Os efeitos dos juros altos continuam estrangulando a saúde financeira das empresas brasileiras. O crédito foi facilitado durante a pandemia, e elas tomaram um grande volume de empréstimos. Muitas não conseguiram pagar essa dívida por causa da alta abrupta dos juros. O número de companhias que recorrem à Justiça para ganhar tempo, arrumar a casa e preservar a empresa cresce a cada mês, tendo atingido o pico em outubro.
No mês passado, 162 companhias pediram recuperação judicial, segundo dados da Serasa Experian, obtidos com exclusividade pelo Estadão. O resultado é 51,4% maior que o do mesmo período de 2022. Também é a maior marca mensal em mais de quatro anos, desde julho de 2019, quando 176 empresas pediram recuperação judicial.
Além disso, o desempenho do mês passado foi o pior para todos os meses de outubro da série histórica, iniciada em 2005, quando a lei da recuperação judicial entrou em vigor.
Apesar do discreto recuo do juros básicos nos últimos meses – atualmente em 12,25% ao ano –, o nível elevado dificulta a renegociação de dívidas em atraso e é o principal motivo, na opinião de especialistas, para as companhias sucumbirem. E a perspectiva, concordam eles, é de que a quantidade de empresas em recuperação judicial continue aumentando até meados do ano que vem.
Por causa da queda da inflação, do desemprego e a surpresa positiva do desempenho do Produto Interno Bruto (PIB), o cenário econômico tem melhorado. No entanto, a situação financeira continua complicada para um grupo de empresas.
Além de pesos-pesados como a Oi – que está na segunda recuperação judicial – e Americanas, companhias conhecidas do dia a dia dos brasileiros também pediram proteção da Justiça nos últimos meses. Entre elas estão 123 Milhas, MaxMilhas, M.Officer, Grupo Petrópolis (dono da marca de cerveja Itaipava) e SouthRock, operadora da Starbucks no Brasil, por exemplo.
Em setembro, havia no País 3.872 companhias em recuperação judicial. O Brasil tem um total de 2,16 milhões de empresas privadas de pequeno, médio e grande porte, segundo a consultoria RGF Associados, especializada em reestruturações. Ou seja, uma a cada 500 empresas estavam nessa condição, em números arredondados.
O estoque de insolventes foi calculado pela consultoria a partir dos CNPJs (Cadastro de Pessoa Jurídica) ativos listados na Receita Federal. Foram excluídos da conta microempreendedores individuais (MEIs), microempresas e Organizações Não Governamentais (ONGs).
No ano, até outubro, dados da Serasa mostram que 1.128 companhias pediram recuperação judicial, 61,8% a mais ante igual período de 2022. Em outubro, o ritmo de crescimento de pedidos (51,4%) foi menor do que o acumulado do ano.
“De toda forma, é um número extremamente elevado”, afirma Luiz Rabi, economista da Serasa Experian e responsável pelas estatísticas. Ele projeta para o ano cerca de 1.400 recuperações, uma marca que não deve superar o recorde de 2016, que foi de 1.863 pedidos.
O sócio da Íntegra Associados, Renato Franco, explica que o elevado volume de recuperações judiciais que vemos hoje é reflexo da pandemia e das facilidades criadas pelo governo e pelos bancos, como a postergação dos vencimentos de dívidas.
A solução apenas adiou o problema, pois as dívidas venceram em um momento com juros altos. “Hoje há um rescaldo da pandemia. Há várias empresas na fila para pedir recuperação judicial”, diz Franco.
Defasagem no tempo
O pico atual da insolvência das empresas reflete o aumento da inadimplência acumulada no passado. Rabi diz que o processo que levou ao crescimento da quantidade de empresas em recuperação judicial neste ano começou a ser produzido no quarto trimestre de 2021.
Naquela época, lembra, tanto a inadimplência das pessoas físicas como a das empresas começou a crescer. E no início deste ano esse acúmulo de não pagamento de dívidas levou um grande número de companhias à insolvência. “A recuperação judicial é o último vagão que se movimenta, quando o trem começa a andar”, compara o economista.
