalties e tributos não pagos que estão inscritos em dívida ativa e cobrados judicialmente (neste último caso, no limite de até 10% do que o Estado tem para receber), desde que os valores sejam recuperáveis. Os montantes seriam contabilizados como pagamento da dívida com a União.
Antes de repassar os créditos para a União, os Estados poderão realizar a chamada securitização, que é vender esses valores no mercado financeiro. Os governos estaduais deixariam de receber o que têm para receber de forma parcelada e em um período maior de tempo para ganhar a quantia de uma só vez dos investidores. Estes, por outro lado, receberiam o retorno de forma parcelada, com juros, assumindo o risco do débito que está sendo cobrado.
O presidente Lula sancionou uma lei no ano passado regularizando a securitização para União, Estados e municípios. De acordo com a legislação, pelo menos metade do dinheiro deve ser usada para bancar os regimes de Previdência Social – que passam por um déficit crescente – e o restante com investimentos. No caso de repasse dos créditos dos Estados que aderirem o Propag, essa regra também deve ser respeitada, de acordo com o pesquisador do Ipea.
Segundo Bassi, a medida causa um efeito colateral e gera outra pressão sobre o endividamento público. Os valores a serem repassados pelos Estados para a União são classificados como receitas de natureza financeira (como o dinheiro que o governo pega no mercado para se financiar) e as despesas com Previdência e investimentos são gastos primários, que pressionam o endividamento da União e deveriam ser custeados com outro tipo de arrecadação (contribuições sociais, por exemplo). Ou seja, há um descompasso contábil.
Mas há um caminho para reduzir o problema, de acordo com o economista. O governo poderia usar o dinheiro na Previdência Social e deixar de endividar para cobrir o rombo previdenciário, como acontece hoje. Em 2025, a União deve se endividar em R$ 167 bilhões para pagar benefícios do Regime Geral da Previdência Social. Todo esse recurso poderia ser substituído pelo dinheiro dos Estados.
Além do regime geral, o governo federal poderia pegar mais R$ 24 bilhões dessa operação para o regime próprio dos servidores, deixando de usar os recursos da arrecadação federal e liberando esse espaço no Orçamento. “Se for bem trabalhado e com um certo refinamento contábil, é possível mitigar o problema”, diz Bassi.
Na opinião de Marcos Mendes, porém, a União e as contas públicas correm risco com o repasse dos créditos pelos Estados endividados. “Se esses créditos são recuperáveis, que o Estado os recupere e pague em dinheiro à União. Precificar esses ativos não é trivial. Fazer isso com interveniência de pressão política, pior ainda”, avalia.
Estados ‘quebrados’ não poderão conceder novos benefícios tributários
A lei sancionada determina ainda uma nova regra: a partir de janeiro de 2027, os Estados que não tiverem dinheiro suficiente em caixa para pagar despesas contratadas em anos anteriores e que ainda não foram quitadas (os chamados restos a pagar) não poderão criar ou ampliar benefícios tributários.
Se a falta de recursos para cumprir essas obrigações durar dois anos seguidos, além dos benefícios tributários, os Estados não poderão aumentar despesas com pessoal. Em 2023, dois Estados registraram essa situação: Rio Grande do Norte, com um saldo negativo de R$ 1,6 bilhão, e Minas Gerais, com indisponibilidade de R$ 1,4 bilhão. Os dados de 2024 ainda não foram contabilizados.