Na manhã seguinte à sua demissão como ministro-chefe da Secretaria de Planejamento do governo Figueiredo, em 11 de agosto de 1979, o prédio onde o economista Mário Henrique Simonsen morava em Ipanema, no Rio, estava cercado de jornalistas. De sunga, pronto para ir à praia, o ex-ministro improvisou uma entrevista coletiva, sentado em uma cadeira com as pernas cruzadas em uma posição de ioga. Logo veio a pergunta: “Como o senhor está se sentindo?”. Simonsen aproveitou a deixa: “Como aquele tenor de ópera que cantou, desafinou o tempo todo e levou uma bruta vaia do público do teatro. Na saída, o tenor se voltou para a plateia e disse: ‘Vocês estão me vaiando porque ainda não ouviram o barítono’”.
O barítono a que Simonsen se referia era Delfim Netto.
O economista Antônio Delfim Netto, que morreu nesta segunda-feira, aos 96 anos, não tinha a voz grave como a dos barítonos, mas a sua trajetória corria todos os papéis de uma ópera. Aos 38 anos, já professor catedrático da USP, foi convidado para ser ministro da Fazenda por “entender de agricultura”. Tímido, 1m60 de altura, mais de 110 quilos, com sotaque do bairro paulistano do Cambuci, era desdenhado. Ninguém lhe dava um ano no cargo.
Ao longo dos sete anos como ministro da Fazenda dos governos Costa e Silva e Médici, no entanto, Delfim aproveitou cada oportunidade de acumular mais poder proporcionada pelo regime autoritário. Acabou com a curta independência do Banco Central, tabelou os juros e centralizou o câmbio. Criou uma comissão ligada diretamente ao seu gabinete para monitorar do reajuste de tarifas públicas ao preço do cimento e do petróleo. Manteve a política de reajuste salarial com base na inflação estimada e não na efetiva, o que, na prática, significou um arrocho nos salários.
Em 13 dezembro de 1968, Delfim Netto foi um dos ministros que votou a favor da decretação do Ato Institucional número 5 (AI-5), que encerrou o que restava de democracia no Regime Militar e mudou por decreto-lei todo o sistema tributário nacional. E, principalmente, se aproveitou da fartura de crédito externo para financiar o crescimento médio do PIB de 11,7% ao ano no que ficou conhecido, contra a sua vontade, como “milagre brasileiro”.
Tomado pelo gosto do exercício poder, Delfim imaginou que poderia ser o primeiro presidente civil do regime militar. Rechaçado pelo presidente Ernesto Geisel, Delfim terminou num exílio dourado de três anos como embaixador brasileiro em Paris. Retornou a Brasília com o governo Figueiredo como ministro da Agricultura, mas era pouco. Com a demissão de Simonsen, ele finalmente seria o personagem principal.
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A manchete do Estadão em 15 de agosto de 1979 foi “Delfim assume, começa a mudança na economia”. O clima na posse era de apresentação de craque de futebol. Quase mil empresários se acotovelavam no nono andar da Secretaria do Planejamento, de onde Delfim mandaria por toda a Esplanada dos Ministérios pelos próximos cinco anos e meio. (Embora tradicionalmente o Ministério da Fazenda concentre as decisões econômicas, no governo Figueiredo a primazia foi dada à Secretaria do Planejamento, primeiro com Simonsen e depois com Delfim).
“Senhores, preparem seus arados e suas máquina, nós vamos crescer! Temos que por um fim nessa mania de ficarmos enrustidos dentro das dificuldades. Este país não pode se permitir um crescimento menor. Esse país só enfrenta a crise crescendo mais!”, discursou. Foi ovacionado.
Mas como em uma comédia de erros, o Delfim de 1979 colhia os frutos deixados pelo Delfim do “milagre econômico”. O tempo dos juros baixos e do crédito farto que financiou o crescimento de quase toda América Latina acabou quando, para combater a inflação, o Fed americano aumentou a taxa de 11,2% para 20% em um ano. Além disso, a revolução iraniana de 1979 e o início da guerra Irã-Iraque no ano seguinte desorganizaram a produção do petróleo no golfo pérsico, e fizeram o preço nominal do barril triplicar. À época, 80% dos títulos brasileiros acompanham indicadores como os juros americanos e metade das exportações eram de petróleo. Como um dominó, os países foram quebrando. Primeiro a Polônia, depois a Argentina, o México e finalmente o Brasil. O discurso de “enfrentar a crise crescendo mais” virou pó.
