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‘O Brics 3.0 é uma incógnita’, afirma Marcos Troyjo

Na visão do ex-presidente do Banco do Brics, a expansão do bloco deve aumentar seu peso no cenário global, mas tornará mais complexo construir posições conjuntas do que nas versões 1.0, que reunia Brasil, Rússia, Índia e China, e 2.0, que incorporou a África do Sul

Foto do author José Fucs
Atualização:
Foto: José Cruz/ Agência Brasil
Entrevista comMarcos TroyjoEx-presidente do Banco do Brics e ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia

O economista, sociólogo e diplomata Marcos Troyjo, de 57 anos, é uma das vozes mais credenciadas do País e do exterior quando o que está em pauta é o Brics, o grupo que reúne o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul.

Cocriador do BricLab, na Universidade Columbia, em Nova York, em 2011, e ex-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o Banco do Brics, com sede em Xangai, na China, entre julho de 2020 e março de 2023, Troyjo conhece como poucos a história e os meandros do bloco.

Troyjo diz que, de 2019 a março de 2023, o Banco do Brics aprovou US$ 5,4 bilhões em financiamentos para o Brasil Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Nesta entrevista ao Estadão, concedida antes da 15º Cúpula do Brics, realizada de 22 a 24 de agosto em Joanesburgo, na África do Sul, e depois atualizada para incorporar questões sobre o encontro, ele analisa a decisão do grupo de convidar mais seis países – Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã – para integrá-lo.

Segundo Troyjo, que foi secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia antes de assumir o comando do NBD, a ampliação do bloco deverá aumentar seu peso no cenário global, mas tornará mais complexo construir posições conjuntas do que nas versões 1.0, que reunia só Brasil, Rússia, Índia e China, e 2.0, que incorporou a África do Sul. “O Brics 3.0 é uma incógnita”, diz.

Ele fala também na entrevista sobre a ideia do grupo de adotar uma moeda comum nas transações comerciais em substituição ao dólar, comenta a visão de que China tem interesse em expandir o Brics, para aumentar sua influência no mundo e se contrapor ao G7 (grupo dos países mais desenvolvidos), e conta detalhes de sua saída do comando do NBD por divergências com o governo Lula.

Ficou claro na interlocução que eu tive com representantes do governo que não fazia sentido eu continuar à frente do banco

O sr. tinha um mandato de cinco anos na presidência do NBD, mas ficou menos de três e deixou o cargo após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que indicou a ex-presidente Dilma Rousseff para substitui-lo. Como foi a sua saída do NBD?

Como não estou alinhado às diretrizes desse grupo que tomou posse em 1º de janeiro, achei melhor me desligar da instituição. Eu tenho uma certa visão de mundo, de como deve ser o desenvolvimento econômico e de quais devem ser os papéis das instituições multilaterais e do Estado na economia, que não é a desse grupo. O NBD é uma instituição ainda muito jovem e esse desalinhamento não seria bom para ela.

Alguém do governo Lula lhe pediu para deixar a presidência do banco?

Ficou claro na interlocução que eu tive com representantes do novo governo que não havia alinhamento e que, portanto, não fazia sentido eu continuar à frente do banco.

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Que divergências foram essas com o atual governo?

Eu posso falar sobre quais eram as minhas prioridades no banco. Na minha visão, o NDB deve ser um músico numa orquestra. Há um ecossistema de instituições multilaterais e o NDB faz parte dele. Como existe um gigantesco abismo entre a necessidade de investimentos em infraestrutura e o volume de recursos disponibilizados pelas instituições multilaterais, quanto mais músicos houver na orquestra melhor. Porque, em geral, com a união de vários países, você gera uma instituição que tem uma nota de crédito muito superior à nota isolada de cada país, o que permite assegurar recursos de longo prazo para os projetos que eles querem desenvolver. Esta é uma das belezas dos bancos multilaterais.

Como o sr. vê a existência de um banco de desenvolvimento do Brics?

