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Para setor de saneamento, alta de imposto na reforma tributária deve afetar investimento e tarifa

Sem enquadramento como atividade ligada à saúde e com tributação de 26,5%, meta de universalização até 2033 fica mais longe; setor negocia saída com Senado e Fazenda no texto da regulamentação

Foto do author José Fucs
Atualização:

Desde que o novo marco legal do saneamento começou a ser discutido para valer, no governo Temer, a principal preocupação sempre foi a de estimular os investimentos no setor. Só assim o Brasil poderia deixar para trás, enfim, as imagens de crianças brincando junto a valas de esgoto a céu aberto e de pessoas carregando baldes e galões de água pelas vielas das comunidades mais vulneráveis, que se tornaram um símbolo da incapacidade do País de superar suas carências na área.

Hoje, decorridos quatro anos desde a aprovação do novo marco, em julho de 2020, pode-se dizer que, apesar de o grosso do trabalho ainda estar por vir, ele vem alcançando, em boa medida, seus objetivos iniciais. Embora ainda não seja possível detectar uma mudança relevante no número de pessoas que têm acesso às redes de água e esgoto, os investimentos em saneamento bateram recorde histórico em 2023 e uma movimentação inédita tem agitado o setor, com o repasse da prestação dos serviços para a iniciativa privada e a privatização de empresas estaduais que dominavam a área.

Promulgação da reforma tributária pelo Congresso, em dezembro de 2023: setor de saneamento ficou fora do regime especial e terá de pagar mais impostos Foto: WILTON JUNIOR

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Mas, de repente, os avanços alcançados desde a aprovação do novo marco e as perspectivas de que o País possa a chegar à universalização dos serviços até 2033, como prevê o dispositivo, ficaram em xeque. Para desconsolo de todos ou quase todos os envolvidos na missão de transformar a universalização em realidade, das empresas aos consultores e aos profissionais que trabalham na área, no setor público e no privado, a reforma tributária promulgada pelo Congresso no fim do ano passado penalizou o saneamento básico, ao não enquadrar a atividade num regime especial de tributação.

Na regulamentação da reforma, aprovada pela Câmara em julho, o mesmo entendimento foi mantido, com a não inclusão do saneamento como atividade de saúde, beneficiada com um desconto de 60% sobre a alíquota de referência, de 26,5% – uma medida que era defendida pelos representantes do setor. Segundo eles, o enquadramento do saneamento na área de saúde teria um impacto de 0,2 ponto percentual na alíquota geral e manteria praticamente inalterada a atual carga tributária da atividade no novo sistema.

“É difícil entender como o Congresso, que debateu tanto o marco legal, dizendo que a iniciativa privada iria ajudar a universalização, que a gente iria alcançar isso em dez anos, aprovou uma reforma tributária que incluiu um aumento de tributos para o setor de saneamento”, afirma Neuri Freitas, presidente da Aesbe, a entidade que reúne as companhias estaduais de saneamento, e da Cagece, a estatal de água e esgoto do Ceará.

Agora, se nada for feito pelo Senado, que vai analisar o texto da regulamentação aprovado pela Câmara, o saneamento –hoje sujeito ao pagamento de 9,25% de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) e isento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e ISS (Imposto sobre Serviços) – terá mesmo de pagar a alíquota de referência. Se isso se confirmar, deverá haver uma alta de 18 pontos percentuais na carga tributária do setor, de acordo com um estudo produzido pela GO Associados, uma empresa de consultoria voltada para a área de infraestrutura com foco especial no saneamento – ou seja, um aumento de quase 200% sobre o que as empresas da área pagam hoje.

“Essa mudança vai comprometer as metas do novo marco e afetar a equação. Quando a gente faz uma concessão, calcula o fluxo de caixa, programa o investimento. Aí, se chega uma coisa nova para pagar, o valor é repassado integralmente para a tarifa. Não tem outro jeito. Alguém tem de pagar”, diz Christiane Dias Ferreira, diretora executiva da Abcon, a entidade que reúne as empresas privadas de saneamento.

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“Se ninguém pagar, o investimento terá de diminuir, para compensar. O problema é que a gente não pode reduzir o investimento, porque tem uma obrigação contratual. Então, vai ter de renegociar tudo. Mas, para isso, vai ter de passar pela agência reguladora. E, como a titularidade, no caso do saneamento, é municipal, há 90 agências infranacionais no País que vão ter de analisar processos diferentes. Você acha que isso vai travar ou não vai travar o setor? Vai travar total.”

