BRASÍLIA - Nos últimos dias do mandato do presidente Jair Bolsonaro, o atual governo deixou pronta uma proposta para alterar o teto de gastos com a intenção de pautar o debate fiscal no ano que vem, antes que a equipe econômica do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva apresente sua sugestão. O Estadão/Broadcast teve acesso com exclusividade à íntegra de três textos redigidos por técnicos do Ministério da Economia a pedido do ministro Paulo Guedes. Integrantes do Centrão querem amarrar as ideias e apresentar no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no início de fevereiro.
A proposta de Guedes é incorporar a evolução do Produto Interno Bruto (PIB) no cálculo do teto de gastos, que teria crescimento real permanente, acima da inflação, dependendo do nível da dívida. Hoje, o teto é corrigido apenas pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Além de marcar posição política e se antecipar à equipe econômica petista, a ideia é abrir uma frente de negociação no Legislativo e deixar claro que haverá resistência em acabar com o teto de gastos - a regra que limita o crescimento das despesas do governo à inflação -, como tem sido defendido pelo PT.
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A PEC da Transição, promulgada na semana passada pelo Congresso, determina que o novo governo envie ao Congresso até agosto do ano que vem um projeto de lei complementar para criar uma nova âncora para substituir o teto. O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já afirmou que pretende apresentar a proposta antes desse prazo, mas a avaliação de parlamentares do Centrão é que a equipe petista ainda deve demorar para chegar a um consenso sobre a regra fiscal.
No Congresso, os três textos sugeridos por Guedes - duas PECs e um projeto de lei complementar que tratam do mesmo assunto - devem ser incorporados em uma única PEC e a intenção inicial é que ela seja apresentada na primeira quinzena de fevereiro. Ainda não foi decidido quais parlamentares vão encabeçar a discussão, mas o tema já é debatido entre deputados ligados ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). A tendência é que a autoria da proposta seja do PL, partido de Bolsonaro e uma das principais siglas do Centrão.
O argumento é que uma emenda constitucional dá mais segurança jurídica ao arcabouço fiscal do que uma lei complementar, mas a escolha do Centrão por uma PEC se deve também ao rito de tramitação. Esse tipo de matéria precisa do apoio de três quintos dos parlamentares para ser aprovada - 308 na Câmara e 49 no Senado. Já um projeto de lei complementar, que deve ser formulado pela equipe de Haddad, necessita do aval da maioria absoluta dos congressistas - respectivamente 257 e 41.
A PEC, portanto, dá mais poder de negociação ao Congresso e representa mais riscos para o governo. Ao se antecipar na discussão e propor um texto com maior dificuldade de ser aprovado, a oposição a Lula amplia o desgaste do petista - já iniciado com as negociações da PEC da Transição e a montagem do Ministério, ainda não finalizada a quatro dias da posse, em 1º de janeiro.
A PEC também abre mais espaço para discussão do tema. Esse tipo de texto passa pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) das duas Casas e, na Câmara, tramita ainda por em comissão especial, onde é debatido o mérito. Nos bastidores, os deputados acreditam que essa etapa será essencial para as articulações e conversas com o novo governo sobre o teor que eles desejam ver na proposta que deve vir do Ministério da Fazenda. Uma das ideias do Centrão é convocar Haddad para audiências no Congresso.
Aprovado em 2016, no governo Temer, após um descontrole das contas públicas nos anos anteriores, o teto de gastos foi rompido pelo menos cinco vezes pelo governo Bolsonaro. O próprio Guedes tem criticado a forma como a âncora fiscal foi formulada. “O teto foi muito mal construído. O teto era para não deixar a chuva entrar, mas foi o contrário. Tinha um fogo, um incêndio dentro da casa e não tinha chaminé para deixar a fumaça sair”, disse o ministro, em uma live da Suno Research, no dia 27 de outubro.
Durante a campanha, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva prometeu acabar com o teto, mas até agora a equipe do petista não apresentou uma proposta para substituir a regra fiscal. A PEC da Transição, que garante a manutenção do Bolsa Família em R$ 600 e o cumprimento de outras promessas eleitorais, determina que o novo governo envie ao Congresso até agosto um projeto de lei complementar para criar uma nova âncora fiscal. Com a PEC de Guedes, contudo, o Centrão quer pautar o debate ao sugerir que, ao invés disso, o teto seja mantido, mas com modificações para torná-lo mais flexível.
O projeto de Guedes
A proposta formulada por Guedes, cujas linhas gerais foram divulgadas em 23 de dezembro numa nota informativa da Secretaria de Política Econômica (SPE), permite o crescimento do teto acima da inflação em alguns cenários. Quando a dívida bruta estivesse em 60% do PIB e o crescimento da economia fosse superior a 1%, o teto seria acrescido com base na inflação e no valor do PIB menos 1 ponto porcentual. Por exemplo, se a economia crescesse 3%, o teto aumentaria 2% além do IPCA.
No cenário em que a dívida bruta ficasse entre 60% e 80% e a economia crescesse acima de 2%, o teto aumentaria com base na soma da inflação com o PIB menos 2 pontos porcentuais. Nesse caso, se o crescimento da economia fosse de 3%, o teto aumentaria 1% além do IPCA. O limite de gastos seria corrigido somente pela inflação quando a dívida bruta estivesse em um nível superior a 80% ou quando, nos dois primeiros cenários de dívida, o crescimento econômico fosse inferior a 1% e 2%, respectivamente. Em 2022, a dívida deve terminar em cerca de 73% do PIB.
A proposta também determina que todo o acréscimo no teto seja alocado em despesas discricionárias, ou seja, não obrigatórias. “O fundamental é que a nova regra limite o crescimento do gasto primário em relação ao PIB com rigidez suficiente para garantir a sustentabilidade da dívida pública. Assim, haveria espaço para crescimento da despesa primária em termos reais, mas a despesa não poderia crescer, pelo menos não de forma sistemática e continuada, a taxas superiores ao crescimento real do PIB”, diz a nota informativa da SPE que serve como base para a PEC.
Se houvesse recessão, o governo seria autorizado a editar crédito extraordinário para aumentar o teto de forma temporária, para estimular a economia e mitigar os efeitos da crise. Nesse caso, o acréscimo no teto não seria incorporado no limite do ano seguinte, como nas situações anteriores. “A nova regra permite uma flexibilização do Teto de Gastos, calibrada de forma a atender múltiplos objetivos: agir de maneira anticíclica em períodos recessivos, permitir a expansão do investimento em períodos de maior atividade, e favorecer a parcela discricionárias das despesas públicas”, diz a nota da SPE.
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