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Apesar dos reveses, Paulo Guedes deixa legado liberal na economia

‘Espólio’ inclui reforma da Previdência, autonomia do Banco Central, privatização da Eletrobras, contas públicas sob controle e série de medidas pró-mercado

Foto do author José Fucs
Atualização:

Com o governo Bolsonaro chegando ao fim, a herança do ministro da Economia, Paulo Guedes, virou alvo de discussões apaixonadas. Embora sua atuação tenha gerado muita controvérsia desde o princípio, agora, às vésperas de ele deixar o cargo, em 1º de janeiro, a polêmica em torno do assunto esquentou ainda mais.

De um lado, estão o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e seus aliados, de primeira e de última hora, que procuram emplacar a narrativa de que Guedes deixará uma “herança maldita”, reciclando a estratégia usada contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no início do mandato do petista, em 2003.

O ministro Paulo Guedes com o presidente Jair Bolsonaro: falta de apoio para implementação da agenda liberal  Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Do outro, estão os que atribuem ao “espólio” de Guedes um valor respeitável e valorizam o fato de ele ter rompido o “consenso social-democrata”, formado desde a redemocratização entre o PT, o PSDB e outros partidos de esquerda e de centro, que levou à escalada dos gastos públicos e ao aumento da carga tributária.

Se dependesse da paixão dos dois grupos, o “cabo de guerra” poderia se estender até o fim dos tempos, com cada um puxando a corda para o seu lado. Em meio à polarização política predominante no País, é difícil imaginar que um dos lados possa mudar seu discurso, reconhecendo que o outro está certo.

Ainda assim, ao analisar a questão de um ponto de vista objetivo, com base nos números e nas realizações efetivas de Guedes durante os quatro anos em que comandou a economia, ele implementou ou apoiou uma série de medidas liberalizantes e tudo indica que deverá entregar o posto com as contas públicas sob controle e os principais indicadores apontando uma melhora na economia.

Guedes conseguiu imprimir uma marca liberal à sua gestão, reduzindo a presença do Estado na economia, e aprofundou as mudanças iniciadas no governo Temer, com a reforma trabalhista, o fim dos subsídios nos empréstimos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e a adoção do teto de gastos, que limitou a despesa de um ano ao nível do ano anterior corrigido pela inflação.

“Nós caminhamos bastante em direção a uma economia mais liberal, muito mais orientada pelo setor privado e com menos intervenção do Estado”, diz José Marcio de Camargo, economista-chefe da Genial Investimentos e colunista do Estadão. “A diminuição do tamanho do Estado é um dos pontos importantes de qualquer projeto liberal, principalmente no Brasil, onde o Estado representa 40% do PIB (Produto Interno Bruto).”

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Medidas microeconômicas

Apesar de reformas estruturantes como a tributária e a administrativa terem “subido no telhado”, a lista de realizações inclui a reforma da Previdência, a autonomia do Banco Central, a privatização da Eletrobras, a venda de participações de estatais em empresas privadas, o corte de impostos e diversas medidas microeconômicas, que mexem com o subterrâneo da economia. “A gente acabou tendo mais ruídos em relação a propostas que não andaram do que o reconhecimento de muitas que andaram e surtiram bons efeitos”, afirma Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter.

Do ponto de vista fiscal, os resultados revelam um quadro bem mais tranquilo do que apontavam as previsões de muitos economistas. Mesmo com a realização de gastos extraordinários de quase R$ 700 bilhões para o combate à pandemia, que representaram 10% do PIB, a equipe econômica deverá entregar as contas públicas a Lula em situação melhor do que recebeu, em 2019.

A previsão é de que as despesas fiquem em 18,7% do PIB, abaixo do nível registrado no fim do governo Temer, de 19,3%. A dívida pública bruta, por sua vez, deve ficar em 74,3% do PIB, também em nível inferior ao de 2018, de 75,3% (leia a reportagem sobre as 20 principais medidas de liberalização da economia implementadas na gestão de Paulo Guedes). “Poucas pessoas comemoram redução de gasto do governo, porque só verão o benefício disso no médio e no longo prazos”, diz Rafaela. “Não é uma atitude popular para nenhum governo cortar gastos, mas eu diria que esse é um bom legado.”

É certo que, para acomodar interesses políticos, Guedes aceitou vários aumentos de despesas. Mesmo excluindo da conta o furo do teto na pandemia, ele deu seu aval à chamada PEC Kamikaze, que turbinou gastos sociais três meses antes das eleições e representou um aumento de R$ 41,3 bilhões nas despesas previstas no Orçamento aprovado originalmente pelo Congresso. Também apoiou a exclusão dos pagamentos de precatórios do teto e a mudança na fórmula de cálculo do dispositivo – uma medida considerada por muitos analistas como “casuística”, por ter aberto espaço de forma artificial para gastos adicionais.

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Agora, como a arrecadação de tributos bateu recorde e as despesas tiveram uma queda significativa com o congelamento dos salários dos servidores e a não substituição dos aposentados, os gastos extras acabaram não afetando a dívida pública nem o resultado primário, que deverá registrar um superávit próximo a 1% do PIB em 2022, o primeiro desde 2013. “Para um liberal como Paulo Guedes, que busca uma menor intervenção do Estado na economia, a queda de impostos e uma privatização ampla, a boa gestão fiscal é um elemento importante nesse conjunto de coisas”, diz Pedro Jobim, economista-chefe da gestora de recursos Legacy Capital.

