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Real 30 anos: ‘Atitude leniente e complacente com a inflação é punida nas urnas’, diz Malan

Ex-ministro da Fazenda acredita que hiperinflação ficou para trás, mas é possível reaprender lições do período FHC

Atualização:
Foto: Pedro Kirilos/Estadão
Entrevista comPedro MalanEx-ministro da Fazenda do governo FHC

Rio - Um dos mais longevos ministros da Fazenda do Brasil, o economista Pedro Malan, relembra como se deu a formação da equipe econômica que saiu vitoriosa contra a hiperinflação no País. Ao Estadão, Malan fala das noites em claro durante os esforços da negociação da dívida externa brasileira e do convite surpresa de Fernando Henrique Cardoso para assumir o Banco Central.

“A inflação sob controle não é um objetivo por si só, ela é uma condição sine qua non para que outros objetivos, talvez mais importantes, possam ser atacados de uma perspectiva de médio e longo prazo, desde a área social até outros objetivos”, afirma. Segundo ele, a ideia de que uma inflação fora da meta pode contribuir para a solução de políticas públicas em outras áreas é equivocada.

O economista acredita que os tempos de hiperinflação ficaram para trás. A população, pondera ele, puniria em uma eleição um governo que eventualmente seja leniente com aumentos de preços na economia.

“Nós jamais vamos voltar àqueles 1000% de inflação, isso já está fora de questão já. Mas uma atitude (de governo) muito leniente, complacente em relação à inflação é punida nas urnas. A população percebe que é a obrigação de um governo e é um direito do cidadão a preservação do poder de compra da sua renda “, defendeu ele.

“Tem lições do período para as quais vale a pena voltar, principalmente nesse momento mais difícil que nós estamos vivendo hoje”, recomenda o economista.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

O convite para assumir o Banco Central veio quando o sr. era negociador da dívida externa. A negociação já estava bastante encaminhada quando o sr. vem para o Brasil?

A negociação foi longa. Eu fui convidado e aceitei em junho de 1991. As negociações começaram em agosto, com a nossa proposta perante o comitê de bancos. Eram 20 bancos que representavam os mais de 700 credores. Elas se estenderam por dois anos, praticamente, até a sua conclusão.

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Chegou a pensar em recusar a presidência do BC? Como recebeu o convite naquela sexta-feira, 13 de agosto?

Nessa noite fatídica em que fui convencido, o Fernando Henrique (Cardoso) chamou a mim e ao André Lara (Resende), em Brasília, para jantar na casa dele. O Itamar (Franco) tinha mandado demitir o presidente do Banco Central e foi ali que ele me disse, eu almocei com ele nesse dia, que um de nós dois, o André ou eu, teria de sair do jantar como presidente do Banco Central. Eu obviamente disse a ele: ‘é óbvio que tem de ser o André, né? Não tenha dúvida disso’.

Bom, depois de um longo jantar, foi acertado isso: eu iria para o Banco Central e o André assumiria a minha posição de negociador da dívida, que estava praticamente concluída, tanto é que nós assinamos três meses depois. Os acordos, que estavam praticamente prontos, foram assinados em 29 de novembro.

Já em novembro?

Mas para mim, o importante naquele momento era assegurar que o André e o Persio (Arida) entrariam para a equipe do Plano Real. Eu acho que aquilo foi conseguido, aquilo fez com que o André assumisse uma posição formal. O Persio foi logo depois para a presidência do BNDES. E aí, pela primeira vez, eu achei que nós tínhamos formado um núcleo duro, uma massa crítica, junto com outras pessoas que lá já estavam e que tiveram um papel fundamental também. Menciono aqui o Clóvis Carvalho, que foi secretário-executivo (da Fazenda). A primeira escolha que o Fernando Henrique (como ministro da Fazenda) fez, em maio, foi a escolha do Clóvis como secretário-executivo. Ele teve um papel extraordinário nesse período todo de preparação do terreno e depois, como chefe da Casa Civil. E o Murilo Portugal, secretário do Tesouro, que estava lá desde novembro de 1992, que é um dos melhores servidores públicos que esse País conheceu, e que teve um papel-chave no programa de ação imediata, na proposta de mudança constitucional, na negociação das dívidas com os Estados e municípios. Era um grupo extraordinário de pessoas.

Pedro Malan, ministro da Fazenda no governo FHC, acredita que os tempos de hiperinflação ficaram para trás Foto: Hélvio Romero / Estadão

Como foi esse trabalho conjunto à época de preparação do Plano Real?