Quando surgiu a ideia de criação de um novo banco de desenvolvimento pelo Brics, em 2012/13, fiquei muito contente e entusiasmado. Eu havia criado o BricLab na Universidade de Columbia, em Nova York em 2010/2011 e acompanhei como espectador o que estava sendo desenhado, a partir da ideia de que há um grande déficit de infraestrutura e de capital disponível para desenvolvimento sustentável no mundo. Achava que era uma boa ideia criar uma instituição capaz de mobilizar recursos para financiamentos de maturação longa a taxas de juros baixas, com um modelo de negócios baseado na integralização de capital pelos sócios. Isso permite a multiplicação dos recursos disponíveis para financiamentos mediante a emissão de títulos no mercado, como fazem outros bancos de desenvolvimento. Na época, publiquei até um artigo no Financial Times em que dizia “the brics development bank is more than welcome (o banco de desenvolvimento do Bric é mais que bem-vindo)”. O nome Novo Banco de Desenvolvimento também é muito feliz, porque é novo no sentido de que não nasce no pós-guerra, como o Banco Mundial, que surgiu um pouco em cima da ideia de reconstrução e desenvolvimento. É daí que vem a sigla Bird, de Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento.

Agora, considerando que já há outras instituições que desempenham papel semelhante, como o próprio Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), faz sentido os países do Brics terem seu próprio banco?

As instituições criadas no pós-guerra, nos anos 1940, como o Banco Mundial, ainda desempenham um papel importante, mas não precisam atuar sozinhas. Hoje, países como China ou mesmo Brasil já têm uma renda per capita que não os credenciam mais para determinados tipos de projetos. Juntando todos os bancos multilaterais – o Banco Mundial, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, o Banco Africano de Desenvolvimento, o Banco Asiático de Desenvolvimento, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o próprio NDB – eles disponibilizam apenas 5% ou 6% dos recursos necessários para projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável dos países emergentes.

Ainda assim, exercem um papel importante em múltiplas dimensões. Às vezes, eles conseguem liderar um projeto em que o interesse de mercado não está consolidado e, com isso, acabam atraindo outros investidores. É um processo chamado de crowding in. Acho isso muito interessante. Eles também são espaços de cooperação. No mundo em que vivemos hoje, em que há um déficit de cooperação internacional, você poder sentar com outros países na mesma mesa e criar sinergias a partir de interesses comuns é algo bem-vindo. A situação hoje é muito diferente dos períodos que se seguiram às crises de 2008, no mercado americano de hipotecas, e de 2011, quando houve dificuldade de rolagem de algumas dívidas soberanas na Europa, que foram momentos de grande cooperação internacional.

Que realizações o sr. destacaria em sua gestão no NDB?

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No começo, o banco alocou poucos recursos para o País. Havia muitos projetos concentrados na Índia e na China, O Brasil também apresentou poucos projetos. Até 2018, o NDB aprovou apenas US$ 620 milhões em projetos para o Brasil. De 2019, quando fui presidente do conselho de administração, a março de 2023, quando deixei o banco, o NDB aprovou US$ 5,4 bilhões em financiamentos para o Brasil. Ou seja, nesse período, o total de projetos aprovados para o Brasil foi multiplicado por nove. Os recursos foram direcionados para projetos nas áreas de energia solar, transporte urbano, saneamento básico e transição para economia verde, que estão dentro do mandato do banco.

Além do aumento dos financiamentos ao País, o que mais mudou no banco nesse período?

Eu também achava que era importante promover o aprimoramento institucional da NDB. Então, nós criamos o escritório de avaliação independente, que zela pela qualidade dos projetos implementados, e transformamos a área de auditoria num departamento, que aumenta a governança da instituição. Essa questão de ESG é vista muito pelo lado do meio ambiente, mas a parte de governança também é muito importante. Nós ainda criamos um departamento para o setor privado na área de operações e inauguramos nosso escritório na Índia, na cidade de Gandhinagar, em Gujarat. Emitimos o primeiro título verde, em 2021 e fizemos a maior captação de recursos de longo prazo no mercado interbancário da China, o chamado Panda Market, de US$ 1 bilhão.

Conseguimos também autorização dos acionistas para iniciar o processo de expansão do banco, de forma responsável e equilibrada. Trouxemos os Emirados Árabes, o Egito, Bangladesh e o Uruguai, dentro da ideia de ter um certo equilíbrio geográfico e de perfis econômicos dos sócios. Os Emirados Árabes, por exemplo, são grandes financiadores de infraestrutura. Bangladesh é o país que tem hoje o maior crescimento do mundo. É a economia que mais cresce no continente asiático, que é a região que mais cresce no mundo. O Egito hoje é a maior economia do continente africano pela paridade do poder de compra e o Uruguai tem larga experiência de gestão multilateral. Já teve um presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e abriga o secretariado do Mercosul e a sede da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração).