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Por isso, hoje, apesar de o cenário econômico estar melhor, a estatística da insolvência das empresas continua piorando. Na opinião de Rabi, o volume de recuperação judicial deve continuar alto até a metade do ano que vem. “Para estabilizar, tem chão”, diz, lembrando que o ritmo anual de crescimento dos pedidos está na faixa de 60%.
“Vamos ver mais empresas entrando em recuperação judicial pelo menos até o primeiro semestre de 2024″, prevê Rodrigo Gallegos, sócio da consultoria RGF. O motivo é que o pequeno recuo da Selic, de 13,75% para 12,25%, não trouxe alívio para as companhias.
Ele lembra do estrago que o pedido de recuperação judicial da Americanas provocou no sistema financeiro. “No começo do ano, foi uma tempestade perfeita: juros altíssimos, o varejo assustando os bancos de um jeito que eles não imaginavam e mudança de governo.”
A Gallegos diz que os bancos continuam muito restritivos na liberação do crédito, embora tenham retomado as conversas com as empresas para aprovar recursos, porém pontualmente.
Gabriela Martines, sócia na área de Reestruturação de Empresas do TozziniFreire Advogados, concorda com o consultor. Ela observa que as instituições estão abrindo as renegociações, porém estão muito mais atentas às fraudes, especialmente depois do episódio da Americanas.
“Os bancos querem ter certeza dos números, dos valores, e buscam ter garantias”, conta. “Americanas era uma empresa em que todo mundo confiava muito, tanto que ninguém exigia garantias, e aconteceu o que aconteceu.”
De acordo com o último Relatório de Crédito do Banco Central, em setembro, a concessão de crédito para antecipação de fatura de cartão de crédito para empresas avançou 4,4% em 12 meses e 8,6% no ano. Na linha de crédito para capital de giro com prazo inferior a um ano, houve um aumento de 8,2% em 12 meses e de 5,1% em um ano nas concessões.
“Estamos vendo agora a inadimplência bancária começando a cair e algumas concessões de crédito começando a reagir”, diz Rabi, ponderando que esse movimento está apenas no começo, mas deve continuar.
Menores sentem mais
Empresas de menor porte têm enfrentado mais dificuldades financeiras e buscado a proteção judicial para manter o negócio. De janeiro a outubro, quase 65% das 1.128 recuperações judiciais foram requeridas por pequenas empresas, seguidas por médias (25%) e grandes (10%), apontam os dados da Serasa.
Setores que dependem do mercado doméstico e são impactados pelas altas taxas de juros, como serviços e o comércio, responderam pelo maior volume de pedidos de recuperação judicial neste ano: 72,5%, de janeiro a outubro. Já a fatia da indústria foi de 18,6%, seguida pelo setor primário, que engloba agricultura, pecuária e extração de minérios, com 8,9% dos pedidos.
Risco climático
Além de todos os percalços enfrentados pelas empresas em geral, Camila Crespi, advogada associada do escritório Luchesi Advogados, especializado no setor do agronegócio, vê o risco de o número de pedidos de recuperação judicial crescer entre os produtores agrícolas. De janeiro até agora, o escritório acompanha mais de 15 pedidos de recuperações judiciais de empresas do agronegócio.
“Poderá haver um aumento expressivo de pedidos de recuperação judicial de produtores na região Sul”, afirma a advogada. O Sul tem sido castigado por forte chuvas e vem de três anos de quebra de safras.
Além das intempéries climáticas, Camila diz que os produtores de grãos do Centro-Oeste têm enfrentado um desequilíbrio entre aumento de custos e queda nos preços. Isso fez muitos adiarem a venda dos grãos, na expectativa de cotações maiores.
“Há muitos produtores deixando de cobrir contratos de venda, e temos visto um estado de insolvência, que é um sinal vermelho, um ato pré-recuperação judicial”, alerta.
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