Premiado com o Nobel de Economia em 2020, o americano Paul Milgrom é uma referência no estudo da teoria geral dos leilões, que mostra como esses processos de compra e venda podem ser projetados para promover mercados mais competitivos e eficientes.
Seu trabalho foi fundamental para formatar o primeiro leilão de frequências de telefonia celular realizado nos Estados Unidos, em 1994. Milgrom mostrou a importância de estabelecer um preço, conhecido por todos os concorrentes, para cada faixa de frequência numa determinada região (algo que não era comum na época). A iniciativa, como ficou comprovado, ajudou a atrair mais empresas. O modelo depois foi replicado ao redor do mundo, incluindo no Brasil.
Em entrevista, o economista fala sobre como os leilões podem ser usados para estimular a competição e ressalta que é muito difícil atrair novos investidores internacionais para participar de licitações, como tem buscado o governo brasileiro.
"Investidores internacionais estão interessados no pacote completo. Se eles fazem um compromisso de longo prazo, querem saber qual é o nível de estabilidade do governo, das leis e como será a cobrança de impostos no futuro", afirma ele.
O economista será o palestrante principal da Conferência P3C, evento focado no setor de parcerias público-privadas e concessões de infraestrutura, que será realizado a partir de terça-feira, 23.
O que faz um leilão ter sucesso?
O leilão tem sucesso quando é bem adaptado para cada ocasião. Os leilões mais simples são aqueles em que há apenas um item em disputa. Nesses casos, dependendo do contexto, é possível organizar um processo em que os interessados entregam as propostas de antemão, ou optar pelo modelo tradicional ascendente (em que as empresas fazem ofertas na hora). Quando há apenas um item, esses formatos funcionam muito bem. Mas, no caso de leilões do governo, as coisas podem se complicar. É por isso que existe a área que estuda a forma de se projetar os leilões.
Em que sentido elas podem se complicar?
Um leilão de compras governamentais pode ter diferentes fornecedores de diferentes tamanhos e capacidades. Em outros casos, o governo pode estar procurando adquirir uma combinação de produtos ou serviços. Então é preciso obter uma parte deles de um vendedor, outra parte de outro. Ou o governo pode ter múltiplos itens à venda, como no caso dos leilões de frequências para telecomunicações. A licitação pode estar dividida em frequências, cobrindo diferentes regiões (do país). Em cada um desses casos, é preciso adaptar as regras do leilão ao problema que se busca resolver. Do contrário, o leilão pode fracassar. E há muitos casos em que eles fracassam. As pessoas que organizam os leilões tendem a pensar que é fácil e não dão atenção aos detalhes, e o processo acaba fracassando. Isso acontece o tempo todo.
O ágio do leilão ou o preço final são bons indicadores de sucesso?
As medidas de sucesso podem variar. Os países têm diferentes objetivos quando realizam um leilão. Em alguns casos, pode haver poucas grandes empresas interessadas e o governo pode estar tentando levantar receitas. Nesse caso, o ponto principal é o valor final arrecadado. Outras vezes, como acontece com os leilões de espectro de rádio, o objetivo é promover a competição depois da concessão. A preocupação é com os consumidores. O governo não deseja que as maiores empresas vençam o leilão, mesmo que elas estejam dispostas a pagar o preço mais alto. É possível projetar o leilão para favorecer os concorrentes mais fracos, porque espera-se que eles construam empresas competitivas mais para frente.
E no caso dos leilões de infraestrutura?
Para leilões de infraestrutura, o governo não deveria enfatizar demais a arrecadação. Há três coisas que importam em licitações desse tipo, que são o custo, a qualidade e o prazo. Quando o governo estabelece as regras, quer garantir que (a concessão ou a obra) vai ter um preço razoável e uma boa qualidade. E também se preocupa com o prazo. Algumas vezes, leva mais tempo para ter um resultado de maior qualidade. Tudo isso tem de ser levado em conta. É possível até conseguir um preço mais barato, mas o governo pode ter um problema de qualidade ou atrasos mais para frente.
Nos últimos 12 meses, tivemos alguns leilões importantes no Brasil nas áreas de telecomunicações, infraestrutura, saneamento e petróleo. Alguns tiveram pouca concorrência ou nem chegaram a atrair interessados. Por que isso acontece?