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O que está por trás dessa ideia de expansão do banco, se ele foi criado pelo Brics para financiar projetos dos países do bloco?

Na verdade, desde o primeiro momento que se desenhou o estatuto se fala não num banco do Brics, mas num novo banco de desenvolvimento, aberto a novos sócios. Interessante que o espírito do estatuto mostra também que ele não deve ter um sentido de oposição a outras instituições multilaterais mais estabelecidas, mas de parceria e complementaridade.

Quais os critérios adotados para a escolha de novos sócios do banco? Até que ponto há interferência política na decisão?

Todas as instituições multilaterais expressam interesses políticos e também critérios técnicos. Os acionistas entendem que tais países devem ser sócios, autorizam a direção do banco a iniciar o processo de negociação e aí você lidera o processo. Em alguns casos, os candidatos precisam da anuência de seus Congressos nacionais e a adesão passa por uma revisão dos parlamentos, como no caso do Uruguai, de Bangladesh e do Egito. Entre os critérios técnicos que precisam ser levados em consideração no NDB, eu destacaria a classificação do crédito do país, o seu histórico em relação a outras instituições multilaterais, o tamanho da sua economia e o seu papel na formação de demanda por projetos de infraestrutura.

O presidente Lula tem defendido a entrada da Argentina como sócia no NBD. Como o sr. vê essa questão?

O estatuto do banco permite que um país se torne membro do NBD desde que seja membro das Nações Unidas. Então existe essa possibilidade. Essa vai ser essencialmente uma questão de priorização e decisão dos sócios.

Como o sr. avalia a decisão do Brics de promover a expansão do bloco, com o ingresso de mais seis países a partir de 2024: Arábia, Saudita, Argentina, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia?

O Brics surgiu formalmente em meados dos anos 2000 como uma espécie de mapa do futuro de onde viriam as principais fontes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) global. Em 2001, quando o Goldman Sachs (banco de investimento americano) fez o estudo que criou o termo Bric, que num primeiro momento englobava apenas Brasil, Rússia, Índia e China, ele previu que os quatro países abocanhariam uma parcela cada vez maior do PIB mundial – e isso, de fato, aconteceu. Obviamente, esta fatia foi muito mais representada pelo crescimento estonteante da China e em anos mais recentes da Índia do que do Brasil e da Rússia. Essa ideia de Bric como sinônimo de crescimento da economia global, com os quatro países que formaram o bloco no início, eu chamaria de Bric 1.0. Aí, num segundo momento, em 2011, esses quatro países trouxeram um representante africano para o bloco, que foi a África do Sul, acrescentando o “s” à sigla, e criou-se ali uma plataforma de diálogo e cooperação. Hoje, há dezenas e dezenas de reuniões ao longo do ano de ministros de saúde, ministros de indústria e comércio, autoridades aduaneiras. Dessa cooperação, surgiu também uma instituição financeira, que é o Novo Banco de Desenvolvimento. É a fase que eu chamaria de Brics 2.0.

Agora, como será o Brics 3.0, com a possível incorporação desses novos integrantes a partir do ano que vem? Esse Brics 3.0 é uma incógnita. Uma expansão que leve em conta representatividade geográfica, tamanho populacional e capacidade econômica naturalmente vai aumentar o potencial do grupo, bem como seu peso simbólico no cenário internacional. No entanto, como em qualquer expansão, construir posições conjuntas ficará mais complexo. Agora, é importante evitar redundâncias com outras experiências já existentes. O erro é utilizar o reducionismo do que foi a Guerra Fria lá atrás para analisar a dinâmica das relações internacionais hoje. Teria de ver em que medida um Brics expandido não terá redundância, por exemplo, com o G77, criado com o intuito de aumentar a voz e as posições conjuntas em outros fóruns multilaterais.

É um erro utilizar o reducionismo do que foi a Guerra Fria lá atrás para analisar a dinâmica das relações internacionais hoje

A expansão do Brics está sendo vista por muitos analistas como uma vitória da China para aumentar a força do bloco e eventualmente se contrapor ao G7 (grupo dos sete países mais desenvolvidos) e à influência americana. Como o sr. vê essa questão?

A China é a maior economia do mundo pelo PIB medido pela paridade do poder de compra. A China é uma das maiores fontes de investimento estrangeiro direto no mundo hoje. A China se encontra em posição de liderança no depósito de patentes na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi). A China é uma potência nuclear e é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. De cada três países do mundo, dois têm a China como principal parceiro comercial. Então, a China já é muito influente e poderosa. A gente não pode esquecer também que uma parte importante do fluxo de comércio e investimento da China é justamente com países do G7. O comércio da China com o Japão e a Alemanha, por exemplo, é muito importante. O fluxo de investimento de instituições financeiras europeias e americanas que trabalham numa praça como Hong Kong tornam ainda mais elevado o grau de interdependência.

