Javier Milei, o candidato a presidente da Argentina mais votado nas eleições primárias, tem como uma das suas principais propostas a dolarização da economia do país.
Inspirada no ex-presidente Carlos Menem, a ideia de Milei é colocar o dólar em circulação e torná-lo a moeda de curso legal do mercado argentino, substituindo a moeda nacional existente, o peso argentino.
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Caso Milei se torne presidente e o Congresso aprove a medida, todas as transações passariam a ser em dólar na Argentina, desde compras e vendas a salários. Até agora, dois outros países da América Latina são dolarizados: Equador, desde 2000, e El Salvador, desde 2001.
Meta: vencer a inflação
O objetivo com a dolarização é conter a inflação, que aumentou 113,4% anualmente em julho, e estabilizar a economia, já que a moeda estadunidense é amplamente aceita internacionalmente.
Se essa medida fosse aprovada, o país estaria perdendo o direito de emitir a sua própria moeda, perdendo também o controle sobre a moeda que usam, explica o macroeconomista Nelson Marconi, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Com isso, a Argentina dependeria da entrada de recursos em dólar para garantir uma quantidade determinada de moeda no país para fazer todas as transações, o que valeria para todos, empresas, governo e pessoas físicas.
Para o economista, trata-se de uma atitude muito arriscada. “O governo perderia a capacidade de determinar a taxa de juros interna, já que não teria mais moeda, não teria razão também de ter uma taxa de juros básica. Para conseguir financiar a sua dívida, teria que emitir títulos em dólar”, diz. A falta de controle sobre a moeda resulta, portanto, na perda desse instrumento forte de política econômica, afirma Marconi.
Antes de uma queda da inflação, o processo de dolarização resultaria em uma hiperinflação em pesos, diz o economista. Isso porque quem não possui a moeda americana buscaria converter os pesos argentinos. Com tantas conversões, a taxa de câmbio dispararia, afirma Marconi.
Depois desse período, a tendência é de uma queda na inflação, como já ocorreu na Argentina durante a gestão de Carlos Menem. Ainda que não fosse uma dolarização plena, como proposta por Milei, existia um padrão de conversão do peso para o dólar, em que o governo só podia emitir uma quantidade de moeda em peso que tivesse correspondente em dólar. O modelo implantado por Menem foi rompido nos anos 2000 por ser insustentável, diz Marconi.
Desafio
O principal problema que trava a dolarização na Argentina é que o Banco Central do país praticamente já não tem dólares, tendo inclusive limitado o saque da moeda entre os argentinos para evitar a fuga do dinheiro. Atualmente, diante da enorme dívida com o FMI, a Argentina cada vez mais tem reservas negativas de dólares no banco.
“A dolarização, em princípio, não é bom para um país”, afirma Juan Carlos Rosiello, economista da Universidade Católica Argentina. “Tendo uma moeda, você tem uma ferramenta política que é a política monetária, que implica justamente em certos momentos da economia poder subir ou baixar a taxa e fazer a sua moeda ficar mais ou menos competitiva. Quando você perde a moeda você fica dependente da força de outra moeda que você não tem qualquer controle”.
Reações
A eventual dolarização da Argentina pode acabar sendo uma estratégia sem saída, de acordo com o Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras (OMFIF, na sigla em inglês). A iniciativa pode até parecer atraente, mas não vai consertar a economia do país, afirmou em artigo Mark Sobel, presidente nos Estados Unidos da instituição.
Segundo Sobel, as reservas em dólares da Argentina estão negativas e investir na dolarização diante deste cenários pode aumentar a vulnerabilidade do sistema fiscal. Ele afirma que a dolarização é uma política que, sem saída, poderá levar a uma contração e colapso econômicos ainda mais sérios no país.
Para ele, para melhorar a economia argentina, é preciso uma ampla consolidação fiscal que pause o “interromper o ciclo perpétuo de excesso de endividamento, alta e hiperinflação, calote e instabilidade”.
Para o economista-chefe do Instituto Internacional de Finanças (IIF), Robin Brooks, uma eventual dolarização da economia da Argentina seria a “coisa errada a fazer”. Ele afirmou que os países da América Latina que permitem que suas moedas “flutuem” crescem consistentemente mais, na comparação com os que atrelam sua moeda ao dólar. “Deixe o peso [argentino] flutuar e conserte suas políticas”, instou o analista, em publicação no X (antigo Twitter).
Na sua visão, o debate sobre a medida é apenas “mais do mesmo”, já que a dolarização é apenas uma forma “extrema” da política de atrelar o peso ao dólar - que o país sul-americano repetidamente implementou e que terminou várias vezes em grande desvalorização.
“A inflação nos mercados emergentes está acima da inflação dos EUA. Se você atrelar sua moeda ao dólar, sua taxa de câmbio real inevitavelmente sobe e se torna supervalorizada. Isso torna a desvalorização explosiva inevitável”, escreveu.
Respondendo os proponentes da dolarização que dizem que a medida consertaria os desequilíbrios econômicos da Argentina, Brooks citou que “muitos países têm desequilíbrios, mas eles deixam suas moedas flutuarem, o que evita desvalorização explosiva”. “A Turquia faz isso e é o exemplo que a Argentina deveria seguir, enquanto conserta suas políticas.” /Colaboraram Carolina Marins, Jessica Brasil Skroch, Rafaela Rasera e Maria Lígia Barros
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