Nestes dois anos de combate entre a ciência e a covid, dezenas de cientistas travaram uma dura tarefa para proteger a sociedade de fake news, defender as vacinas, advertir sobre como é a busca da verdade pela ciência, deixar claro que não há mágicas quando se trata do conhecimento. O infectologista Esper Kallás foi um deles. Titular de Medicina da USP, ele sentiu na própria pele várias epidemias – zika, dengue e covid, entre outras – no exercício da missão. Recentemente, fez críticas ao Conselho Federal de Medicina por defender a autonomia integral do médico na relação com o cliente (e, portanto, receitar drogas não comprovadas). O também respeitado cientista e pesquisador low profile ressalta que é preciso “olhar a pandemia de forma coletiva”.
Nesta conversa com Cenários, Kallás finca pé na defesa das vacinação geral e lembra que “foi no Brasil que se fizeram alguns dos principais estudos para as vacinas, que deram elementos para o mundo inteiro adotá-las”. O Instituto Butantan e várias outras instituições, de vários Estados brasileiros, tiveram papel de peso, avisa o médico, “e esse papel não teve o devido reconhecimento público”. Por fim, pondera que o chamado equilíbrio da natureza “não favorece necessariamente a espécie humana” e os riscos de extinção são parte da história do Planeta. A seguir, trechos da conversa:
Por que o sistema imune às vezes protege e às vezes não?
Sabemos que nosso sistema imune consegue ser educado com o passar do tempo, e isso vai desde o nascimento até o fim da nossa vida. Vamos encontrando diferentes germes e construindo formas de proteção. As vacinas contra covid estão cumprindo seu papel. No entanto, com o tempo, esse vírus se modificou e deu origem à variantes. No Brasil, tivemos a variante Gama única, que causou aquela tragédia em Manaus, ano passado.
Como identificar se estamos protegidos de uma variante?
Não sabemos ainda. Há alguma imunidade cruzada, como a gente a chama, mas não dá para ter certeza sobre o que veremos depois da onda da Ômicron.
Pode explicar melhor?
Embora exista uma teoria sobre a Ômicron, segundo a qual depois dela vamos estabelecer uma certa normalidade no mundo, não gosto de acreditar na natureza – ela sempre nos reserva surpresas. O jeito é estudar em profundidade os vírus para tomar decisões com base na realidade. Temos vários exemplos na História nos quais achamos que a natureza era uma coisa maravilhosa, que podia se autorregular e chegar sempre a um equilíbrio. Mas esse equilíbrio não favorece necessariamente a nossa espécie. Aliás, na maioria das vezes não nos favorece. Temos estudar neste momento, por exemplo, se precisaremos de uma vacina específica contra Ômicron, ou se chegaremos a uma vacina polivalente que resolva tudo.
Acha que o planeta Terra estaria atuando, a seu modo, contra uma espécie – no caso, nós – que abusa dela?
O que podemos dizer é que o modo como estamos fazendo as coisas não é sustentável. Cabe lembrar, aqui, que a espécie humana esteve na iminência de ser extinta, há 250 mil anos. Havia então um punhado de humanos vagando pelo planeta, em um momento em que 99% das espécies foram extintas. No entanto, por uma conjunção de fatores, nossa espécie encontrou meios de driblar as forças da natureza e chegar aonde chegou.
Mas o risco continua...
Estamos indo para 8 bilhões de habitantes. Se a gente não encontrar meios de respeitar a diversidade da natureza, não interromper o aquecimento do planeta e não produzir energia alternativa, estamos fadados a, um dia, desaparecer.
Ser extintos.
Sim, 99% de probabilidade. Porque o planeta vai resolver o seu problema, e o problema dele, no caso, seremos nós.
Voltando à covid, o que ela nos “ensinou”?
Nos ensinou, para começar, que temos de valorizar o nosso profissional de saúde. E valorizar os enfermeiros, fisioterapeutas, auxiliares. Eu temo que nossos gestores comecem a se esquecer disso rápido e logo reduzam o investimento. Vamos lembrá-los de que a próxima pandemia está ali na esquina. E, se ela chegar, temos de estar preparados.
Não há outra saída, né?
Precisamos fazer do Brasil uma nação de descobertas. Tivemos várias soluções criadas aqui. Foi no Brasil que se fizeram alguns dos principais estudos para as vacinas, que deram elementos para o mundo inteiro adotá-las. Fizemos estudos da Pfizer, da Coronavac, da Janssen e da AstraZeneca. E acho que não tivemos o devido reconhecimento, e não foi extraído o benefício dessa participação.
Detalha um pouco mais?
O estudo da Coronavac foi feito aqui, coordenado pelo Instituto Butantan com outras 16 instituições. O da Pfizer teve um centro em São Paulo e outro em Salvador. Para a AstraZeneca foi a Unifesp que coordenou grande parte do estudo. E o da Janssen também teve participação de vários centros brasileiros.
Seria bom se a sociedade fizesse pressão, exigindo mais atenção e investimentos para a saúde?
Sim, isso tem de fazer parte da pauta. E valorizar o que foi feito. Não é à toa que todas as grandes potências estão investindo tanto em tecnologia e inovação. Temos de pensar dessa forma se queremos um País melhor para os nossos filhos.
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