Teve muita discussão nos meses de setembro, outubro e novembro, e, no dia 7 de dezembro de 1993, nós apresentamos uma Exposição de Motivos 395, que o ministro da Fazenda encaminhou ao presidente da República, dizendo: ‘olha é isso que nós vamos fazer na dimensão fiscal, um programa fiscal para o biênio 1994-1995, nas propostas de mudança constitucional’.

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Foi complicado, porque tinha uma comissão parlamentar de inquérito sobre os chamados Anões do Orçamento. Então estava um período de turbulência no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados pelo menos. Mas nós conseguimos aprovar o que era fundamental naquele momento, que era uma desvinculação de cerca de 20% das receitas, que era uma parte importante para o equilíbrio fiscal de 1994/95.

Algum episódio importante para destacar desse período?

Um episódio que eu queria mencionar é sobre a importância que teve o programa de ação imediata (PAI) do governo, de 14 de junho de 1993, três semanas depois que Fernando Henrique assumiu o Ministério da Fazenda, na terceira semana de maio. Ele não foi totalmente elaborado ali naquelas três semanas, mas uma parte introdutória dele, a explicação do por quê aquele programa estava sendo apresentado, é uma coisa que merece ser lida hoje. A frase de abertura dele dizia que só havia quatro países no mundo que tiveram uma inflação de mais de 1000% em 1992: a Rússia, o império Russo havia colapsado em 1990-91; a Ucrânia, associado ao colapso russo; o Congo, em guerra civil; e o Brasil. E dizendo que a tarefa prioritária para consolidar um processo de vitória contra a hiperinflação e a retomada do crescimento era lidar com a desordem a que estavam relegadas as contas públicas no Brasil. Tinha logo na página 2 uma construção retórica dizendo por que aquilo era fundamental para que a inflação fosse derrotada e para que o País pudesse voltar a crescer de uma maneira menos desigual.

Nessa época, o sr. estava no exterior?

Eu era diretor-executivo do Brasil no Banco Mundial nessa ocasião, e eu tinha condições de pedir que o documento oficialmente fosse traduzido imediatamente para o inglês. Foi feita uma excelente tradução, eu tenho ela nos meus arquivos até hoje. Distribuí a tradução, a versão para o inglês do programa de ação imediata, para todos os diretores-executivos do Banco Mundial. Através do Kafka (Alexandre Kafka), que era o nosso diretor no FMI (Fundo Monetário Internacional), pedi que distribuísse para os diretores do Fundo também, e com o pedido que eles encaminhassem para os seus respectivos ministros da Fazenda e presidentes do Banco Central. Eu recebi muito feedback positivo sobre o programa de ação imediata. Assim como a Exposição de Motivos de 7 de dezembro também foi lida. Assim como a assinatura dos acordos da dívida foram importantes também para criar um clima.

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Um clima favorável...

A negociação da dívida foi quando nós tivemos restabelecido o nosso relacionamento com a comunidade financeira internacional pública e privada. Porque, em 1992, nós tínhamos negociado já com os credores privados no âmbito do Clube de Paris. Fiquei duas noites sem dormir. Quem conduziu foi o Gros (Francisco Gros), mas eu estava presente o tempo todo. Nunca passei duas noites inteirinhas sem dormir, fiz por causa daquilo, mas foi importante para mostrar o nosso empenho em resolver a questão da dívida. Acho que ajudou. Nós não tínhamos ilusões. O real era uma aposta arriscada. Eu não tinha nenhuma ilusão de que teríamos o apoio formal de um programa como o Fundo, porque eles não queriam correr esse risco. Eles também estavam em dúvida se isso aqui ia dar certo ou não. Mas tiveram uma atitude correta de não criar problemas. (...) Nós negociamos lá com o Michel Camdessus (diretor-gerente do FMI), defendendo o nosso empenho em assegurar a estabilização da moeda, esperando que pudéssemos, depois que a URV (Unidade Real de Valor) estivesse convertida em real, discutir um programa com o Fundo, que foi totalmente desnecessário. O Plano Real foi um sucesso tal que nós não precisamos de nenhum apoio internacional do Fundo naquela época.

Malan foi ministro da Fazenda durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso Foto: Clayton de Souza / Estadão

No lançamento do real, houve uma valorização da nova moeda ante o dólar e as taxas de juros foram elevadas duramente. Quão importante foi o papel do Banco Central para sustentar os primeiros anos do Real?

Eu vou responder de forma breve. O papel do Banco Central, e não poderia ser de outra forma, foi absolutamente essencial ao longo dos anos seguintes. Eu me refiro aqui às presidências do Persio Arida, que foi quem me sucedeu em 1995, na primeira metade do ano, do Gustavo Loyola, do Gustavo Franco, que sucedeu o Loyola, e do Armínio Fraga, que teve um papel absolutamente fundamental no segundo mandato Fernando Henrique em consolidar o sistema do tripé macroeconômico (formado pela taxa de câmbio flutuante, pelo sistema de metas de inflação e pela responsabilidade fiscal).