Entre as empresas estaduais de saneamento, a avaliação é semelhante. “No setor público, se a gente não reequilibrar a tarifa, a empresa vai perder resultado, ou seja, se a coisa já não está boa, vai ficar pior”, afirma Freitas, da Aesbe. “E, no caso do privado, as empresas vão ter de reequilibrar seus contratos.”

O principal argumento para justificar o regime diferenciado de tributação para a atividade é que o saneamento tem impacto direto na saúde, por meio da redução de mortes prematuras e de internações hospitalares decorrentes de doenças como esquistossomose, malária, hepatite e cólera, que atingem cerca de 300 mil pessoas por ano no País, conforme a Abcon, e afetam principalmente os mais pobres. Também tem reflexos na redução dos afastamentos no trabalho e nas escolas, no aumento da produtividade e até na valorização imobiliária das áreas beneficiadas com o acesso aos serviços de água e esgoto. “O saneamento é intimamente ligado com saúde. Saúde também é prevenção. Então, não dá pra entender essa resistência do Congresso em enquadrar o saneamento na área”, afirma Christianne.

Segundo estimativas das entidades do setor, a expansão dos serviços de saneamento, com vistas à universalização prevista no novo marco, pode gerar uma economia de R$ 25 bilhões por ano até 2040 com a melhoria das condições sanitárias. Um estudo da OMS (Organização Mundial de Saúde) mostra também que, para cada US$ 1 investido em saneamento, há um retorno de quase seis vezes para a sociedade, considerando os benefícios gerados pelos serviços para a população.

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“A gente conversou com a Câmara dos Deputados, com o Senado. Fizemos um evento em Brasília, chamando deputados e senadores, para explicar que saneamento é saúde e por que eles não podiam onerar o setor. Explicamos que o enquadramento do saneamento como saúde não iria representar uma redução de tributos e que isso iria até acelerar investimento, mas não teve jeito”, diz Freitas.

“O que a Câmara de Deputados disse para a gente foi que esqueceram do saneamento, que estava lá no meio dos setores a serem tributados com a alíquota de referência. O Senado até conseguiu colocar no texto uma ressalva para que o setor de saneamento não tivesse aumento de tributo, mas quando o texto voltou para a Câmara, eles acharam que era melhor aprovar do jeito que estava antes, sem a ressalva, em vez de reabrir a discussão do assunto.”

No momento, o setor está procurando encontrar uma alternativa junto ao Senado e ao governo para tentar resolver a questão na regulamentação da reforma. Freitas afirma que tem discutido o problema diretamente com o secretário-extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy. Mas, considerando que, no projeto de regulamentação da reforma aprovado pela Câmara está prevista a devolução de imposto pago nas contas de água, esgoto, energia elétrica e gás para as famílias de baixa renda, a “novela” está evoluindo para um desfecho que não é considerado o ideal pelo pessoal da área.

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“O cashback você tem de pagar primeiro para receber depois. Ou seja, será preciso onerar a tarifa, o consumidor pagar e só depois ter um crédito. Não é o melhor formato”, afirma. “O melhor formato, como todo mundo diz, como todo deputado e todo senador com quem a gente vai falar sobre saneamento diz, é enquadrar o saneamento como saúde.”

Como apurou o Estadão, a Fazenda até defendia a adoção de um regime específico para o setor de saneamento, porque permitiria levar em conta a diferença entre projetos mais maduros e projetos em fase inicial, mas a proposta não teve apoio na Câmara. Agora, em relação à inclusão da atividade na área de saúde, a visão do governo é de que isso provavelmente resultaria em uma tributação mais baixa do que a atual para as empresas de saneamento, em especial nas concessões mais recentes realizadas no setor, porque a reforma tributária reduziu o custo de implementação dos projetos, ao desonerar totalmente os investimentos.

É difícil neste ambiente, marcado pela vai e vem nas regras do jogo que costuma caracterizar o País, acreditar que as metas de universalização previstas no novo marco vão se concretizar. Com o desafio de realizar um investimento total estimado entre R$ 509 bilhões e R$ 893 bilhões até 2033, conforme a fonte, certamente isso não contribui para atrair grandes investidores do Brasil e do exterior. “Você não tem estabilidade, não tem previsibilidade. É uma coisa que o Brasil precisa melhorar”, afirma Christianne.

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