Há duas razões. Uma delas é a dificuldade de atrair as empresas qualificadas que podem operar na escala exigida. Não sei se esse é o caso do Brasil. Tenho pouca familiaridade com o mercado brasileiro. Em segundo lugar, há razões estratégicas para as empresas interessadas deixarem o leilão fracassar. Por exemplo: o governo decide pedir um preço inicial muito alto para uma frequência de rádio, para ter certeza que vai arrecadar algum dinheiro. E os potenciais compradores avaliam que o governo vai ter que vender aquele espectro de qualquer forma. Se a primeira licitação falhar, o governo vai ter de vendê-lo depois, mais barato. Essa pode ser uma razão estratégica.
Pode ser também um problema do formato do leilão?
Sim. O formato pode impor barreiras para as empresas darem os lances, o que desestimula principalmente os concorrentes menores. Ou se o preço inicial for muito alto, pode reduzir o número de interessados. Há inúmeras formas de fazer um leilão fracassar.
O Brasil tem buscado atrair companhias de outros países para as licitações. Como garantir a participação de estrangeiros?
Investidores internacionais estão interessados no pacote completo. Se eles fazem um compromisso de longo prazo, querem saber qual é o nível de estabilidade do governo, das leis e como será a cobrança de impostos no futuro. E eles querem ter acesso a informações quando fazem um investimento muito alto. É preciso fazer uma diligência e investigar todas as condições envolvidas. Falando de forma abstrata: se o governo quer privatizar um porto, por exemplo, o potencial comprador vai querer estudar quais são os contratos de trabalho dos funcionários e as condições das instalações. Vai fazer uma projeção da demanda e do tráfego no porto. E vai querer saber sobre as regulamentações do governo.
É um investimento que poucos se dispõem a fazer?
Sim. Da parte das empresas interessadas, é preciso fazer um grande esforço para participar de um leilão de grande escala. Elas não vão fazer esse esforço se não tiverem a expectativa de que vão ser bem tratadas. Não é apenas uma questão de como o leilão é projetado. É um pacote completo. E mesmo quando há tudo isso, é preciso fazer as empresas tomarem conhecimento do leilão. Também exige um pouco de marketing, para ir ao mercado e mostrar o que está sendo planejado.
Como avalia o histórico do Brasil em realizar leilões?
Confesso que não estudei muito o caso do Brasil, e não me sinto à vontade para opinar. Talvez interesse saber, mas nos últimos anos tenho focado também em outras áreas, como sobre como desenvolver o mercado de água, que é muito mal projetado ou basicamente nem existe. Com as mudanças climáticas, uma das coisas que têm me interessado é descobrir como os recursos vão precisar ser realocados e como nós vamos precisar nos adaptar. Temos secas e falta de água em quase todos os continentes. E o modelo de concessões de água foi estabelecido, em alguns casos, mais de cem anos atrás.
De que maneira o mercado de fornecimento de água é afetado?
Não significa que as chuvas não estão caindo, mas estão caindo em lugares diferentes do que costumavam cair. E algumas dessas mudanças são permanentes. Para usar a água bem, temos de acabar com os seus usos de menor valor.
O que fazer para contornar o problema?
Um mercado bem projetado pode estimular a utilização da água existente para usos mais valiosos. Só para dar um exemplo. No Rio Colorado, nos EUA, a concessão da água se baseia num modelo de "use ou perca" (o direito). Se as pessoas economizarem água, elas perdem os direitos de uso, só por reduzir o consumo. É horrível. Em outros casos, as pessoas têm o direito de usar a água num determinado período do ano para um tipo de plantação. Esse não é um direito muito "comercializável". Dificulta muito usar a água para outros usos mais valiosos. Se tivéssemos um direito de acesso à água comercializável, ela poderia se tornar mais valiosa. Assim, haveria incentivos para fazer investimentos, desenvolver filtros e tecnologias para reuso de água, ou para dessalinizar a água do mar. Não podemos fazer nada disso economicamente, quando não há um mercado para a água.
Por que decidiu se dedicar a esse tema?
Eu sinto que, com a minha idade, gostaria de fazer uma grande contribuição para o mundo. Se pudermos descobrir formas melhores de estabelecer um mercado de água, isso seria uma grande ajuda. As mudanças climáticas são reais e essas secas e falta de água são coisas com as quais precisaremos lidar. A área que estuda como os mercados são projetados (market design) tem por essência tentar fazer um uso melhor dos recursos disponíveis ao estabelecer mercados mais inteligentes e dinâmicos. Isso significa possibilitar que os recursos sejam aproveitados para usos mais valiosos, que remunerem as pessoas por economizar e criar novas fontes. Os mercados podem fazer isso. Eles são ferramentas muito poderosas para permitir isso. Eu espero poder ajudar com isso também.
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