Quando o sr. considera que a estabilização foi alcançada?

Não foram meses, eu diria que foram necessários anos, mais de uma década. Até eu achar que tínhamos alcançado um ponto em que a maioria esmagadora da sociedade brasileira se deu conta de que a preservação da inflação sob controle era a preservação do poder de compra do salário do trabalhador brasileiro. Hoje em dia temos essas transferências diretas de renda que assumiram uma importância crescente no Brasil. Para você ter uma ideia, dos 27 Estados do Brasil, em 15, os recipientes desse auxílio de transferência direta de renda são em número maior do que aqueles empregados com carteira assinada. A preservação do poder de compra dessas transferências também depende da preservação da inflação sob controle.

Acho que criou raízes entre nós a percepção de que a inflação sob controle numa perspectiva não imediata, mas de médio e longo prazos, como objetivo de longo prazo. Criou raízes e tem uma razão para isso, que é a vantagem das democracias. (...) Nós jamais vamos voltar àqueles 1000% de inflação, isso já está fora de questão já. Mas uma atitude (de governo) muito leniente complacente em relação à inflação é punida nas urnas. A população percebe que é a obrigação de um governo e é um direito do cidadão a preservação do poder de compra da sua renda. E é um dever e uma obrigação do Estado.

Como foi a pressão para que o êxito contra a hiperinflação não se perdesse e fosse de fato estabelecido?

Nós sempre dissemos, desde o início, que o fim da hiperinflação não era um objetivo que se esgotava em si mesmo. Para que ele fosse alcançado de maneira duradoura, muitas outras coisas tinham de acontecer. Tudo é gradual no Brasil, mas tem urgências no gradualismo, para consolidar o real e para permitir que a sociedade brasileira pudesse tratar de outros problemas, tão ou mais importantes, na área de educação, de saúde, de crescimento, de distribuição de renda, de tecnologia. Algumas eram tarefas que se impunham, como, por exemplo, lidar com o sistema financeiro brasileiro. O sistema financeiro tinha se habituado a viver um período de inflação alta, crônica e resistente. As receitas inflacionárias eram uma parte expressiva, tinha estimativa de que um terço das receitas dos bancos era derivada do ganho que eles tinham pela simples defasagem da inflação. (...) A queda abrupta da inflação mostrou custos que eram incompatíveis com a capacidade de geração de caixa desses bancos. Então nós reduzimos de mais de 30, a um grande dispêndio de capital político, para pouco mais de meia dúzia os bancos comerciais e estaduais. Tivemos de intervir em três dos sete maiores bancos privados brasileiros: Banco Econômico, em 1995; o Nacional, ainda em 1995; e o Bamerindus, em 1996, que eram bancos que não tinham se adaptado em prazo hábil a um período de inflação baixa e sob controle como projeto de longo prazo. Estados e municípios tiveram de fazer renegociação de dividas. Fizemos com 25 dos 27 Estados, e com 180 municípios também. O governo federal assumiu responsabilidades para tal. Fizemos as privatizações importantes para assegurar um maior crescimento futuro da economia.

Quando o sr. acha que foi consolidada a estabilização?

Acho que houve necessidade de ter os dois mandatos do Fernando Henrique Cardoso. Tem algo a que eu atribuo uma grande importância também que foi a transição civilizada que nós fizemos na virada de Fernando Henrique 2 para Lula 1 (primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva), a virada de 2002 para 2003. (...) A condução da política macroeconômica do Lula 1, pelo menos até a virada de março para abril de 2006, foi uma continuidade da política macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso 2. A preservação do tripé: o regime de metas de inflação; o regime de taxas de câmbio flutuante; e a preocupação anunciada, com a carta compromisso, que o presidente Lula assinou em 22 de junho de 2002, que se comprometia a fazer o esforço fiscal necessário para estabilizar a relação dívida x PIB, a preservação da inflação sob controle, o respeito a contratos. (...) A combinação das duas coisas, uma condução responsável da política macroeconômica e um contexto internacional favorável, explicam boa parte daquele sucesso que o Brasil experimentou no período pós-Fernando Henrique Cardoso. Mas tem lições do período (FHC) para as quais vale a pena voltar, principalmente nesse momento mais difícil que nós estamos vivendo hoje.

Quais?

