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O que os especialistas em contas públicas pensam sobre o novo arcabouço fiscal?

Felipe Salto, Vilma Pinto, Solange Srour, Fabio Giambiagi e Manoel Pires avaliam a nova regra fiscal apresentado pelo governo

Foto do author Adriana Fernandes
Foto do author Anna Carolina Papp
Atualização:

BRASÍLIA – O Estadão perguntou a cinco economistas especialistas em contas públicas como eles avaliam o novo arcabouço fiscal, apresentado nesta quinta-feira, 30, pelo Ministério da Fazenda. Se aprovada pelo Congresso Nacional, a nova regra substituirá o teto de gastos, que desde 2017 limita o crescimento das despesas à variação da inflação.

Já a nova regra proposta permite o crescimento real (acima da inflação) de despesas, embora num ritmo inferior ao aumento de receitas. Ela dá mais flexibilidade ao governo na gestão das contas públicas, mas tem o objetivo de estabilizar a trajetória da dívida pública até o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Felipe Salto

Economista-chefe da Warren Rena

O economista-chefe da Warren Rena, Felipe Salto Foto: Dida Sampaio/Estadão

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A regra fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda deverá melhorar as trajetórias projetadas para a relação dívida/PIB. A combinação de um mecanismo de controle de gastos com metas de resultado primário aproveita um pouco do que deu certo em 1999 e em 2016 e, ao que tudo indica, poderá evitar os erros cometidos.

A meta de resultado primário – receitas menos despesas sem contar os gastos com juros da dívida – tem a vantagem de ligar-se diretamente ao endividamento, por considerar arrecadação e gasto. No entanto, ela acaba sendo dirigida pelo ciclo de atividade econômica; muito procíclica, no jargão. Já o teto de gastos não é ligado diretamente à sustentabilidade da dívida/PIB, por desconsiderar o lado das receitas, mas não é procíclico.

O novo arcabouço fiscal prevê que a despesa crescerá a 70% da taxa de crescimento da arrecadação, mas limitada a no máximo 2,5% e mínimo 0,6%. Esse intervalo evitará que se gaste muito em tempos de vacas gordas e que falte o fundamental em períodos de baixa do ciclo – um mecanismo para evitar a prociclicalidade. A meta de primário, por sua vez, será a referência calculada para estabilizar a dívida e, quando descumprida, implicará controle mais duro do gasto (taxa menor de crescimento).

As metas de resultado primário fixadas são ambiciosas e dependeriam de um forte aumento da arrecadação. De todo modo, mesmo sem isso, a aplicação do controle de gastos ajudaria a melhorar o esforço primário ao longo do tempo e produziria efeitos relevantes sobre a trajetória da dívida/PIB.

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Vilma Pinto

Diretora da Instituição Fiscal Independente

A economista Vilma da Conceição Pinto, diretora da IFI Foto: Denis Ferreira Netto/ Estadão

A proposta apresentada pelo governo consiste em uma meta/expectativa plurianual de resultado primário, com uma regra de crescimento para as despesas primárias. No entanto, o governo não a apresentou formalmente, isto é, o projeto de lei complementar que será enviado ao Congresso. Ficam, assim, dúvidas em relação a mecanismos de ajustes, gatilhos em casos de descumprimentos e detalhes sobre regras de crescimento das receitas, que também servirão de base para o crescimento dos gastos, dentre outros.

No entanto, vale apontar como positivo a sinalização de se comprometer com geração de superávit primário que vai de 0% em 2024 e chega a 1,0% em 2026, mas é preciso sinalizar com quais mecanismos esse resultado será alcançado. Só será sustentável se esse superávit for realizado por meio de medidas de caráter estrutural.

A regra para o crescimento real da despesa traz mais flexibilidade em relação ao atual teto de gastos, porém sua vinculação ao crescimento das receitas totais pode gerar o incentivo por busca por receitas não recorrentes. Em que pese a boa intenção de se preservar os investimentos públicos, ao se criar um piso, a regra também aumenta a rigidez da atual estrutura orçamentária.

Fabio Giambiagi

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV)

O economista Fabio Giambiagi Foto: Fabio Motta/Estadão

A divulgação do arcabouço fiscal deixou a desejar em matéria de detalhamento. Depois de semanas de suspense, esperavam-se explicações mais convincentes acerca de como o governo pretende transitar os próximos três a quatro anos em matéria fiscal.

Neste particular, vale uma pequena lembrança. Após a desvalorização cambial de 1999, a equipe econômica teve que renegociar o acordo com o FMI. Naquela ocasião, o início do turning point das expectativas esteve associado à divulgação de um documento por parte do Ministério da Fazenda mostrando “por A mais B” como se pretendia alcançar aqueles números que depois constariam dos objetivos do acordo.

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É isso que falta agora. Meu conselho às autoridades é que, por ocasião da divulgação da LDO, em abril, o governo divulgue um quadro detalhado, ano a ano, de 2023 a 2026, de qual é cenário básico com o qual as autoridades trabalham para o comportamento desagregado das receitas e despesas.

