BRASÍLIA - O endividamento familiar tornou-se uma epidemia financeira no País. Hoje, a cada 100 famílias no Brasil, 79 estão endividadas, conforme levantamento mensal realizado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). A maior parte dessas dívidas não está atrelada a bancos, mas a serviços em geral, como contas de luz, de telefone e internet, carnês de loja e prestações de carro e casa.
Com tanta dívida, o País tem atingido níveis recordes de inadimplência, já que muitas famílias não conseguem pagar suas contas em dia. É o maior volume desde 2010, quando teve início a série histórica.
Ao todo, o Brasil tem hoje mais de 67 milhões de pessoas inadimplentes, conforme dados divulgados pela Serasa em agosto. O valor dessas dívidas ultrapassa R$ 289 bilhões. Desse total, 28% estão ligados a bancos e cartões de crédito, mas a maior parte (72%) refere-se a contas atrasadas em geral.
O que propõe Lula
O Estadão procurou as equipes de campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para detalhar que medidas cada um pretende adotar caso vença o segundo turno das eleições, em 30 de outubro.
O plano de governo apresentado por Lula e enviado ao TSE explora o assunto em seu primeiro parágrafo, ao afirmar que “mais do que nunca, o Brasil precisa resgatar a esperança na reconstrução e na transformação de um país devastado por um processo de destruição que nos trouxe de volta a fome, o desemprego, a inflação, o endividamento e o desalento das famílias”.
A ideia é criar um programa de renegociação das dívidas das famílias e das pequenas e médias empresas, com apoio de bancos públicos e parceria com bancos privados, para oferecer condições de renegociação com os devedores. O principal projeto destas ações foi batizado de “Desenrola”, que mira as dívidas não atreladas a bancos, mas a serviços em geral.
Segundo o coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas da Fundação Perseu Abramo, economista Guilherme Mello, que atua na elaboração da proposta da campanha petista, o programa mira a quitação de dívidas de contas de água, telefone, luz e débitos em comércios. Numa primeira etapa, as ações devem se voltar para famílias que ganham até três salários-mínimos – renda hoje de até R$ 3.636 –, mas depois ampliar o acesso para famílias com rendas mais elevadas.
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“Estamos falando dessas dívidas não bancárias, que são a maioria, cerca de 73% do volume total. O plano é criar birôs de crédito no País, que serão espaços de centralização de informações, porque essas dívidas são muito dispersas, hoje você não tem esses dados centralizados. Esses birôs seriam organizados em parceria com os bancos e, também, com o SPC (Serviço de Proteção de Crédito), Serasa, Banco Central, para fazer a negociação dessas dívidas”, diz Mello.
A ideia é se concentrar, inicialmente, em clientes que foram “negativados”, cujos débitos já são tratados como “perdidos” pelas empresas e não seriam recuperáveis. “O plano é que se ofereça grandes descontos nessas negociações, até porque grande parte dessas dívidas é de juros e multas. Hoje isso acontece em algumas situações; mas, muitas vezes, as empresas querem receber o valor todo de uma vez e as famílias não têm condições de pagar. Como estão negativadas, não conseguem crédito para isso. Então, vamos criar um fundo garantidor, que garante uma parte de eventuais perdas com inadimplência que as instituições financeiras que fizerem o acordo venham a ter”, explica Guilherme Mello. “Logo que se faz a renegociação, a família já sai do cadastro negativo e pode acessar crédito, se necessário.”
O banco, além de oferecer a dívida com desconto, financia esse valor em prazos maiores, com juros mais baixos, para o pagamento daquela dívida, porque passa a ter segurança de que vai receber, graças ao fundo garantidor. “Dessa forma, você consegue combinar grandes descontos e condições de prazo para as famílias. Não é um perdão de dívidas das famílias, mas uma chance quitar isso. Terá ainda um bônus de adimplência para quem pagar tudo certinho, reduzindo o valor de sua dívida, para premiar quem se mantiver adimplente.”
A campanha de Lula também estrutura ações para quitação de débitos em aberto com bancos. O plano é criar incentivo aos bancos que negociarem essas dívidas, por meio de dos chamados “depósitos compulsórios” não remunerados desses bancos. Trata-se de depósitos obrigatórios de valores que as instituições devem manter no Banco Central.
“A ideia é que, conforme os bancos ofereçam mais negociações às pessoas em condições, com mais descontos, o Banco Central passe a liberar uma parcela desses compulsórios não remunerados a esses bancos, para que esses valores possam ser remunerados. Assim, você compensa um pouco o risco do banco nessas transações, com o aumento da rentabilidade do ativo dele”, afirma Guilherme Mello.
O que propõe Bolsonaro
O plano de governo 2023-2026 apresentado por Bolsonaro ignora o assunto. Não há uma única menção ao endividamento familiar nas 48 páginas do documento entregue por sua campanha ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A reportagem enviou questionamentos diretamente aos ministros Paulo Guedes (Economia), Fabio Faria (Comunicações), Ciro Nogueira (Casa Civil), além do próprio comando da campanha. Não houve nenhuma resposta ao pedido de esclarecimento.
A reportagem insistiu e procurou, diretamente, parlamentares da base do governo. Foram questionados o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL) e o deputado André Fufuca (PP-MA), além do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Da mesma forma, não houve nenhuma resposta pelos parlamentares.
Em linhas gerais, o que se pode deduzir, a partir de afirmações já feitas por Bolsonaro e que constam em seu plano de governo, é o incentivo à geração de emprego, para reaquecer a economia e ampliar o poder de compra. Não existe, porém, nenhuma proposta clara que envolva renegociação de dívidas atuais.
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