Conflitos institucionais

Provavelmente, o legado de Guedes seria mais robusto se não tivessem ocorrido tantas turbulências durante o percurso. Primeiro, houve a pandemia. Além de o coronavírus ter levado a vida de quase 700 mil brasileiros, desorganizou as finanças públicas e a economia do País e do mundo, provocando falta de produtos, encarecimento dos fretes e aumento da inflação aqui e lá fora.

Depois, houve os conflitos institucionais envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e as dificuldades de relacionamento do governo com o Congresso, em especial nos primeiros dois anos de seu mandato, e com o Judiciário. Além das críticas naturais da oposição, a agenda liberal de Guedes foi bombardeada dentro do próprio governo, pelo “fogo amigo” de políticos e militares que integravam o círculo mais próximo a Bolsonaro, de visão mais desenvolvimentista, e até pelo próprio presidente.

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Guedes costuma dizer que suas realizações devem ser medidas não só pelo que conseguiu entregar, mas também pelo que evitou que o chefe e seus colegas na Esplanada dos Ministérios fizessem, na direção oposta de sua pregação liberal. Apesar das “juras de amor eterno” de Bolsonaro, tornou-se evidente com o tempo que o ministro havia perdido o status de “Posto Ipiranga” que lhe fora conferido ainda na campanha de 2018.

Pelas seguidas rasteiras que levou de Bolsonaro, as especulações sobre sua saída do governo se tornaram recorrentes, agitando a turma da avenida Faria Lima, em São Paulo, onde se concentram as sedes das instituições financeiras do País, que via nele uma garantia de que os gastos não sairiam de controle, produzindo efeitos dramáticos nas contas públicas e na economia como um todo. Guedes, no entanto, acabou permanecendo até o fim no cargo, mesmo com margem de manobra limitada.

Em meados do ano passado, quando a boataria sobre a saída de Guedes rolava solta na praça, o cientista político Lucas de Aragão, da Arko Advice, recorreu a uma metáfora futebolística, para explicar a situação. “O mercado em geral achava que o Paulo Guedes seria o Messi (craque da seleção argentina), o número 10 da economia, que iria fazer golaço de tudo que é jeito, de calcanhar, de bicicleta”, afirmou. “Mas hoje o investidor o vê mais como um goleiro, cuja missão é evitar desastres maiores.”

Social-democratas

Ironicamente, como se tudo isso já não bastasse para minar a capacidade de Guedes de implementar sua agenda, ele ainda foi objeto desde o início de sua gestão da artilharia desferida por um grupo de economistas considerados liberais, mas que nunca rezaram pela mesma cartilha que ele e que acabaram apoiando Lula no segundo turno das eleições. Um deles chegou a dizer antes mesmo da posse de Bolsonaro que o excesso de liberalismo poderia prejudicar a imagem do liberalismo no País.

“Esses economistas são chamados de liberais pela esquerda, mas na verdade são bem menos liberais do que o Paulo. Eles sempre defenderam a intervenção do governo na economia para resolver problemas que consideram não resolvidos pelo setor privado, como a desigualdade e outras questões sociais”, diz Camargo. “Acredito que tem muito a questão de ego, mas há também uma oposição ideológica. Muitos desses economistas são ligados ao PSDB e à Marina Silva, do Rede Sustentabilidade, e seguem conceitos social-democratas”, afirma Jobim.

Por sua personalidade conflituosa, como a de Bolsonaro, de acordo com alguns analistas, o próprio Guedes contribuiu para complicar ainda mais a implementação de sua agenda liberal. Ao anunciar metas ambiciosas, que acabavam não sendo atingidas, e lançar “balões de ensaio” desmentidos pelo próprio presidente no dia seguinte ou até no mesmo dia, ele se tornou alvo de ironias nas rodas de economistas e ganhou o apelido de “ministro da semana que vem”.

Sua forma debochada de falar também gerou muito ruído, como no episódio em que ele disse, ao comentar a alta do dólar, que havia uma “festa danada” quando a cotação da moeda americana estava artificialmente baixa e as empregadas domésticas iam para a Disney. O comentário teve péssima repercussão e deu margem à interpretação de que as domésticas e os menos abonados de forma geral não tinham direito de viajar ao exterior, criando um solavanco prejudicial à implementação de suas propostas.

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Mesmo assim, aos trancos e barrancos, Guedes conseguiu promover uma maior liberalização da economia. “Apesar de todo o ruído político e do próprio impacto da pandemia, que trouxe maior intervenção estatal naquele momento difícil, a gente teve, sim, o avanço de uma agenda mais liberal e uma redução da participação do Estado na economia”, afirma Rafaela.

“Revogaço”

A grande questão agora é saber como Lula vai lidar com tudo isso após a posse. Muitos analistas temem um “revogaço” das medidas liberalizantes implementadas ou apoiadas por Guedes, sugerido por integrantes do Gabinete de Transição de Lula. Outros acreditam que não será fácil efetuar uma contrarreforma, mesmo que Lula tente implementá-la.

“Vai ser mais difícil voltar atrás agora, por mais que a esquerda queira. Vai querer voltar com imposto sindical? Vai ter que passar pelo Congresso. Vai querer acabar com autonomia do Banco Central? Vai ter que passar pelo Congresso. Vai querer acabar com o teto? Vai ter que passar pelo Congresso”, diz José Márcio de Camargo.

“Acredito que a sociedade, os empresários, em particular, vai ser muito resistente a retrocessos”, reforça Rafaela. “O setor privado ocupou um espaço na economia que foi deixado pela menor intervenção do Estado e não vai querer abrir mão disso agora.”

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