Então, o sr. não vê esse movimento de expansão do Brics estimulado pela China como uma estratégia para o bloco se opor ao G7?

Acredito que a situação é menos simples de interpretar do que as pessoas estão interpretando. Como eu falei, o grau de interdependência entre a China e a Europa, os Estados Unidos e o Japão ainda é muito grande. Embora tenha diminuído muito nos anos recentes, o estoque de investimentos americanos na China desde o fim da década de 1970, quando a China começou a sua política de abertura, é muito grande. Em anos recentes, o estoque de investimentos chineses nos Estados Unidos também cresceu muito. Além disso, a China está presente em outros fóruns, alguns de natureza econômica e financeira, com potências ocidentais.

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Desculpe insistir nesta questão, mas o sr. vê ou não essa expansão como uma forma de a China ampliar a sua força e a sua influência no mundo?

Existe uma competição entre as grandes potências – e isso não é novo na história. Acredito que o erro é utilizar o reducionismo do que foi a Guerra Fria lá atrás para analisar a dinâmica das relações internacionais hoje. Como acabei de dizer, as coisas são mais complexas e interdependentes.

Nós estamos num momento de transição do fluxo de poder e de riqueza no mundo e o caminho à nossa frente está aberto. O rumo que vamos seguir vai depender muito de como isso vai acontecer concretamente. Agora, é importante que, em vez de criar antagonismos em relação a esse ou aquele, sobretudo na ótica de um país como o Brasil, que no limite é o que importa, a gente não abra mão de nossos valores democráticos e do pragmatismo.

Existe uma progressão natural do comércio Brasil-Índia, mas eu acredito que a gente precisa acelerar esse processo

O sr. tem sido um crítico da desproporção do comércio realizado intra-Brics, excessivamente concentrado nas trocas com a China, e defende o fortalecimento da parceria do Brasil com outros parceiros do bloco, especialmente com a Índia. O que explica a sua posição?

Não é que eu seja crítico das nossas relações comerciais com a China. Ao contrário. Acredito que as nossas relações comerciais com a China são de extraordinário benefício para o Brasil. O comércio Brasil-China no início dos anos 2000 era de US$ 1 bilhão por ano. Hoje é de US$ 1 bilhão a cada 60 horas. E, na minha opinião, isso só vai aumentar. Ainda que a China esteja passando por desafios econômicos que todos conhecem, se ela estabilizar o crescimento numa taxa anual de 4% ao longo dos próximos dez anos, em 2033 a maior economia do mundo será a China ou os Estados Unidos e a segunda maior economia do mundo será a China ou os Estados Unidos. Agora, a terceira maior economia do mundo, será a economia dessa China que não existe, mas será resultado do crescimento marginal da economia chinesa a cada ano. Se você levar em consideração que a China hoje tem um PIB nominal de US$ 19 trilhões e cresce 4% ao ano, isso significa que a cada 12 meses ela acrescenta US$ 760 milhões ao seu PIB. Ou seja, ela cresce por ano mais do que uma Argentina, que é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil. Então, eu não vejo como diminuir nominalmente o relacionamento comercial com a China. Acho que ele só vai se expandir.

No entanto, é natural que o Brasil abocanhe cada vez mais outros mercados. Isso é o resultado também da própria expressão econômica dos países emergentes que vai mudando. Hoje o Brasil tem, por exemplo, mais exportações para o Vietnã do que para a Suíça. Tem mais exportações para Bangladesh do que para alguns países escandinavos. Tem mais exportações para a Malásia do que para a Itália. Tem mais exportações para a Tailândia do que para a França. Tem mais exportações para Cingapura do que para a Alemanha.

Agora, pelo que acompanho, quando o sr. fala do aumento do comércio do Brasil com outros países do Brics está se referindo principalmente à Índia. Por que essa sua preocupação em ampliar os negócios com a Índia?