Na receita, decompondo ela em IPI, IR, IOF, COFINS, PIS-PASEP, CSLL, receitas de exploração de recursos naturais, dividendos, concessões, CPSS e outros. E, no lado das despesas, mostrando a evolução das principais rubricas: pessoal, INSS, FAT, LOAS, Fundeb, subsídios, sentenças judiciais, Bolsa Família, saúde e educação e outras despesas obrigatórias e discricionárias (as que não são de pagamento obrigatório, como investimentos). Contribuiria ao cenário ter uma ideia, também, de com que perspectiva de resultado de Estados e municípios o governo trabalha. Finalmente, seria importante expor as premissas adotadas acerca da taxa de juros e da despesa de juros e do déficit nominal esperados ano a ano de 2023 a 2026. Sem isso, será difícil mudar muito as percepções do mercado acerca da trajetória futura da dívida pública.

Solange Srour

Economista-chefe do Credit Suisse

A economista-chefe do Credit Suisse, Solange Srour 

A regra é bastante complexa. A questão da vinculação da despesa com a receita é complicada, porque a gente sabe que é muito difícil cortar despesa no Brasil. Grande parte da despesa é obrigatória e mesmo a despesa discricionária é de dificílimo corte. Então, nos momentos em que a arrecadação cresce menos ou cai, a gente pode não conseguir cortar despesa, até mesmo para cumprir o mínimo da despesa que está no arcabouço – um crescimento real de 0,6%.

Como serão esses cortes? Não tem na regra, e acho que isso é uma falha. Esse arcabouço tinha de vir junto com uma reforma do gasto para ser crível nos momentos em que o PIB não cresce. Nesses momentos, me parece que a gente vai cair na mesma falha da regra do primário. A gente revisava o primário para baixo e a gente pode acabar tendo que revisar esse mínimo da despesa para cima.

É uma regra que, em geral, traz uma convergência da dívida muito devagar, na minha opinião, porque nós não temos no cenário um crescimento de PIB acima de 2,5% nem no curto, nem no médio prazo. Eu acho que quando se coloca um cenário mais otimista, a convergência acontece mais rápido. Não é o nosso caso agora. Nós não temos as taxas de juros reais neutras e nem o crescimento real acima de 2,5% do PIB. Então, é difícil a gente ter essa mesma trajetória de convergência ou primários tão robustos como foi apresentado.

É claro que o Ministério da Fazenda diz que vai ver outros meios de aumentar a arrecadação. Vamos ter que ver, mas a discussão não é fácil. Temos visto o Congresso envolto na discussão do Carf e está demorando, e não só por uma questão política, mas também acho que é uma questão sensível à economia.

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Então, por fim, eu acho que é uma regra que acabou sendo bastante bem recebida pelo mercado, mas não necessariamente a planilha está corroborando, na minha opinião, o que o mercado está precificando hoje. Eu acho que com o tempo a gente vai ver o enforcement (execução) da regra, principalmente numa economia como a atual, em que há um pessimismo em relação à recuperação.

Manoel Pires

Coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV

Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV Foto: Dida Sampaio/Estadão

Ainda faltam detalhes para uma avaliação completa, mas, em linhas gerais, a proposta consiste em melhorar o resultado primário de um déficit de 0,5% do PIB em 2023 para 1% do PIB em 2026, um esforço fiscal de 0,5 p.p. por ano. Haverá um intervalo de confiança 0,25 p.p. do PIB para verificação do cumprimento da meta. A ideia é antiga, pois como na política monetária, a política fiscal também está sujeita a choques e incerteza.

O orçamento será elaborado por uma regra de despesa flexível e seu crescimento equivalerá a 70% do crescimento da receita do ano anterior, com piso de 0,6% e teto de 2,5%. Assim, se o crescimento da receita estiver fora da faixa de 0,86%-3,6%, aplica-se, respectivamente o piso ou o teto na despesa. A flexibilidade se justifica em função dos mínimos constitucionais, parte relevante do orçamento, estarem vinculados à receita evitando compressão de outros gastos. A abrangência é ampla, excluindo-se apenas o Fundeb e o piso da enfermagem. Deveria excluir créditos extraordinários, pois são imprevisíveis e necessários, como mostrou a pandemia.

Haverá um piso para os investimentos e um redutor para 50% do crescimento da receita caso haja descumprimento da meta de primário. Existem dúvidas sobre qual o conceito de receita será utilizado e o que ocorre se houver conflito entre o piso de investimentos e o limite estabelecido para o gasto. O arcabouço geral também se tornou mais flexível para lidar com um orçamento ainda mais rígido.

Como esperado, o arcabouço é estruturalmente contracionista para conter o avanço da dívida, mas a regra é anticíclica nas situações mais agudas. Se houver uma recessão, o governo preserva um patamar mínimo de gastos, se houver crescimento econômico substancial, há compromisso de poupar uma parcela maior de recursos para recuperar o primário.

O alcance das metas, na ausência de um crescimento econômico mais acelerado, requer aumento de carga tributária recorrente, principalmente das contribuições sociais que não são partilhadas com Estados e municípios. É importante que tais medidas sejam formuladas à luz do impacto econômico que geram ao invés de distorcerem ainda mais o sistema.

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A regra é complexa, mas isso reflete o fato de que se atribuiu a ela um grande número de objetivos: aumentar o resultado primário, realizar a gestão de ciclos, preservar investimentos e gastos sociais. Com mais complexidade e flexibilidade, é importante que o Ministério (da Fazenda) se comunique de forma mais profissional e institucional. O que se espera de um bom regime fiscal é que ele gere incentivos para a ampliação de gastos produtivos, mantendo a dívida sustentável sem distorcer o sistema tributário. A proposta tenta estabelecer algumas bases para que isso ocorra nos próximos anos.

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