O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia pode dar um passo significativo nesta semana. O secretário de Assuntos Econômicos do Ministério das Relações Exteriores, Maurício Lyrio, disse na segunda-feira, 2, que as pendências do acordo foram submetidas aos líderes dos dois blocos depois de mais uma rodada de negociações em Brasília. A declaração foi dada em conversa com jornalistas para explicar a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Cúpula do Mercosul, no Uruguai. O evento ocorrerá nestas quinta-feira, 5, e sexta-feira, 6, em Montevidéu.
Um dos assuntos que devem ser tema de conversa na cúpula deve ser a posição contrária da França ao acordo, que engloba desde agricultores até o presidente Emmanuel Macron. Em resposta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse recentemente que a França “não apita nada”. Em termos gerais, o texto prevê uma área de livre comércio entre os dois blocos, em uma situação em que o Brasil teria mais espaço para exportar mais commodities (tais como os produtos agropecuários), e, por sua vez, os europeus teriam a oportunidade de exportar mais produtos manufaturados e industrializados.
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Assinado em 2019, o acordo nunca foi implementado. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas até 2023, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia.
Para o economista Paulo Feldmann, coordenador de projetos e professor da FIA Business School, além de docente da USP, o motivo da resistência é meramente econômico. “Justamente quem está retardando isso são os agricultores franceses, que são extremamente protecionistas e sabem que a agricultura brasileira é muito mais competitiva. Com o acordo entre os europeus, a França tem hoje grandes vantagens para vender para toda a Europa, e, com a chegada do acordo com o Mercosul, ela perderia essa vantagem”, afirma Feldman.
O capítulo mais recente dessa celeuma foi a crise gerada pela declaração de Alexandre Bompard, presidente do Carrefour. No dia 20 de novembro, ele comunicou que a varejista se comprometia a não comercializar carnes provenientes do Mercosul justificando que os produtos não respeitavam os requisitos e normas do mercado francês. Depois da repercussão negativa, ele recuou e emitiu uma carta se desculpando.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, no cenário atual, a possibilidade de o acordo vir a ser barrado devido aos protestos dos franceses é remota, já que, além da França, apenas a Polônia já se manifestou contrária. Outros países, tais como Itália e Holanda, fizeram apenas ressalvas, mas não pretendem barrar o acordo. A União Europeia conta com 27 países membros, e a posição dos contrários é, por ora, insuficiente para que a proposta não siga adiante.
“Eu entendo que não (a França não barraria o acordo), até porque, ela não tem votos suficientes para isso. Lembrando que a maior parte dos países tem interesse em fazer o acordo, e a expectativa é de que seja aprovado”, afirma Michael Roubicek, professor da Fundação Vanzolini e conselheiro de administração e fiscal em diversas empresas.
Para Fernanda Brandão, coordenadora do curso de relações internacionais da Faculdade Mackenzie Rio, a única forma de a França barrar o acordo é fazer uma coalizão e conquistar a minoria de bloqueio (entenda abaixo o termo). “Dada a situação geral, a perspectiva é que, se o acordo for concluído, que ele seja aprovado sim no âmbito do Parlamento Europeu e que a França não consiga barrar”, diz Fernanda.
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Entenda o conceito de ‘minoria de bloqueio’
O texto que vier a ser assinado entre a União Europeia e o Mercosul precisa ainda passar pela apreciação do Conselho da União Europeia e do Parlamento Europeu, que podem aprová-lo ou não. Segundo as regras de votação, o acordo é aprovado quando há a maioria qualificada, atingida quando 55% dos estados-membros (ou seja, 15 dos 27 países) aprovam, desde que eles reúnam 65% da população total da União Europeia.
O mecanismo de minoria de bloqueio ocorre quando ao menos quatro países votam contra, desde que representem, juntos, o equivalente a 35% da população.
Pressão política
Na avaliação de Rodrigo Cezar, professor do curso de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), juridicamente a França tem poucas chances de conseguir barrar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Porém, ele não minimiza a pressão política que está sendo exercida pelos franceses, que pode, em última instância, impactar as decisões do Conselho da União Europeia e o Parlamento Europeu.
“Existe um grande processo de negociação antes de ir para o Conselho e Parlamento. Se, eventualmente, a pressão que vier a ser exercida comprometer a votação, o item não é apresentado. Se fosse para votação e fosse barrado, teria um custo reputacional muito grande. Porém, a União Europeia de forma geral está otimista em relação ao acordo”, diz Cezar.
Uma outra possibilidade, segundo o especialista, é o acordo ser aprovado de forma mista. No acordo misto, o parlamento de cada país vai apreciar o acordo, e é aí que a França pode não aprová-lo internamente. Se isso ocorrer, o acordo pode ser implementado de forma provisória nos aspectos exclusivos de competência da União Europeia, porém, sem aquilo que é de competência de cada país.
O especialista lembra que essa não é a primeira vez que a França se mostra contrária a um acordo comercial. O mesmo já ocorreu com o Acordo Econômico e Comercial Global entre a União Europeia e o Canadá (Ceta), e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), com os Estados Unidos.
No caso da Ceta, por exemplo, as restrições da França foram em relação às provisões de proteção de investimentos “A França não ratificou o Ceta, e, por isso, ele é um acordo misto. Mesmo assim, o acordo existe e ele está em implementação provisória. Isso significa que mais ou menos 90% do conteúdo do acordo está sendo implementado, apesar da chamada implementação provisória”, explica Cézar.
O que é o acordo?
As negociações de livre comércio entre os dois continentes tiveram início há 25 anos, em 1999. Em resumo, ela prevê zerar as tarifas de importação sobre cerca de 90% do comércio bilateral num prazo de 15 anos. Os dois blocos representam juntos cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, num mercado de 780 milhões de pessoas. Seria um dos maiores acordos comerciais do mundo.
Assim como já ocorre com outros países, tais como a China, o Brasil poderia exportar mais commodities para a França, como carne, laranja, frutas e café, entre outros, que poderão ser comprados pelos europeus com preços mais baixos do que eles pagam hoje. Por outro lado, a França teria uma entrada facilitada no mercado brasileiro de itens manufaturados e industrializados, tais como queijos, vinhos e máquinas, sem as tarifas de importação existentes atualmente.
“Além de ser uma oportunidade de aumentar as exportações dos países, o acordo também aumenta a competição, já que é baseado na reciprocidade”, explica a professora Fernanda Brandão, da Mackenzie Rio.
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