Existe uma progressão natural do comércio Brasil-Índia, mas eu acredito que a gente precisa acelerar esse processo. No ano passado, o comércio dos dois países, entre exportações e importações, chegou a praticamente US12 bilhões, um recorde histórico. Se você levar em consideração que a Índia hoje é o país mais populoso do mundo, com renda per capita crescente, a liberalização do mercado de alimentos da Índia, do ponto de vista das importações, significaria uma extraordinária janela para o aumento e diversificação das exportações do Brasil. Levaria um efeito muito importante de diminuição dos preços dos alimentos na Índia e entre outros fatores ajudaria o país a combater um dos problemas que ela tem, como outros países emergentes, que é a sua falta de água. Hoje de cada dez litros de água na Índia 8,5 litros são consumidos pela agricultura. Se a Índia liberalizar seu mercado agrícola e desengajar o recurso hídrico da agricultura, ele poderá servir a outros fins, que vão ajudar a diminuir os índices de mortalidade infantil.

Quando eu estive na Índia como secretário de comércio do Brasil lembro de ter falado aos indianos da importância da liberalização do comércio agrícola e de que um grande pesquisador indiano disse o seguinte: “Marcos, eu tenho certeza de que, no futuro, o comércio Brasil-Índia vai ser o principal comércio de água. Ele usou a expressão water trade em inglês e eu pensei: “Será que é algum termo técnico que eu desconheço?” Mas ele estava se referindo ao comércio de água mesmo. O caso da China é semelhante. Por que a China importa tanta soja e produz tanto milho domesticamente? É porque, entre outras razões, para produzir uma tonelada de soja você precisa de cinco vezes mais água do que para produzir a mesma quantidade de milho. Então, além da competência do nosso agronegócio, a gente está, em última instância, exportando água.

A principal motivação para o exportador receber em dólar é a universalidade do uso e da aceitação da moeda

Qual a sua visão sobre a proposta surgida agora na Cúpula do Brics, defendia por Lula e pela ex-presidente Dilma, e também pela China e pela Rússia, para os sócios do grupo usarem suas próprias moedas, em vez do dólar, nas transações comerciais realizadas entre eles? Como o sr. avalia essa proposta?

Esse não é um caminho fácil, mas não vejo com maus olhos essa discussão. Apenas acho que tem de ser feita em bases realistas. Acredito que deve ser um objetivo mais de médio e longo prazo. Quer queira, quer não, os grandes estoques de liquidez, de recursos de longo prazo disponíveis para infraestrutura, estão muito vinculados a praças financeiras mais tradicionais, que ainda operam com dólar. Então, acredito que ainda vai demorar bastante tempo para a gente ter a emergência de alguma moeda que venha a substituir o dólar nas suas várias funções ou mesmo a criação de um índice de referência que ao fim do dia é convertido para moedas locais. A ideia de moeda circulante comum parece ser um projeto muito difícil e distante. Os Estados Unidos ultrapassaram a Inglaterra como maior economia do mundo em 1871, mas o dólar só se tornou o padrão dominante, nas transações internacionais, nas referências contratuais e como instrumento de consolidação de transações, no pós-guerra, quando o país detinha metade do PIB mundial. Agora, eu acredito que está acontecendo um fenômeno mais ou menos semelhante.

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Hoje, os países já podem negociar da forma que quiserem. Mas os atores econômicos, se optarem por realizar o comércio bilateral pela moeda nacional de um dos dois países, acabam vendo limitada, muitas vezes, a possibilidade de utilização posterior dos recursos. Você reduz as opções para fazer suas próximas transações. Como os mercados internacionais se tornaram extremamente sofisticados e profundos, sobretudo os mercados ainda referenciados por dólar, é natural que, em termos de maturação, de custo do financiamento e de segurança contra oscilações cambiais, você tenha de pagar um preço por isso, se quiser uma alternativa ao dólar. Aí você entra numa questão de arbitragem, sobre o que é melhor, se é melhor você se “hedgear (proteger)” contra a variação do dólar em relação a essas moedas por meio das operações disponíveis no mercado ou tentar garantir uma receita diretamente em dólar. A principal motivação para o exportador receber em dólar é a universalidade do uso e da aceitação da moeda. Então, eu acho que, durante muito tempo, o dólar ainda vai ser uma referência.

O economista britânico Jim O’neil em entrevista ao jornal britânico Financial Times disse que essa tentativa de usar moedas locais ele é “ridícula”. Como o sr. avalia essa afirmação?

Mais uma vez, usando o exemplo do que aconteceu entre a ascensão da economia americana e a participação do dólar como principal referência do universo financeiro e monetário, eu vejo isso num horizonte de mais longo prazo.

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