Delfim e o ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, indexaram a taxa de câmbio e a correção monetária à inflação, impuseram metas trimestrais para a expansão do crédito no setor privado e arrocharam os salários. O resultado foi a maior recessão brutal registrada no século 20. O PIB em 1981 caiu 4,4% e o desemprego estourou. Mais de 300 mil metalúrgicos paralisaram as fábricas no ABC Paulista liderados por um jovem sindicalista chamado Luiz Inácio da Silva, conhecido pelo apelido de Lula. Foram mais de mil greves no ano. O Brasil tornou-se uma panela de pressão.
Em agosto de 1983, a revista Veja trouxe na capa a fotomontagem de um Delfim decapitado com o título “Querem a cabeça de Delfim: e por que Figueiredo não a entrega”. Escreveu a revista: “Delfim se tornou o homem mais odiado do país. A alta dos preços, o desemprego, a evidente falta de perspectiva… tudo era culpa do Delfim. Em uma passeata de servidores públicos criou-se um slogan ‘Estamos a fim/ da cabeça do Delfim’”.
Delfim enquadrou a capa da revista, pendurou-a na parede do seu gabinete e ironizou: “Sou o bode expiatório perfeito: sou gordo, feio e vesgo”.
Entre 1983 e 1985, a equipe econômica fechou seis cartas de intenção com o FMI, documento que servia como aval para o governo obter ao menos o pagamento dos juros da sua dívida externa. As cartas do Brasil ao Fundo Monetário Internacional se tornaram parte do anedotário da contabilidade mundial.
Na primeira carta, o Brasil se comprometeu com uma inflação em 1983 de 70%. Na segunda, prometeu que a inflação do ano não passaria 100%. Na terceira admitiu um genérico “mais de 100%”. O resultado da inflação de 1983 foi de 211%. São múltiplos os relatos de assessores do FMI aos berros com a delegação brasileira, nas quais adjetivos como “mentirosos” e “irresponsáveis” eram os únicos publicáveis.
Décadas depois, Delfim resumiu o período assim: “Quando você assina uma carta de intenção e não cumpre, bem, pode ser por otimismo. Se assina uma segunda e não cumpre, pode ser que houve avaliação errada. Mas se assina seis cartas… então, os dois lados sabiam que era impossível cumprir”.
As cicatrizes da recessão de 1981 e a hiperinflação decretaram o fim do regime militar, mas não de Delfim Netto. Como um cantor que muda de papel com a idade, o economista virou político. Foi deputado federal por São Paulo por 20 anos, entre 1987 e 2007, e saiu do papel de porta-voz dos saudosos do regime militar para um influente assessor dos governos Lula. A aproximação com o petista era mais uma reviravolta na carreira de Delfim.
Em 2002, depois de ter perdido três eleições presidenciais, Lula ampliou o leque das suas alianças. Trouxe para vice um empresário bilionário, autorizou seu coordenador econômico, Antonio Palocci, a lançar uma carta prometendo não fazer moratória da dívida pública e enviou intermediários para ter apoio de Delfim Netto. Ao longo do primeiro governo, os dois mantiveram conversas regulares em que o economista defendeu o ajuste fiscal em combinação com o financiamento de obras públicas, no que depois virou o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Em 2008, Delfim disse que Lula era a encarnação do otimismo. “Lula é o maior economista do Brasil”, disse, em entrevista à Agência Estado. Em 2009, depois de o Brasil superar a crise financeira mundial, Delfim disse que “Lula salvou o capitalismo brasileiro”.
Apesar da hipérbole, Delfim era um analista refinado. Em 2014, foi ele que cunhou a expressão “tempestade perfeita” para os vários sinais de que a economia estava prestes a entrar em falência. Em 2015, decifrou as manobras triangulares dos orçamentos de Itaipu e do Banco do Brasil para o Tesouro Nacional que deram sustentação para o processo de impeachment.
Frasista, quando o entrevistei para meu livro O Pior Emprego do Mundo, sobre ministros da Fazenda, começou me dizendo: “Não confio em nenhum governo. Nem quando estou nele”.
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