A inflação sob controle não é um objetivo por si só, ela é uma condição sine qua non para que outros objetivos, talvez mais importantes, possam ser atacados de uma perspectiva de médio e longo prazo, desde a área social até outros objetivos. A ideia de que a inflação (fora da meta) pode contribuir para a solução de políticas públicas em outras áreas é uma ideia equivocada. Nós estamos comemorando 30 anos do Plano Real, mas estamos comemorando 25,5 anos de um regime de taxas de câmbio flutuante, 25 anos de regime de metas de inflação, fizemos 24 anos da lei de responsabilidade fiscal. Então essas são coisas positivas, dão ideia de que há certas coisas no Brasil que têm de ser preservadas. (...) Não teria aceitação na sociedade brasileira hoje, um alto mandatário, chefe de Estado ou chefe de governo que diga que envidará o melhor de seus esforços para que a inflação seja a mais baixa possível, mas que ele tem vários outros objetivos a alcançar, e, portanto, a inflação vai ser o que resultar daquilo, da busca de outros objetivos. Não teria nenhuma credibilidade para permitir o funcionamento da economia. (...) A ideia de que a responsabilidade fiscal não é compatível com a tentativa de alcançar outros objetivos é, a meu ver, uma ideia equivocada.

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Como ocorreu a aproximação do sr. com a equipe da PUC-Rio, que, no futuro, iria desenhar o real?

É uma longa história. Edmar Bacha tentou criar um programa de Mestrado em Economia em Brasília no início dos anos 70. Ele conseguiu levar para lá o Francisco Lopes, o Dionisio Dias Carneiro e eu. O Chico e o Dionisio chegaram a morar em Brasília por um ano, pelo menos. Eu não quis ir morar em Brasília, estava satisfeito no Rio. Mas para ajudar o Edmar a criar o mestrado em Brasília, eu aceitei o convite dele, sem pagamento. Ele pagava minha passagem, numa segunda-feira, e voltava numa terça, e a hospedagem era na casa dele. Ele estava casado com a Eliana (Cardoso) naquela ocasião. Durante um ano eu dei aulas lá, orientei algumas teses de mestrado. Foi como conheci o Chico e o Dionisio pessoalmente. Em 1977, o Rogério Werneck, o Francisco Lopes e o Dionísio saíram da Fundação Getúlio Vargas, da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças), e nós conversamos. Os três foram os fundadores do programa de ensino e pesquisa em economia, o mestrado da PUC. A discussão começou ali, em 1977.

Quando começou sua ligação com o departamento de economia da PUC?

Sou ligado ao departamento de economia da PUC desde 1978. Não fui professor em tempo integral, mas dei aulas lá de 1978-1979 até 1983, quando fui para o exterior, para uma posição nas Nações Unidas em Nova York. Depois, quando deixei o governo em 2003, eu voltei e dei aulas lá de 2003 até 2017 ou 2018. Sou ligado ao departamento de economia da PUC desde esse período, que foi muito ativo, em particular no final dos anos 70 e início dos 80. Publicamos um livro sobre inflação, dívida externa e crescimento no Brasil, com artigos de 13 professores do departamento. Foi a fase de ouro do departamento, foi quando nós conseguimos juntar ali pessoas como André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha, além dos três fundadores (Werneck, Chico Lopes e Dionisio), Eduardo Modiano, José Marcio Camargo, professores de experiência estrangeira, Carlos Diaz Alejandro que era um grande historiador, o John Williamson, que era um grande conhecedor de economia internacional.

Depois houve uma fase também em Brasília, com vocês reunidos no governo?

Isso foi muito importante. Eu tive o privilégio de, além de conviver com esses professores, tive como alunos pessoas como o Gustavo Franco, o Armínio Fraga, Edward Amadeo, Elena Landau, e vários outros. Então isso ajudou muito. Por exemplo, quando fui convidado pelo Marcílio Marques Moreira e pelo Francisco Gros, ministro da Fazenda e presidente do Banco Central naquela época, a assumir a posição de negociador-chefe da dívida externa, eu me assegurei que o Armínio Fraga seria o diretor da área internacional do Banco Central. Porque eu precisava de uma pessoa de minha total e absoluta confiança naquela posição. Quando aceitei o convite para o Banco Central, na sexta-feira fatídica de 13 de agosto de 1993, na mesma noite que eu aceitei, eu disse ao Fernando Henrique: ‘olha, o Winston Fritsch não vai gostar, mas eu preciso que você me garanta que o Gustavo Franco vai ser o meu diretor da área externa do Banco Central”. Porque eu conhecia de longa data, além de terem sido meus alunos, a gente manteve uma relação esse tempo todo. O meu diretor da área monetária foi um outro ex-aluno da PUC, o Francisco Pinto.

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